Brasil

Por que não canto o Hino Nacional

Por Mário Maestri (*)
Via Política, 15/11/09

Uma linguagem mandarinesca esconde os verdadeiros conflitos de uma sociedade dividida por interesses de classe, um Estado fundado e construído através da produção consciente da miséria, da exploração e da desigualdade.

No início do século 19, os soldados franceses enviados por Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização na parte francesa da ilha de Santo Domingos, futuro Haiti, escutavam, ao longe, assustados e perplexos, o ressoar da canção querida que seus oficiais lhes proibiam cantar. Eram os negros insurrectos que, entoando a Marselhesa, surgiam da profundeza da noite para desbaratar as linhas do exército invicto.

Avante, filhos da Pátria
O dia de glória chegou

Contra nós, levantou–se,
O estandarte ensanguentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vêm, nos nossos braços,
degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos! Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!

A Marselhesa teria sido composta para o exército do Reno, em 1792, pelo capitão–engenheiro Claude–Joseph de Lisle Rouget. Ela transformou–se na principal canção popular marcial e, muito mais tarde, no hino nacional da França, pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população nacional em armas.

A Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque, na forma e no conteúdo, sintetizava o entusiasmo com que a França democrática, republicana e plebeia levantava–se para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e fora do país, coligavam–se contra a revolução.

Após o golpe militar de 1799, Bonaparte proibiu aos soldados franceses cantar a Marselhesa, tamanha era seu poder de invocação democrática e revolucionária. A tradição conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma única vez, em 1805, em Austerlitz, quando da grande vitória sobre os imperadores da Áustria e da Rússia.

Pela Internacional!

No século 19, através do mundo, a Marselhesa tornou–se a canção do movimento democrático e socialista. Em 1870, com a Terceira República francesa, ela foi reconduzida como hino patriótico francês. Portanto, em 1871, na Comuna de Paris, o mundo do trabalho e a ordem do capital defrontaram–se, de armas à mão, cantando o mesmo hino.

Durante os combates parisienses, foi composto o “Canto da Internacional: hino dos trabalhadores”, que o jornal oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível “Marselhesa da nova Revolução” – como lembra Luiz A. Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou aprisionados durante e após os combates pelas forças da reação burguesa.

O Canto da Internacional não prosperou. Porém, a canção revolucionária A Internacional, com música do operário Pierre Degeyter [1888] e poema escrito por Eugène Pottier, que participara da Comuna, em 1871, terminou celebrizando–se, no fim do século 19. Desde então, A Internacional constituiu o hino dos trabalhadores franceses e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais diversos idiomas.

De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da idéia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, ó produtores!

Refrão (bis)

Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.

Macieira não dá laranjas. A gênese histórica e social radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro explica seu nulo poder evocativo popular e democrático. A ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o movimento de independência mais atrasado e mais conservador das três Américas.

Para tranquilizar os interesses britânicos e portugueses, as classes dominantes provinciais do Brasil aceitaram o tacão centralizador e despótico de um príncipe português que era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam. Para garantir a continuidade da ordem negreira, os grandes proprietários de todas as províncias optaram por um Estado monárquico, centralizador e antiliberal.

Independência de branco

Muito logo, os senhores teriam a prova amarga da tacanhice da solução bragantina. Em novembro de 1823, apenas 14 meses após o Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe militar do Brasil independente, fechava a assembléia nacional constituinte e legislativa e ditava a constituição ant–liberal que governaria o Brasil até 1889.

A Independência de 1822 foi coisa de branco, de escravista e de rico, para branco, escravista e rico. A grande maioria da população trabalhadora, formada por africanos e brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista e colonial do bacalhau de cinco dedos do escravista impiedoso.

O Hino da Independência teve autores mais ilustres do que a Marselhesa e a Internacional. A letra foi escrita por Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música, composta pelo imperador em pessoa. Em verdade, o hino já seria executado, em 7 de setembro, à noite, no Teatro da Ópera, em São Paulo, diante do digno compositor e da igualmente digna elite escravista da cidade. Tudo muito chic e oportuno, portanto! Uma independência socialmente excludente geraria hino esteticamente excludente:

Já podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.

Como assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro verso realiza–se na segunda pessoa do plural, comum à linguagem áulica da Corte e desconhecida da população livre pobre, para não falar da população trabalhadora, que se comunicava em boa parte através de línguas e koinés africanas e indígenas.

A contradição berrante entre os “filhos da pátria” que saudavam a “liberdade” que raiara “no horizonte” e as multidões de homens e mulheres de pele negra e parda acorrentadas à escravidão até a morte registrava o fato de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente, por 66 anos, parte da nação que surgia. A pátria que se criava tinha poucos, mas escolhidos filhos.

República do fazendeiro

O golpe militar de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário e, de lambuja, sufocou a proposta de refundação da nacionalidade brasileira defendida pelo movimento abolicionista. Então, todos os habitantes do Brasil passaram a participar, formalmente, de uma república essencialmente federalista e oligárquica e nulamente democrática e plebeia.

A ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de novos símbolos republicanos, em geral construídos com o velho e usado material simbólico imperial, para que não esquecessem que, no fundo, pouco mudara. Em forma ainda mais radical, o hino mais cantado na República materializou formalmente a profunda rejeição, pelas novas classes dominantes, das classes populares, na nova ordem republicana.

As exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo da nova república dos coronéis e latifundiários, onde se manteve o mundo do trabalho na submissão, a ferro e fogo, se necessário, como comprovam, entre outros sucessos, a guerra de Canudos–Belo Monte, em 1897; a Revolta da Chibata, em 1910; a guerra do Contestado, em 1912.

O pernosticismo lexical e o preciosismo sintático usados por Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra definitiva do Hino Nacional, foram tão radicais que ele ainda hoje é praticamente incompreensível para a imensa maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos retorcidos como “plácido”, “retumbante”, “fúlgido”, “resplandecente”, “impávido”, “florão”, “garrida”, “lábaro”, “verde–louro”, “clava” etc.:

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante

A linguagem do mito

A esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não entende, ensejou propostas de simplificação linguística ou modificação radical da letra da canção pátria, para que o povo pudesse compreender o que cantava. Essas tentativas de remendo ignoram a funcionalidade, na ótica das classes proprietárias brasileiras, do caráter estrangeiro da língua em que foi composto o Hino Nacional.

O linguista marxista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além da compreensão, na “consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira fundiu–se com a idéia de poder, de força, de santidade, de verdade”. Por isso, em geral, o discurso religioso dá–se em língua impossível ou difícil de ser compreendida pelos crentes. Comumente, seu caráter evocativo se dissolve como sorvete exposto ao sol ao ser traduzido em língua de gente.

Foi com indignação e perplexidade que ouvi meu professor de latim explicar que o mágico e magnético “It missa est” de minha infância queria dizer qualquer coisa como “podem ir jogar futebol que a missa já terminou”. Os conteúdo irracionais de uma narrativa podem ser mais facilmente veiculados quando o estranhamento linguístico que produz nos receptores dificulta eles penetrem racionalmente os conteúdos sociais e ideológicos reais da mensagem.

A linguagem esotérica e arcaica galvaniza comumente sentimentos mágicos e aristocráticos imprecisos e difusos. No mundo das percepções invertidas e alienadas, a sentimentos superiores não pode corresponder, jamais, linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, comumente, para que conteúdos elitistas alcancem efeito popular, eles não podem ser vertidos em linguagem popular compreensível.

A linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever, em língua de gente, canção que registre, no seio de espaço geográfico nacional, os inexistentes interesses comuns a banqueiros e bancários, a empregadores e empregados, a investidores e desempregados, a latifundiários e sem terra. Assim sendo, a linguagem rebuscada e incompreensível materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da irracionalidade social.

Nesse sentido, a repetição de uma produção verbal semi–compreensível, associada a sentimentos alienados e irracionais sacralizados, enseja que o homem comum, educado na repetição do rito desde criança, associe–se, periodicamente, a ato unitário de celebração nacional que consolida a perpetuação de Estado fundado e construído através da produção e reprodução consciente da miséria, da exploração e da desigualdade. Por tudo isso e mais um pouco, não canto o Hino Nacional.


(*) Mário Maestri, 61, rio–grandense, historiador, é doutor em História pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica, e professor do Curso e do Programa de Pós–Graduação em História da Universidade Passo Fundo (UPF). E–mail: maestri@via–rs.net