20 de noviembre, día de la Conciencia Negra. A 313 años
del asesinato de Zumbi dos Palmares
Zumbi caçador de negro?
Por Mário Maestri (*)
Correio da Cidadania, 19/11/08
A proposta de existência de escravidão em Palmares
foi apresentada enfaticamente pela grande mídia quando das
celebrações do terceiro centenário da destruição da
Confederação e morte de seu último dirigente, em 1995.
Seus objetivos eram encontrar gancho para a abordagem do
transcurso e dessacralizar o sucesso referencial do
movimento negro e do mundo do trabalho, naturalizando a
opressão através da idéia de que os oprimidos também
oprimem, logo e quando podem.
Em 1995, a discussão sobre a escravidão palmarina
gorou apenas devido ao sucesso midiático do bate-boca sobre
a eventual homossexualidade de Zumbi. Desde então, a afirmação
retorna intermitentemente na mídia e em estudos historiográficos,
sem que documentação histórica probatória seja
apresentada. Continuamos a contar somente com frágeis referências
a cativos que, libertados à força pelos palmarinos,
adquiririam a plena cidadania apenas após recrutarem outros
cativos para os quilombos.
Contribui igualmente para essa despropositada afirmação
a frouxidão conceitual e epistemológica atual das ciências
sociais, devido à quase geral renúncia à idéia do
passado como fenômeno objetivo capaz de ser reconstituído
essencialmente pela ciência histórica. A historiografia
tem sido reduzida à mera reconstituição literária do
ocorrido, e o passado à realidade maleável segundo os
interesses do presente.
Saltos lógicos
Na falta de documentação, apóia-se a tese da
escravidão quilombola na provável retomada de práticas
escravistas africanas nos mucambos da serra do Barriga. A
equação é simples: se na África tinha, por que diachos não
teria também aqui? Destaque-se que a equação traz
imbricada a velha apologia de que os negreiros apenas
transferiam os homens e mulheres de uma escravidão de bárbaros
para a servidão cristã e civilizada na América. E sem nem
mesmo pagarem a passagem!
O artigo "O enigma de Zumbi", de Leandro
Narloch, publicado na indefectível Veja (19 de novembro),
após lembrar que a idéia de Palmares libertário surgiu
nos anos 1960 e 70 sob "influência do pensamento
marxista", afirma que, nos "novos estudos", o
"retrato que emerge de Zumbi é o de um rei guerreiro
que, como muitos líderes africanos do século XVII, tinha
um séqüito de escravos para uso próprio". Folga
dizer que o jornalista se cuidou em não citar os referidos
"novos estudos".
A defesa da escravidão palmarina apoiou-se no
silogismo de que não haveria sentido em falar "em
igualdade e liberdade numa sociedade do século XVII porque,
nessa época, esses conceitos não estavam consolidados
entre os europeus" e seriam "impensáveis"
nas culturas africanas. Corroborando a proposta, o
historiador Manolo Florentino, autor de livro de título
sugestivo - Paz das senzalas -, reconstrói o passado a
partir de pinote lógico apoiado em premissas fajutas:
"Não se sabe a proporção de escravos que serviam os
quilombolas, mas é muito natural [sic] que eles tenham
existido, já que a escravidão era um costume fortíssimo
[sic] na cultura da África.".
Servidão doméstica
Por ignorância e oportunismo, os negreiros europeus
identficaram como escravidão as múltiplas formas de servidão
doméstica da África pré-colonial. Prisioneiros de guerra,
condenados da justiça, indivíduos sem famílias,
estrangeiros etc. eram incorporados às famílias extensas,
com obrigações e direitos delimitados. Casavam, tinham
bens, integravam a comunidade e, em poucas gerações,
extinguia-se a lembrança da origem inferior. A posse
comunitária da terra e o caráter semi-natural da economia
impediam que tais formas de dominação se degradassem na
exploração escravista americana, regida pelo açoite de
mercado de fome pantagruélica. Identificar servidão
africana e escravidão colonial é procedimento analítico
inaceitável.
O caráter relativamente benigno daquela servidão
devia-se em boa parte à incapacidade e falta de sentido nas
sociedades domésticas africanas em investirem
substancialmente recursos na subjugação desses agregados.
Fenômeno ainda mais premente em comunidades de resistência,
como os quilombos, que dependiam do consenso para furtarem-se
aos ataques permanentes dos escravistas. É até
interessante imaginar os mocambeiros ocupados no combate aos
escravistas e de olho nos seus cativos, para que não
fugissem e se ... aquilombassem!
E, mesmo que a África tivesse sido sociedade
escravista - então, por que exportaria cativos? -, deduzir
instituições do Novo Mundo de instituições da África
Negra é outro tropeço epistemológico primário. Os
quilombos palmarinos e todos os demais foram instituições
americanas, e não africanas, nascidas da oposição à
escravidão. Quando muito, e nem sempre, eles reelaboraram
elementos culturais africanos, já que era materialmente
impossível restaurar, no Brasil, a vida do continente
negro.
Um Novo Mundo
Os próprios títulos angolanos utilizados em Palmares
- nzumbi, nganga nzumba etc. - ganharam no Brasil conteúdos
diversos aos que tinham na África. Nesse sentido, como já
foi exaustivamente proposto, fenômenos como o kilombo dos
yagas, nos sertões da atual Angola, muito pouco têm a ver,
no essencial, com o fenômeno identicamente nomeado no
Brasil escravista.
Entre as inúmeras sandices do jornalista da Veja,
destaca-se certamente a pérola de que o palmarino "não
lutava contra o sistema da escravidão". Proposta que
reduz aquela população e todos os quilombolas à situação
de verdadeiros energúmenos, já que viviam, apenas por
querer, metidos na mata, em cima dos serros, por entre
cobras e lagartos, longe das maravilhosas praias de areias
brancas das Alagoas da época!
Desde os anos 1950, autores como Benjamin Péret, Clóvis
Moura, Édison Carneiro, José Alípio Goulart, Décio
Freitas empreenderam detidos estudos sobre as comunidades
quilombolas que realçaram as inevitáveis contradições
entre os mocambeiros e o interesse que tinham em manter-se
distante dos escravizadores, sem perder a possibilidade de
estabelecer trocas com os mesmos. Tudo isso tem, no mínimo,
meio século de vida.
Sobretudo, esses e tantos outros autores sugeriram e
apontaram o que foi essencial e único na experiência
quilombola, nos limites determinadas pelas condições
materiais da época: seu caráter necessariamente libertário,
já que eram comunidades em contradição insuperável com a
opressão escravista - desculpem- a formulação marxista.
Uma liberdade que se materializava nas solas dos pés dos
fujões e nos braços armados dos quilombolas, e não em
discussões conceituais sobre a igualdade e a liberdade cívica
entre os homens, em quimbundo ou latim!
(*) Mário Maestri é historiador e professor do
Programa de Pós-Graduação em História da UPF. E-mail:
maestri@via-rs.net
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