Uma
linguagem mandarinesca esconde os verdadeiros conflitos de
uma sociedade dividida por interesses de classe, um Estado
fundado e construído através da produção consciente da
miséria, da exploração e da desigualdade.
No
início do século 19, os soldados franceses enviados por
Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização
na parte francesa da ilha de Santo Domingos, futuro Haiti,
escutavam, ao longe, assustados e perplexos, o ressoar da
canção querida que seus oficiais lhes proibiam cantar.
Eram os negros insurrectos que, entoando a Marselhesa,
surgiam da profundeza da noite para desbaratar as linhas do
exército invicto.
Avante,
filhos da Pátria
O dia de glória chegou
Contra
nós, levantou–se,
O estandarte ensanguentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vêm, nos nossos braços,
degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos! Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!
A
Marselhesa teria sido composta para o exército do Reno, em
1792, pelo capitão–engenheiro Claude–Joseph de Lisle
Rouget. Ela transformou–se na principal canção popular
marcial e, muito mais tarde, no hino nacional da França,
pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população
nacional em armas.
A
Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque,
na forma e no conteúdo, sintetizava o entusiasmo com que a
França democrática, republicana e plebeia levantava–se
para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e
fora do país, coligavam–se contra a revolução.
Após
o golpe militar de 1799, Bonaparte proibiu aos soldados
franceses cantar a Marselhesa, tamanha era seu poder de
invocação democrática e revolucionária. A tradição
conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma
única vez, em 1805, em Austerlitz, quando da grande vitória
sobre os imperadores da Áustria e da Rússia.
Pela
Internacional!
No
século 19, através do mundo, a Marselhesa tornou–se a
canção do movimento democrático e socialista. Em 1870,
com a Terceira República francesa, ela foi reconduzida como
hino patriótico francês. Portanto, em 1871, na Comuna de
Paris, o mundo do trabalho e a ordem do capital
defrontaram–se, de armas à mão, cantando o mesmo hino.
Durante
os combates parisienses, foi composto o “Canto da
Internacional: hino dos trabalhadores”, que o jornal
oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível
“Marselhesa da nova Revolução” – como lembra Luiz A.
Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou
aprisionados durante e após os combates pelas forças da
reação burguesa.
O
Canto da Internacional não prosperou. Porém, a canção
revolucionária A Internacional, com música do operário
Pierre Degeyter [1888] e poema escrito por Eugène Pottier,
que participara da Comuna, em 1871, terminou
celebrizando–se, no fim do século 19. Desde então, A
Internacional constituiu o hino dos trabalhadores franceses
e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais
diversos idiomas.
De
pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da idéia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, ó produtores!
Refrão
(bis)
Bem
unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.
Macieira
não dá laranjas. A gênese histórica e social
radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro
explica seu nulo poder evocativo popular e democrático. A
ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o
movimento de independência mais atrasado e mais conservador
das três Américas.
Para
tranquilizar os interesses britânicos e portugueses, as
classes dominantes provinciais do Brasil aceitaram o tacão
centralizador e despótico de um príncipe português que
era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam.
Para garantir a continuidade da ordem negreira, os grandes
proprietários de todas as províncias optaram por um Estado
monárquico, centralizador e antiliberal.
Independência
de branco
Muito
logo, os senhores teriam a prova amarga da tacanhice da solução
bragantina. Em novembro de 1823, apenas 14 meses após o
Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe
militar do Brasil independente, fechava a assembléia
nacional constituinte e legislativa e ditava a constituição
ant–liberal que governaria o Brasil até 1889.
A
Independência de 1822 foi coisa de branco, de escravista e
de rico, para branco, escravista e rico. A grande maioria da
população trabalhadora, formada por africanos e
brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista
e colonial do bacalhau de cinco dedos do escravista
impiedoso.
O
Hino da Independência teve autores mais ilustres do que a
Marselhesa e a Internacional. A letra foi escrita por
Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música,
composta pelo imperador em pessoa. Em verdade, o hino já
seria executado, em 7 de setembro, à noite, no Teatro da Ópera,
em São Paulo, diante do digno compositor e da igualmente
digna elite escravista da cidade. Tudo muito chic e
oportuno, portanto! Uma independência socialmente
excludente geraria hino esteticamente excludente:
Já
podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.
Como
assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro
verso realiza–se na segunda pessoa do plural, comum à
linguagem áulica da Corte e desconhecida da população
livre pobre, para não falar da população trabalhadora,
que se comunicava em boa parte através de línguas e koinés
africanas e indígenas.
A
contradição berrante entre os “filhos da pátria” que
saudavam a “liberdade” que raiara “no horizonte” e
as multidões de homens e mulheres de pele negra e parda
acorrentadas à escravidão até a morte registrava o fato
de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente,
por 66 anos, parte da nação que surgia. A pátria que se
criava tinha poucos, mas escolhidos filhos.
República
do fazendeiro
O
golpe militar de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um
centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário
e, de lambuja, sufocou a proposta de refundação da
nacionalidade brasileira defendida pelo movimento
abolicionista. Então, todos os habitantes do Brasil
passaram a participar, formalmente, de uma república
essencialmente federalista e oligárquica e nulamente democrática
e plebeia.
A
ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de
novos símbolos republicanos, em geral construídos com o
velho e usado material simbólico imperial, para que não
esquecessem que, no fundo, pouco mudara. Em forma ainda mais
radical, o hino mais cantado na República materializou
formalmente a profunda rejeição, pelas novas classes
dominantes, das classes populares, na nova ordem
republicana.
As
exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos
versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco
Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo
da nova república dos coronéis e latifundiários, onde se
manteve o mundo do trabalho na submissão, a ferro e fogo,
se necessário, como comprovam, entre outros sucessos, a
guerra de Canudos–Belo Monte, em 1897; a Revolta da
Chibata, em 1910; a guerra do Contestado, em 1912.
O
pernosticismo lexical e o preciosismo sintático usados por
Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra
definitiva do Hino Nacional, foram tão radicais que ele
ainda hoje é praticamente incompreensível para a imensa
maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos
retorcidos como “plácido”, “retumbante”, “fúlgido”,
“resplandecente”, “impávido”, “florão”,
“garrida”, “lábaro”, “verde–louro”,
“clava” etc.:
Ouviram
do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante
A
linguagem do mito
A
esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não
entende, ensejou propostas de simplificação linguística
ou modificação radical da letra da canção pátria, para
que o povo pudesse compreender o que cantava. Essas
tentativas de remendo ignoram a funcionalidade, na ótica
das classes proprietárias brasileiras, do caráter
estrangeiro da língua em que foi composto o Hino Nacional.
O
linguista marxista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além
da compreensão, na “consciência histórica dos povos, a
palavra estrangeira fundiu–se com a idéia de poder, de
força, de santidade, de verdade”. Por isso, em geral, o
discurso religioso dá–se em língua impossível ou difícil
de ser compreendida pelos crentes. Comumente, seu caráter
evocativo se dissolve como sorvete exposto ao sol ao ser
traduzido em língua de gente.
Foi
com indignação e perplexidade que ouvi meu professor de
latim explicar que o mágico e magnético “It missa est”
de minha infância queria dizer qualquer coisa como “podem
ir jogar futebol que a missa já terminou”. Os conteúdo
irracionais de uma narrativa podem ser mais facilmente
veiculados quando o estranhamento linguístico que produz
nos receptores dificulta eles penetrem racionalmente os
conteúdos sociais e ideológicos reais da mensagem.
A
linguagem esotérica e arcaica galvaniza comumente
sentimentos mágicos e aristocráticos imprecisos e difusos.
No mundo das percepções invertidas e alienadas, a
sentimentos superiores não pode corresponder, jamais,
linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, comumente, para
que conteúdos elitistas alcancem efeito popular, eles não
podem ser vertidos em linguagem popular compreensível.
A
linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever,
em língua de gente, canção que registre, no seio de espaço
geográfico nacional, os inexistentes interesses comuns a
banqueiros e bancários, a empregadores e empregados, a
investidores e desempregados, a latifundiários e sem terra.
Assim sendo, a linguagem rebuscada e incompreensível
materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da
irracionalidade social.
Nesse
sentido, a repetição de uma produção verbal
semi–compreensível, associada a sentimentos alienados e
irracionais sacralizados, enseja que o homem comum, educado
na repetição do rito desde criança, associe–se,
periodicamente, a ato unitário de celebração nacional que
consolida a perpetuação de Estado fundado e construído
através da produção e reprodução consciente da miséria,
da exploração e da desigualdade. Por tudo isso e mais um
pouco, não canto o Hino Nacional.
(*)
Mário Maestri, 61, rio–grandense, historiador, é doutor
em História pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica,
e professor do Curso e do Programa de Pós–Graduação em
História da Universidade Passo Fundo (UPF). E–mail:
maestri@via–rs.net