Ventos
fascistas sobre a Itália
Por
Florence Carboni
Correio
da Cidadania, 25/02/09
Ao
anoitecer de 14 de fevereiro, dia de São Valentim – festa
dos namorados na Europa –, dois adolescentes (ela de 14,
ele 16 anos) passeavam pelo bairro Appio Latino, em Roma,
onde residem, quando foram abordados e roubados. Arrastados
para o próximo parque da Caffarella, a menina foi estuprada
pelos assaltantes. Imediatamente, apoiados no depoimento dos
jovens traumatizados e de vizinhos, a polícia e a mídia
empreenderam a caça a dois estrangeiros, de pele escura e
sotaque presumidamente árabe ou do leste europeu. Dos dois
romenos presos, um é loiro de olhos claros.
A
compreensível revolta causada na periferia romana pelo
ocorrido, instrumentalizada em forma sensacionalista pela mídia,
foi considerada pelo governo Berlusconi como a justificativa
necessária para emitir um decreto emergencial sobre o
estupro. Nos últimos dois meses, houve na Itália outros
casos de violência sexual – poucos se comparado a outros
países –, nos quais, em alguns casos, os agressores foram
ou seriam estrangeiros. Poucos dias após o estupro da
Caffarella, o governo aprovou por unanimidade o decreto
intitulado "Medidas urgentes em matéria de segurança
pública e de combate à violência sexual", agora
conhecido como "decreto antiestupro".
Aparentemente,
não haveria nada de errado na medida. Ao contrário. Para
muitos brasileiros, seria até uma elogiável prova de eficiência
no combate ao crime. Uma análise um pouco mais detida
revela os verdadeiros objetivos da nova iniciativa autoritária.
A violência contra as mulheres é um flagelo quase
estrutural da sociedade, cujo combate exige muito mais que
medidas repressivas e teatrais. A imensa maioria das
mulheres não denuncia seus algozes e as agressões assumem
comumente formas sutis e complexas não enquadradas pela
Justiça como estupro. Só na Itália, sete milhões de
mulheres declaram terem sido estupradas; entre elas,
1.400.000 com menos de 16 anos no momento do abuso. Só em
2006, quase 1.200.000 mulheres registraram agressões
sexuais.
Mais
ainda, as estatísticas recentemente divulgadas pelo
instituto de estatística italiano (ISTAT) mostram que, ao
contrário do difundido pelas autoridades e pela grande mídia,
90% dos estupros são cometidos por italianos e não por
estrangeiros – e ainda menos por imigrantes clandestinos.
Outro aspecto importante revelado pela pesquisa –
denunciado, em vão, há décadas – é que, em cerca de
70% dos casos o abuso sexual de crianças, meninas e
mulheres ocorre em casa, por parentes chegados.
Não
se justifica igualmente o uso da decretação, que deveria
ser reservado às situações de extrema urgência, para um
problema denunciado há diversas décadas por partidos políticos
de esquerda, por movimentos feministas etc. Problema sobre o
qual o bloco político hoje no governo, quando na oposição,
se recusou a legislar, atrasando no parlamento projeto de
lei apresentado por ministros de centro–esquerda do
passado, também algo sensacionalista e instrumentalizador,
contra as agressões às mulheres e as discriminações
sexuais.
Ao
inserir no decreto anti–estupro uma cláusula prevendo o
aumento de dois para seis meses do tempo de detenção dos
imigrantes em situação irregular, nos sinistros Centros de
Identificação e Expulsão, Berlusconi e seu ministro do
interior, Maroni, da Liga Norte, racista e separatista,
sugerem que os responsáveis pela violência sexual seriam,
sobretudo, os estrangeiros irregulares, o que, como vimos,
encontra–se em flagrante ignorância dos dados estatísticos
produzidos pelas próprias instituições governamentais.
Maurizio Gasparri, líder no Senado do partido berlusconiano
Povo da Liberdade, afirmou inclusive, despudoradamente, que
o decreto constituía uma resposta clara "aos muitos
que, no seio da magistratura, tem minimizado o comportamento
de pessoas violentas que vivem ilegalmente no nosso país".
É
tão patente o fato de que o grande objetivo do presente
decreto não é reprimir a real e quotidiana violência
sexual contra as mulheres, que a União das Câmaras Penais
italianas considerou–o inútil e anticonstitucional,
propondo que alguns de seus artigos constituiriam
"grave violação aos direitos do homem". Entre as
drásticas medidas previstas pelo decreto, em flagrante
contraste com a inocência presumida, estão: a total
negativa de prisão domiciliar aos indiciados por violência
sexual, turismo sexual, prostituição e pornografia
envolvendo menores; prisão obrigatória em caso de suspeita
de estupro, com a possibilidade de proceder aos atos
processuais em prazo de 48 horas; o encarceramento, por seis
meses a quatro anos, para acusados de assédio sexual; a
prisão perpétua em caso de morte da vítima de estupro, de
atos sexuais com menores e de violência sexual de grupo.
A
nova lei traz igualmente uma medida muito prezada pelo
ministro do interior Maroni e seu partido, a Liga Norte: a
regulamentação e sistematização de rondas parapoliciais,
formadas por voluntários escolhidos pelos prefeitos entre
ex–policiais, ex–militares etc., para percorrer as
cidades com a função de proteger as mulheres, função
específica das forças policiais do Estado. Essas rondas de
voluntários são comparadas, sobretudo por italianos mais
velhos, às esquadras fascistas, milícias de civis em
camisas pretas organizadas por Mussolini para golpear o
movimento operário e democrático italiano.
Em
verdade, essas guardas civis já existem há uns dez anos em
muitas cidades italianas. Elas foram incentivadas sobretudo
pela Liga Norte, nas grandes cidades do norte, denominadas,
em 1996, de República Federal da Padania, por aquele
movimento fascistizante e separatista. As mais famosas milícias
civis são os City Angels milaneses, exportados para outras
cidades da Lombardia, e as Rondas Padanas, difundidas através
do rico norte italiano. Na época da difusão dessas milícias,
a Liga Norte considerava estrangeiro até mesmo o italiano
chegado do sul do país!
O
modelo das guardas civis difundiu–se em toda a Itália após
maio de 2008, quando da emanação, poucos dias após a
posse de Berlusconi, do decreto–lei 92, transformado dois
meses mais tarde em lei, parte de um grande pacote–segurança,
atualmente em aprovação no Senado. Visa, principalmente,
combater a imigração clandestina, sempre apontada
demagogicamente pelo governo direitista como a causa de
todos os males sociais, nascidos na verdade das políticas e
medidas sociais e trabalhistas conservadoras, vitoriosas nos
últimos tempos.
O
decreto–lei sobre segurança, motivo de consternação
para toda a população italiana que ainda acredita no
Estado de direito e na convivência cidadã, entre outras
providências, permite uma maior atuação dos prefeitos no
combate à imigração clandestina e à criminalidade. Nos
meses seguintes à sua emanação, nesses tempos definidos
como de emergência nacional, inúmeros prefeitos usaram as
novas prerrogativas para lançar mão das ordinanze, ato
normativo, cuja desobediência é considerado crime pelo código
penal.
Entre
algumas dessas medidas autoritárias, adjetivadas pelo
quotidiano francês Le Monde como folclóricas, estão a
interdição de pedir esmolas; beijar em público; beber
cerveja e comer sanduíche nas ruas; portar bolsões, malas
ou mochilas nas proximidades de monumentos históricos etc.
Entre as mais drásticas e antidemocráticas estão a coerção
ao direito de mais de duas pessoas se reunirem em praças públicas
ou a tentativa (atualmente em votação) do prefeito de
Bolonha de proibir manifestações públicas nos sábados e
domingos; está igualmente dado o direito dos novos
prefeitos–xerifes de denunciar discricionariamente às
autoridades, por pretensos motivos de segurança, até mesmo
cidadãos da União Européia – os romenos, bode expiatório
por excelência da direita italiana, pertencem à UE –, em
vista de sua expulsão do território italiano.
Na
sua luta impiedosa contra o suposto aumento da criminalidade,
apresentado como, sobretudo, obra dos imigrantes, o
decreto–segurança permite que os prefeitos organizem
rondas, nas quais se inscreveram centenas de indivíduos,
especialmente xenófobos e fascistas, desejosos de
descarregar suas frustrações no primeiro estrangeiro,
jovem, cabeludo, homossexual, mendigo, cigano etc. que
encontrarem. Paralelamente a essas medidas, no clima de medo
e racismo exacerbados que se criou na Itália, organizam–se
hoje cada vez mais associações e comitês espontâneos de
rondistas – "Vêneto seguro", "Sentinelas
antidegradação", "Voluntários para a defesa
civil", "Milão mais seguro", "Socorro
Monza", entre outras.
Com
a perigosa entrega à população civil de prerrogativas do
Estado, a península ameaça afundar–se em verdadeiro
faroeste à italiana, onde os bandidos são, todos,
estrangeiros, e os mocinhos o que há de mais conservador e
repulsivo na população italiana. Após o estupro da
Caffarella, rondistas locais colocaram–se em ação, na
procura dos culpados, aplaudindo a aprovação do decreto
antiestupro, que oficializa as rondas e alimenta
poderosamente a visão xenofóbica difundida incessantemente
pelo governo e grande mídia. Visão de que estrangeiros
chegados à Itália à procura de trabalho – nigerianos,
tunisianos, brasileiros, colombianos, romenos, –, ao igual
do que fizeram os milhões de emigrantes italianos entre
1875 e 1960, através de todo o mundo, são os responsáveis
pela enorme crise, principalmente econômica, que se abate
sobre o povo italiano.
(*)
Florence Carboni, italiana, é doutora em Lingüística,
professora do curso de Letras (Italiano) da UFRGS.
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