Cohn-Bendit
pede desculpas
Por
Mário Maestri (*)
Correio da Cidadania,
24/03/08
Daniel
Cohn-Bendit acaba de pedir às novas gerações que esqueçam
o Maio Francês, já que não mais existiria o mundo contra
o qual lutou há quarenta anos. Para não deixar dúvidas
sobre o dito, pontificou que aquele "passado
morreu" definitivamente, antes de sair em tour mundial
para divulgar livro de entrevistas denominado inicialmente
com o título lapidar de "Forget 68".
Negando a
contemporaneidade de 1968, Cohn-Bendit associa-se com
destaque ao esforço em reduzir aquelas jornadas a mera
mobilização juvenil contra o mundo dos genitores.
"Sessenta e oito foi a revolta dos jovens contra o
mundo criado por seus pais [...] após a guerra, [...] rígido
e conservador [...]", pontificou o ex-militante do
Movimento 22 de Março, da Universidade de Nanterre. Os
novos direitos das mulheres, homossexuais, minorados etc. e
a consciência ecológica de pós-68 teriam criado um mundo
verdadeiramente novo, tornando anacrônicas lutas velhas de
quatro décadas, inadequadas a sociedade que soube se
recriar permanentemente.
Os sucessos
de 1968 foram esforço de ruptura revolucionária da ordem
capitalista e de construção de socialismo democrático e
revolucionário que garantisse, nos limites das
possibilidades históricas, a realização da humanidade.
Foram movimentos de rebeldia com epicentros nos EUA, Itália
e Alemanha Federal, que alcançaram ápice em 1968 na greve
geral dos trabalhadores franceses, desmobilizada e liquidada
pelo Partido Comunista Francês.
Às
jornadas de 1968 seguiram-se duríssimas lutas mundiais
entre o capital e o trabalho, com confrontos memoráveis
como os do Vietnã, Laos e Camboja; do Chile (1969-73); de
Portugal (1974-76); da Nicarágua (1979-1990) etc. Enormes
movimentos de insurgências pelo tsunami liberal-conservador
que, sobretudo desde 1989, engoliu através do mundo, com
fome pantagruélica, conquistas sociais obtidas nas décadas
anteriores.
É
precisamente a vigência das reivindicações, esperanças e
experiências de 68 que enseja o esforço mundial,
fortemente midiatizado, por seu arquivamento definitivo.
Projeto que se apóia fortemente em muitos dos então jovens
protagonistas, daqueles sucessos conquistados sob a dura
pressão da derrota histórica dos trabalhadores, pelas
benesses, facilidades e seguranças garantidas aos que
defendiam com destaque os privilégios contra os quais
lutavam no passado.
Os grandes
movimentos sociais são normalmente associados a indivíduos
tidos como protagonistas excelentes, não raro por
conseguirem orientar os sucessos que vivem segundo suas
necessidades e tendências profundas. É quase automática a
identificação de Marat e Robespierre à Revolução
Francesa, de 1789; de Zapata e Pancho Vila à Revolução
Mexicana, de 1910; de Lenin e Trotsky à Revolução Russa,
de 1917; de Fidel e do Che à Revolução Cubana, de 1959.
Há, porém,
jornadas luminares como a Comuna de Paris, de 1871, que
passaram à historia sem associação a indivíduos
singulares, sobretudo como fruto dos esforços e sacrifícios
de milhares de trabalhadores e populares, homens e mulheres
- os communards.
Nos tempos
atuais, ações multitudinárias são fusionadas a indivíduos,
não raro por razões fortuitas e, cada vez mais, pelas
necessidades da mídia, transformando-os, mais do que em líderes,
em verdadeiros símbolos dos movimentos em questão. Foi o
que de certo modo ocorreu com o Maio Francês, ligado
fortemente às imagens de jovens como Daniel Cohn-Bendit,
Alain Krivine e Jacques Sauvageot que, mesmo através de
suas pequenas organizações, pouco ou quase nada
influenciaram sucessos que transbordaram rapidamente os
marcos da mobilização estudantil, ao serem abraçados
fortemente pelas classes trabalhadoras e populares.
A fusão da
história a indivíduos tende à qualificação da primeira
a partir de atos privados ou públicos dos segundos: atos
realizados eventualmente no calor dos sucessos, alguns anos
após eles ou até mesmo décadas mais tarde. Essa visão
ingênua dos sucessos sociais nasce da compreensão da história
como produto da ação de homens providenciais, de naturezas
transcendentes ao próprio devir histórico. Para tal percepção,
para o bem e para o mal, as ações desses demiurgos
contaminariam e definiriam os fatos históricos que eles
teriam criado.
Não há
razão para duvidar da honestidade da defesa, em 1968, de
Daniel Cohn-Bendit, então com 23 anos, do socialismo libertário,
quando era alimentado pela força da insurgência do
estudantado e operariado francês. Por mais que isto
incomode, não há também motivo de espanto na traição
daquelas posições, sob a terrível constrição ensejada
pela recomposição autoritária das instituições do
grande capital, com força avassaladora sobretudo nas últimas
duas décadas.
Em maio de
1968, Dany, dito 'O Vermelho' por seu socialismo radical e
cabelos ruivos, atacava as instituições que balançavam
sob a dura mobilização operário-estudantil-popular. Com o
refluxo social que se impôs anos mais tarde, a própria
necessidade de manter o protagonismo que as jornadas
revolucionárias lhe asseguraram contribuiu certamente para
seu crescente acomodamento à ordem que antes combatera.
Se em 68
Dany le Rouge pregava a revolução sobre as barricadas
parisienses, hoje ele se esforça para reparar os arranhões
feitos nas instituições que o alimentam, cercado pelas múltiplas
secretárias e assessores que lhe cabem por direito como
deputado e líder do bloco ecologista do Parlamento Europeu.
O que, folga dizer, lhe garante igualmente salário que não
envergonharia sequer a deputado brasileiro - 250 mil reais
ao ano! Fora as tantas outras mordomias vencidas pelos
defensores excelentes do grande capital.
A
Cohn-Bendit faltou apenas a fibra moral e social para viver
a sua vida, coerente com suas idéias, à margem dos
holofotes e das benesses dos serviçais do poder, como
fizeram, através do mundo, centenas de milhares de atores,
mais ou menos anônimos daqueles sucessos. Cohn-Bendit não
praticou, porém, sozinho o ato de contrição interessado.
Na França, foram importantes as defecções de lideranças
e intelectuais soixante-huitards, como, entre outros, Alain
Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e Stéphane Courtois,
convertidos às maravilhas do elogio do capitalismo e do
imperialismo.
Na Alemanha
não foi diverso ao resto do mundo. No Partido Verde,
Cohn-Bendit teve como acompanhante excelente outro líder
estudantil de 1968 em Berlim, Joschka Fischer, que, para
obter e se agarrar ao poder contra o qual lutara, chafurdou
no sangue europeu ao participar como Ministro do Exterior do
governo de Schröder (1998-2005), da agressão da OTAN,
comandada por Bill Clinton contra a população sérvia.
Comandou
assim a primeira intervenção da Wehrmacht fora da Alemanha
após 1945, precisamente nos territórios de onde fora
expulsa havia mais de meio século pela guerrilha popular
comunista balcânica. Na época da agressão contra a Iugoslávia,
Cohn-Bendit, que saltava do vermelho-negro do socialismo
libertário para o verde-branco do ecologismo pacifista,
defendeu disciplinado os bombardeios da OTAN que arrasaram
aquele país como imprescindível "intervenção
humanitária".
(*)
Mário Maestri é doutor em História pela UCL, Bélgica. É
professor do curso e do programa de pós-graduação em História
da UPF. E-mail: maestri@via-rs.net
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