Rebelo em verde, amarelo, branco, azul anil...
Por Mário Maestri (*)
Consciência.net.blogspot,
Maio 13, 2009
Os
crimes cometidos contra a população e a nação paraguaias
são de exclusiva responsabilidade das classes dominantes
brasileiras, como um todo, e das facções liberais
argentinas e uruguaias de então.
Aldo Rebelo serviu-se de simples proposta de deputados paraguaios ao
Parlamento Mercosul para publicar, no poderoso Estado de São
Paulo, de 1º de maio, dia internacional dos trabalhadores,
desbragada defesa da ação criminal do Império, quando da
destruição do Paraguai como nação independente, em
1864-1870. A diatribe foi publicada dias antes da chegada de
Fernando Lugo, na procura de rediscussão do acordo imposto
pela ditadura brasileira, nos anos 1970, quando reinava no
Paraguai Alfredo Strossner, o sinistro ditador morto há
alguns anos, em Brasília, em exílio dourado, concedido sem
qualquer ranger de dentes.
Rebelo não se opõe a “Memorial da Guerra da Tríplice Aliança" a
ser organizado pelo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Indigna-se, porém, com a possibilidade de que tenha como
objetivo rememorar o “genocídio levado a cabo contra o
povo paraguaio”, que define como “ignomínia contra o
Brasil”. Para apoiar sua defesa incondicional da ação do
Império contra a pequenina nação, desenvolve desbragada
manipulação nacional-patriótica da verdade e do método
históricos, ao estilo “verde, amarelo, branco, azul anil....”,
dos anos 1970. Nada estranho nos atuais tempos bicudos, se o
deputado não se assinasse comunista.
Abraçando o irracionalismo e o relativismo histórico, Rebelo propõe ser
impossível escrever história isenta da guerra, pois as análises
sobre ela variariam segundo os “autores e as conjunturas”.
Fulmina as leituras do “passado com as lentes do
presente”, talvez sugerindo que deva ser analisado com os
olhos do passado ou do futuro! Defende que, para se ter
“conclusões irrefutáveis” sobre “aspectos
controversos da guerra”, faltariam sobretudo “muitos
documentos a apresentar”. Proposta paradoxal para apoiador
de governo que rejeita caninamente a exigência dos
historiadores ao direito de consulta de documentos sobre o
conflito classificados como secretos pelo atual governo!
O mal
uso da história
Rebelo empreende igualmente passeio sumário na historiografia do conflito.
Sempre apoiado na atual historiografia nacional-patriótica
restauracionista, esclarece que as “primeiras interpretações
tecidas nos panteões oficiais” – em geral por oficiais
das forças armadas – teriam sido sucedidas por
“criticismo exarcebado”, que define como “revisionismo
infantil”. Fulmina, assim, sem ter a coragem de citar, o
estudo Genocídio americano: uma história da Guerra do
Paraguai, do jornalista Júlio Chiavenatto, que, apesar de
seus indiscutíveis limites, contribuiu corajosamente,
durante a ditadura, ao esclarecimento da ação – esta sim
ignominiosa – do governo imperial no Paraguai.
Promove paradoxal defesa do imperialismo inglês no Prata, ao propor que o
Império Britânico, além de não ter responsabilidades no
conflito, teria tentado “pôr panos quentes na desavença”!
Destaque-se que, em Cartas dos campos de batalha do Paraguai,
o diplomata britânico sir Richard F. Burton [1821-1890]
registrou, sem papas na língua, a visão geral das classes
dominantes da grande potência imperialista: “Minhas
simpatias vão para o Brasil, pelo menos enquanto sua
‘missão’ for desaferrolhar [...] o grande Mississipi do
Sul.”
Na sua empolgação nacional-patriótica, desatento à própria linguagem
– surpreendente para autor de proposta de lei supostamente
destinada a proteger a língua portuguesa da ingerência
externa –, afirma nada menos do que o “nosso [sic] Império
escravista” seria “pacifista”, escamoteando com sua
apologia as múltiplas intervenções imperialistas do
Segundo Reinado no Prata, entre 1851-1876! Registre-se a
paradoxal apresentação do exército imperial como
vanguarda da Abolição! [...] o Segundo Reinado era
pacifista [...], e foi a guerra que conferiu a esta força
militar fôlego e consciência para se reorganizar e se
consolidar como instituição decisiva, a ponto de ser
protagonista das rupturas históricas representadas pela
Abolição [...].”
Para inocentar os crimes realizados na guerra, apoiado em “pesquisadora
americana [sic]” – estadunidense, prezado deputado! –,
impugna a estimativa de 1,1 milhões de habitantes para o
Paraguai, que reduz para 320 mil, dos quais “60 mil”
teriam morrido “durante a guerra”. O paradoxal no raciocínio
é que, se esses números forem corretos, o Paraguai teria
perdido em torno de 20% de sua população! Um verdadeiro e
indiscutível genocídio! A minoração apologética
extremada da população paraguaia deixa também em péssimos
panos o Império que, com mais de nove milhões de
habitantes, necessitou de seis anos, dezenas de milhares de
mortos e recursos impressionantes para se impor a país,
segundo proposto, na época, com uma população menor do
que a da província do Rio Grande do Sul – 430 mil
habitantes, em 1872!
Guerra
entre nós, paz com os senhores!
A avaliação histórica de Rebelo do grande conflito é de relativismo
patriótico paradoxal. No conflito, o Paraguai teve suas razões
e seus heróis, ao igual que o Brasil. “Cabe-nos”,
apenas, “perfilar os heróis de cada lado”, cantando,
cada um, paraguaio e brasileiro, loas aos seus feitos patriótico-militares.
Os combatentes paraguaios merecem a honra eterna de seus
compatriotas”, como “os mais de 50 mil brasileiros
mortos merecem e aguardam o reconhecimento plena da Pátria,
pois foi por ela e em nome dela que pereceram [...]” –
propõe o deputado.
Visão que liquida qualquer possibilidade de construção de interpretação
geral da história, desde o ponto de vista dos povos e dos
oprimidos, ao reduzi-la a realidade de valores e parâmetros
essencialmente nacionais-patrióticos, que irmana oprimido e
opressores. No frigir dos ovos, Rebelo substitui o grito
sintética sobre a falta de contradição entre os oprimidos
de todo o mundo, lançado há 161 anos, com a velha proposta
nacional-patriótica de que os “proletários e povos de
todo o mundo devem unir-se ......... sob o mando das suas
respectivas classes dominantes!”
Sem dúvidas a “historiografia ainda tem um longo caminho a percorrer”
para elucidar todos os aspectos daquela guerra fratricida.
Porém, ao contrário do que propõe Rebelo, não há hoje dúvidas,
entre os especialistas não dogmáticos, sobre o caráter
socialmente avançado do Paraguai, nascido das suas
singularidades históricas que deprimiram o surgimento de
classes proprietárias e comerciais, ensejando o
desenvolvimento de poderosa classe de pequenos camponeses
proprietários ou arrendatários, sobretudo das grandes
fazendas públicas do país. Principal base social dos
governos nacional-jacobinos paraguaios do dr. Francia e de
Lopez pai e filho.
Contra-revolução
liberal
O sentido da Guerra contra o Paraguai explicita-se plenamente após o
conflito, quando o país, sob governos fantoches e liberais,
foi obrigado a endividar-se para pagar, por décadas,
indenizações draconianas ao Brasil e à Argentina e perdeu
boa parte de seus territórios em favor desses países. A
Guerra constituiu sobretudo espécie de implantação sob as
forças das armas, com o apoio indiscutido da Inglaterra, de
ordem liberal-mercantil no país. A partir dos anos de ocupação
militar pelos exércitos do Império brasileiro,
privatizaram-se aceleradamente as fazendas públicas, os
ervais, as reservas florestais e constituíram-se grandes
latifúndios, em geral propriedades de estrangeiros –
argentinos, ingleses, brasileiros, paraguais
colaboracionistasetc.
Desde a independência, em 1810, até o fim do sangrento conflito, em 1870,
o Paraguai fora caso único de estabilidade política e
social na América do Sul. Ao desorganizar para todo o
sempre o poderoso campesinato de origem guarani, derrotado e
profundamente dizimado durante a guerra, o conflito lançou
aquela nação em uma situação de instabilidade e
ditaduras militares, permanentes cortejadas e manipuladas
pelos grandes interesses econômicos sobretudo do Brasil e
da Argentina.
Alfredo Strossner manteve, de 1954-1989, uma das mais longevas, corruptas e
desapiedadas ditaduras latino-americanas, ao dar as costas
à Argentina e obter o apadrinhamento permanente dos
sucessivos governos brasileiros. Foi durante o seu governo
que os ditadores em turno no Brasil ditaram as condições
draconianas que permitiram a construção da Usina Hidroelétrica
de Itaipu Bi-nacional. Fernando Lugo elegeu-se defendendo
precisamente uma rediscussão desses acordos espúrios e a
devolução parcial das terras arrancadas ao campesinato
paraguaio, hoje em boa parte nas mãos de grandes
sojicultores brasileiros.
Por
uma história e política dos povos
Os crimes cometidos contra a população e a nação paraguaias são de
exclusiva responsabilidade das classes dominantes
brasileiras, como um todo, e das facções liberais
argentinas e uruguaias de então. No Brasil, na Argentina,
no Uruguai, a população pobre partia, não raro, manietada
e tratada como gado, para ir lutar em conflito que
literalmente abominava, pois tudo tinha a perder e nada a
ganhar na luta contra os irmãos paraguaios.
Na Argentina, os gauchos desertaram e levantaram-se em armas aos milhares
contra os governos liberais de Mitre e Sarmiento que
agrediam sua autonomia provincial e os direitos nacionais
paraguaios. No Brasil, a negativa do homem livre em partir
para o Prata obrigou a compra e libertação de cativos
destinados a morrer sob bandeira negreira que manteria nos
grilhões, por ainda quase vinte anos, seus irmãos. Durante
a guerra, os quilombos brasileiros regurgitaram de
desertores, que compreendiam que, se “deus é grande, o
mato é maior!”
Ao contrário do que afirmam os proprietários das riquezas e do poder e
seus intelectuais arrendados, não houve, ontem, como não há
hoje, contradições entre os trabalhadores e trabalhadoras,
entre os homens e as mulheres de bem das nações
latino-americanas. O “Memorial da Guerra da Tríplice
Aliança” que devemos construir deverá cimentar a aliança
dos trabalhadores, pobres e oprimidos latino-americanos e
celebrar o martírio dos populares e combatentes guaranis,
brasileiros, argentinos e uruguaios, ceifados no altar dos
mesquinhos interesses das suas classes dominantes nacionais.
(*) Mário Maestri, 60, é doutor em História pela UCL, Louvain, Bélgica.
Foi preso e refugiado durante a Ditadura Militar brasileira.
É atualmente comunista sem partido. E-mail:
maestri@via-rs.net
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