Entrevista a Ricardo Antunes
Crise atual pode ser mais intensa do que a de 1929
Por
Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil, 25/04/09
Enviado por Correspondencia de Prensa,
01/05/09
Em
1980, o cineasta mineiro João Batista de Andrade filmou O
Homem que Virou Suco para contar as agruras de um
imigrante nordestino confundido com um assassino de um
manager de uma empresa multinacional. A imagem antecede ao
conceito, usado pelo sociólogo Ricardo Antunes, de "liofilização"
organizacional - tomado de empréstimo da química para
explicar o processo de transformar substância líquida em pó
(como acontece com o leite em pó ou com o veneno). Para
Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e especialista em temas do mercado de trabalho, as empresas,
antes da crise atual, passaram por processos de "liofilização"
e enxugaram suas "substâncias vivas", os
trabalhadores, por meio da modernização tecnológica e da
reestruturação produtiva. O resultado disso foi o
crescimento do chamado desemprego estrutural, que poderá
aumentar em muito com a crise econômica mundial de hoje.
Ele avaliou que o trabalho está sob enorme ameaça e o dia
1º de maio deste ano será "digno do século 19".
Nesse contexto, são abandonadas as teses sociológicas que
enxergavam o fim do trabalho ou do trabalhador como
categoria de análise e voltam a circular críticas ao
capitalismo e idéias de uma sociedade assentada em novas
relações de produção. Ele afirmou que a crise mundial
atual poderá ser mais intensa do que a de 1929, nos Estados
Unidos.
Agência
Brasil - Que ameaças a crise econômica mundial trouxe ao
trabalho?
Ricardo
Antunes - Não é mais ameaça. A crise econômica já tem
um resultado devastador para a classe trabalhadora. A OIT (Organização
Internacional do Trabalho) fez a previsão de novos 50 milhões
de desempregados em 2009, o que eleva o número de
desempregados para até 340 milhões de pessoas no mundo.
Este número é uma estimativa moderada. Só a China
anunciou que 26 milhões de ex-trabalhadores rurais, que
estavam ocupados nas cidades, perderam o emprego. A tragédia
que se abateu entre os trabalhadores é monumental, a começar
pelos imigrantes à cata de trabalho nos países do norte do
mundo, mas também a classe trabalhadora em geral, que
estava empregada na indústria metal-mecânica, têxtil, no
setor alimentício. A primeira providência que o
empresariado toma na eminência de uma crise é o corte nos
postos de trabalho. É emblemático que os Estados Unidos, a
Inglaterra e o Japão vivem a maior taxa de desemprego das
últimas décadas.
ABr
- Qual a versão brasileira dessa situação?
Antunes
- O governo tentou nos vender a idéia, completamente falsa,
de que estávamos imunes à crise. A verdade, no entanto, é
que nós, no final do ano, tivemos 640 mil novos
desempregados. De lá para cá, os dados melhoraram, porque
o governo tomou medidas, como a redução do IPI (Imposto
sobre Produtos Industrializados) dos automóveis, para
impedir que a recessão fosse mais dura. Mas essas medidas têm
folego curto. A economia brasileira é muito globalizada. O
Brasil depende muito do mercado externo por causa das
commodities. O desfecho da crise brasileira está bastante
atado ao desfecho da crise internacional. Não podemos ter
uma ilusão de que o país é uma ilha rósea em um mar
turbulento.
ABr
- Antes da crise essa "ilha" tinha metade dos seus
trabalhadores sem os direitos reconhecidos, não?
Antunes
- Chegamos a quase 60% da nossa População Economicamente
Ativa, em meados dos anos 2000, na informalidade, o que é
expressão da tragédia social. Imaginar que o Brasil vai
ficar no século 21 fornecendo, por exemplo, cana-de-açúcar
com trabalho semi-escravo e pessoas cortando até 17
toneladas de cana por dia, sob um regime de mensuração do
trabalho que subtrai os valores de remuneração. Essa não
pode ser a alternativa brasileira. O Brasil não é o pior
cenário no contexto internacional, mas pensar que estamos
imune a ele é um completo equívoco.
ABr
- O trabalho no Brasil chegou ao século 21?
Antunes
- Estamos vivendo uma situação bastante contraditória.
Embora o mundo produtivo às vezes atinja um patamar do século
21, as condições de trabalho estão regredindo às condições
verificadas nos séculos 18 e 19. O trabalho escravo, semi-escravo
e infantil, que nós imaginávamos fazer parte do início da
Revolução Industrial, estão hoje esparramados em vários
setores, e não é só no Brasil. Na Europa e nos Estados
Unidos, também existe trabalho infantil, e o trabalho sujo
do imigrante, que é tratado como um cidadão de quarta
categoria. Tudo isso nos joga a querer ser uma economia do século
21 com condições pretéritas de trabalho, o que faz com
que a luta do 1º de Maio de 2009 seja semelhante à luta do
1º Maio de 1886, ano da Revolta de Haymarket, em Chicago,
nos Estados Unidos.
ABr
- O senhor disse que políticas como a isenção do IPI têm
fôlego curto. Por que os governos optam por medidas para a
indústria automobilística, a despeito dos problemas
ambientais e dos problemas de saúde? Não há outros
setores com maior empregabilidade?
Antunes
- O Brasil é uma triste repetição de governos que
representam os interesses dominantes. Por que que a indústria
automobilística joga pesado? Porque seu lobby é
decisivamente forte, assim como os bancos também o são. Os
governos olham para o capital, para o setor produtivo e
financeiro, de um modo muito diferente de como olham para o
trabalho. Os trabalhadores só conseguem alguma medida em
seu favor quando lutam de forma consciente. Como muitas
centrais sindicais, hoje, estão prisioneiras de política
oficiais, trabalhadores e sindicatos de base perderam força.
Muitas das centrais oscilam em defender a política do
governo e defender os trabalhadores. Mas sabemos que as
conseqüências para o desemprego, quando a indústria
automobilística entra em recessão, são graves. Se reduz o
emprego nessa indústria aumenta o nível geral de
desemprego porque a cadeia produtiva atinge o fornecedor,
toda a rede de autopeças, que existe em função da
montagem do sistema automotivo.
ABr
- E quanto à sustentabilidade?
Antunes
- Se voltarmos a produzir, recuperaremos o emprego da indústria
automobilística e de sua cadeia produtiva, mas aumentam os
níveis de destruição ambiental e de poluição global. Se
tivermos a retração do emprego, o desemprego aumenta a
barbárie social. Atividades que são profundamente
positivas na medida em que preserva a sociedade, pela via
reciclável, daquela tendência do capitalismo de destruir
as mercadorias para produzir outras, são subvalorizadas e não
recebem incentivos. Isso nos faz ter que pensar um novo modo
de vida e de produção para o século 21. Vamos querer
viver eternamente nesse sistema que exclusão, precarização,
informalidade, desemprego e barbárie social são o
predominante?
ABr
- As características desse sistema é que constituem a
atual morfologia do trabalho, tratada em um dos novos
artigos de seu livro Adeus Trabalho?, relançado agora?
Antunes
- O meu livro foi, desde sua primeira edição (em 1995),
uma resposta à tese do fim do trabalho e de que a classe
trabalhadora não tinha mais sentido. O que venho mostrando
desde então é que é preciso compreender quem é a classe
trabalhadora de hoje. Temos trabalhadores no telemarketing
que não existiam antigamente, de hipermercados, motoboys.
Temos uma nova morfologia, um novo desenho. Não é que
acabou o trabalho, e muito menos as possibilidades da revolução
do trabalho. A nova morfologia é para não ter uma visão
restrita da classe trabalhadora como apenas os operários
metalúrgicos.
ABr
- Essas idéias do fim do trabalho foram apropriadas pelas
correntes de ciência social aplicada que defendiam a
chamada qualidade total, a eficiência e o aumento da
produtividade. Essas melhorias não foram benéficas à
sociedade?
Antunes
- Esse conjunto de medidas nasceram no Japão e depois se
ocidentalizaram. Esses processos tiveram como resultado o
aumento da produtividade e dos ganhos do capital, maiores
lucros das empresas e crescimento do desemprego. Com esse
processo de liofilização, digo utilizando um termo cunhado
pelo sociólogo espanhol Juan Jose Castillo, as empresas
passaram a produzir dez vezes mais com cinco vezes menos
trabalhadores. Quem perdeu foi o pedaço da humanidade que
depende do trabalho. Foi aí que o desemprego estrutural, em
escala planetária, aumentou. O problema é que as pessoas
afetadas hoje estão no desemprego, informalidade, precarização,
narcotráfico, economia do crime.
ABr
- O que o senhor acha da proposta de banco de horas para
evitar o desemprego atual, visando uma extensão de jornada
no futuro?
Antunes
- É ruim, descalibra a vida dos trabalhadores. Fiz uma
pesquisa há alguns anos analisando essa situação e havia
trabalhadores que não teriam férias nos três anos
seguintes. Significa que o trabalhador nunca vai poder ter férias
programadas, vai estar sempre devendo. Por que os
trabalhadores têm que pagar o ônus de uma crise sobre a
qual não têm nenhuma responsabilidade?
ABr
- Em um dos artigos da última edição de Adeus Trabalho?,
o senhor afirma que "a crise penetra no centro dos países
capitalistas, numa intensidade nunca vista
anteriormente". A atual crise é pior que de 1929?
Antunes
- A crise atual é diferente, e seu espectro é de mais
intensidade. A crise de 1929 ainda foi herança de um período
cíclico: ciclo de expansão e ciclo de crise. Há
pensadores muito qualificados que dizem que desde o fim dos
anos 1960 entramos em uma crise estrutural de longa duração,
na qual não teremos mais aqueles ciclos. É uma longa fase
depressiva, onde não há mais como equacionar dentro da lógica
do capital a destruição ambiental e não tem como atender
toda a humanidade que precisa trabalhar para sobreviver.
Estamos em um buraco de proporções razoáveis. Isso não
quer dizer, no entanto, que estamos no fim do capitalismo.
ABr
- O senhor diz que o socialismo não morreu. Que projeto a
classe trabalhadora pode ter neste cenário?
Antunes
- Se há um pensador que ressurge das cinzas com vigor
explosivo neste momento é o Karl Marx. Nenhum pensador
chegou perto de análise crítica do (livro) O Capital (de
1867). Um texto escrito há 150 anos se mostra atual, ainda
que o capitalismo tenha mudado bastante. No Manifesto
Comunista (de Karl Marx e Frederich Engels, de 1848) já
estava escrito que o capitalismo precisa de um mercado
global. Assim como não há capitalismo em um só país não
há socialismo em um só país. As revoluções socialistas
do século 20 foram derrotadas, mas àqueles que disseram
que o socialismo acabou eu provocaria dizendo que o
socialismo não pôde começar. O século 21 é um laboratório
em ebulição.
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