Moro
entre Niterói e Santa Teresa e escrevo quando muitos de
meus vizinhos nos dois locais não têm mais onde morar,
depois de três dias de chuvas que castigam o Grande Rio.
Muitos outros não sobreviveram. Somente no Morro do Bumba,
em Niterói, a estimativa é de que 200 pessoas possam ter
morrido soterradas.
Estimativas,
não dados precisos, porque aquelas pessoas que moravam na
encosta de um antigo aterro sanitário são realmente
tratadas pelo Estado como resíduos urbanos. Não há
cadastramento da área para precisar o número de casas e
pessoas atingidas. Mas o prefeito da cidade, o Sr. Jorge
Roberto da Silveira (PDT), afirmou na véspera desse
desabamento, quando o número de vítimas em Niterói já
ultrapassava 60 pessoas, que o número de casas em áreas de
risco na cidade era muito pequeno para justificar obras de
contenção de encostas muito caras, sendo mais barato
remover os moradores dessas áreas.
Nada
a estranhar, partindo de um prefeito que tomou como
prioridade asfaltar as ruas da Zona Sul (sem as devidas
obras de drenagem) e construir torres panorâmicas, mas que
destinou no Orçamento Municipal de 2010 apenas 50 mil reais
para obras de redução de risco de desabamentos e
escorregamentos de encostas, enquanto gasta mais de 2 milhões
por ano somente com o custeio de um Conselho Consultivo, no
qual reduz os riscos de amigos e correligionários com uma
polpuda sinecura, conforme denunciou o vereador Renatinho (PSOL).
Para
os trabalhadores e trabalhadoras mais pauperizados, que só
encontraram aquelas encostas para morar, a solução "mais
barata" é a remoção. Nada se diz, porém, das ocupações
de outras encostas, tão ou mais irregulares e também
sujeitas a deslizamentos de terra, como ocorreu na Estrada
Fróes, área "nobre" para a especulação imobiliária
da cidade, que há poucos anos conquistou concessões da
prefeitura para construir um imenso condomínio de mansões
e prédios de luxo em local que deveria ser destinado à
preservação ambiental.
Remoção
é, aliás, a palavra de ordem. O governador Sérgio Cabral
(PMDB), ao lado do presidente Lula da Silva (PT) e com sua
aprovação, apressou–se a definir os responsáveis pelas
mortes: os moradores das favelas cariocas, que teimam em
construir em áreas de risco. Por isso, afirmou a correção
de sua proposta de construção de muros "ecológicos"
de contenção (complementados, é claro, pelas placas de
"isolamento acústico").
Tais
instrumentos – passo adiantado para converter favelas e áreas
periféricas de guetos, que já o são, em campos de
concentração, para mais eficiência na ação dos caveirões
e UPPs (todos "pacificadores") – agora são
apresentados como solução para o problema das chuvas. Ao
invés de urbanização das favelas, regularização do
direito ao solo, construção de moradias decentes e contenção
das encostas, a "contenção" das pessoas, pelos
muros e armas. E se remoção é a solução, Cabral também
anunciou que a Polícia Militar estava à disposição de
todos os prefeitos para efetivar essa política.
Eduardo
Paes (PMDB), o prefeito do Rio, que coincidentemente era o
"prefeitinho" de César Maia na região da Barra
da Tijuca e Jacarepaguá, quando das também trágicas
enchentes de 1996, é o que mais rapidamente se apresentou
para defender a necessidade das remoções, amplas, gerais e
irrestritas, classificando de demagogos os que a elas se opõem.
A lista começa pelos moradores do Morro dos Prazeres, em
Santa Teresa, castigado pelas chuvas desta semana, mas logo
se amplia para todas as favelas que já haviam sido listadas
como prioritárias para remoção em função das Olimpíadas,
em número muito superior ao de qualquer levantamento de áreas
de risco na cidade.
Quanto
à prevenção, agora se anuncia que o governo federal
enviará 200 milhões para o estado do Rio de Janeiro. Tarde
demais, como sempre, pois até aqui nenhum tostão foi
enviado para obras de prevenção de enchentes e contenção
de encostas este ano, e descobriu–se agora que o
ex–ministro Geddel Vieira Lima (PMDB), candidato ao
governo baiano, enviou 50% das verbas federais de prevenção
de desastres para a Bahia, enquanto o Rio recebeu menos de
1%. Mas não se desesperem os que estão sem teto por conta
das chuvas, pois o governo federal liberou os saques das
contas de FGTS (dinheiro do próprio trabalhador) dos
atingidos. "FG o que?", perguntam os milhares de
trabalhadores precarizados que foram atingidos por esse
desastre.
O
caso é que hoje, como tudo na sociedade de classes instituída
pelo poder do capital, as tragédias não são vistas pelo
mesmo ângulo por todos. Para os interesses do capital
imobiliário, da construção civil, dos monopólios do
transporte e serviços públicos e de seus representantes,
eleitos para ocupar os governos através de campanhas que
financiam com fartura de recursos, as tragédias, como tudo
mais, são bom negócio.
Naomi
Klein, no livro "A doutrina do Choque", documentou
e analisou como crises econômicas, catástrofes naturais (furacões,
terremotos, tsunamis) e guerras são cada vez mais
instrumentalizadas pela lógica do capital, como momentos
"excepcionais", em que grandes comoções criam o
clima necessário para a aplicação das doutrinas de
choque, com retirada de direitos, privatizações e
criminalizações (ver a esse respeito a entrevista
publicada na revista Classe, no. 1).
Nada
mais apropriado para se entender o Brasil de hoje e, em
especial, o Rio de Janeiro. Aqui, na terra dos "choques
de ordem", a tragédia fomentada pelo capital – que
transforma o solo urbano em uma de suas principais áreas de
investimento e especulação, inviabilizando a moradia e
vida digna da maioria da classe trabalhadora – não está
sendo pranteada pelos governantes. Dias de luto oficial e
lamentos na TV não escondem as comemorações daqueles que
nada fizeram para prevenir desastres, porque esperam por
eles, para impingir mais "choques" à população.
A nós cabe, sim, a comoção com a tragédia que retira
tantas vidas, mas também a indignação, semente da reação,
que não pode tardar.
(*)
Marcelo Badaró é professor do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense.