Mais do que a perda territorial e a
enorme indenização paga pelo Paraguai, a grande chaga na
carne daquela população foi a liquidação da forte
comunidade camponesa.
Em 1º
de março, celebrando os 140 anos do fim da Guerra Grande
[1864–70], no Parque Nacional Cerro Corá, onde Francisco
Solano López caiu lutando no último ato de resistência, o
vice–presidente paraguaio exigiu a devolução do célebre
canhão El Cristiano, trazido como botim de guerra ao
Brasil, hoje no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.
Federico
Franco, na presidência devido à viagem de Lugo ao Uruguai,
afirmou que o Paraguai “nunca vai cicatrizar a ferida da
epopéia de 1865 a 1870 se o Brasil não devolver o arquivo
militar que injustificadamente retém hoje, como também o
canhão Cristão [...].” Disse esperar que a
“mensagem” chegasse a Lula da Silva, para que as devoluções
fossem feitas logo, pois considerava “incrível” que o
Brasil mantivesse “troféus da guerra”, quando a
Argentina e o Uruguai devolveram as últimas recordações
daquele excídio. O pedido já fora feito no ano passado.
*
* *
Desde
1810, a pressão expansionista de Buenos Aires forçara o
Paraguai, para defender sua independência, a esforço autárquico
que manteve e expandiu sua produção artesanal e pequeno–manufatureira,
enquanto esses setores eram aniquilados na Argentina, Brasil
e Uruguai, pela importação de manufaturados ingleses, de
melhor qualidade e preço.
Conscientes
da insularidade paraguaia, as autoridades guaranis esforçaram–se
em apoiar na medida do possível a defesa do país na produção
local de armamentos. Após a morte,
em 1840, do dr. José Gaspar Rodriguez de Francia, fundador da nação, o presidente Antônio
Carlos López enviara, em 1853–54, o filho à Europa, com,
entre outras tarefas, a de contratar técnicos para a
modernização do país. Desta modernização fez parte a
fundação de siderurgia de El Rozado, em Ybycuí, em 1854,
destinada à produção de implementos agrícolas e
armamentos. A pequena siderúrgica teria sido levada em 1869
para o Brasil, também como presa de guerra.
Desde
o início do confronto, o Paraguai enfrentou a Tríplice
Aliança com enorme inferioridade de armamentos. O controle
do Plata pela Argentina e pelo Império determinou que os exércitos
guaranis lutassem durante quase cinco anos sem receber
qualquer armamento do exterior, enquanto sobretudo o Brasil
comprava o que havia de melhor na Europa.
Durante
a guerra, o Paraguai resistiu galvanizando a produção autóctone.
Realizou enorme esforço quanto à fundição de canhões de
ferro e bronze que, em parte, funcionavam com granadas lançadas
em profusão pela artilharia imperial, já que em boa parte
não explodiam.
Como
parte deste esforço de guerra, foi fundido em Ybycuí e
finalizado no arsenal de Assunção, canhão de doze
toneladas, fundido com o cobre de parte dos sinos das
igrejas do país, lançando balas esféricas de dez
polegadas. O El Cristiano estreou na batalha de Curupaity,
em 22 de setembro de 1866, a mais estrondosa derrota da Tríplice
Aliança. Mais tarde, com o resto dos sinos e com panelas de
cobre, produziu–se outro canhão semelhante, o também
famoso El Criollo. Dois outros célebres canhões nascidos
da arte paraguaia foram o General Díaz, um fracasso, e o Acã
Verá.
El
Cristiano foi levado para Humaitá, onde se mostrou, com os
demais canhões paraguaios, ineficaz contra os encouraçados
imperiais. A fortaleza e duas centenas de canhões, entre
eles El Cristiano, foram abandonadas aos inimigos pela
guarnição, em inícios de 1868. El Criollo escapou por
algum tempo do triste destino do irmão mais velho, sendo
capturado com a rendição da defesa de Angostura, em
dezembro de 1868.
*
* *
No
dia 3 de março, Lula da Silva teria determinado o fim do
longo seqüestro de El Cristiano. Sobre os importantes papéis
mantidos em sigilo, nada foi dito ou decido.
Tramita
na Câmara dos Deputados regulamentação do direito de
consulta da documentação pública. Em geral, na Europa e
nos USA, o governo pode manter documentos sob sigilo por
cinqüenta anos. No Brasil, o Estado mantém a tradição
majestática colonial de guardar sob chaves indefinidamente
os papéis, quando quer. Nessa situação encontram–se
documentos sobre a expansão das fronteiras do Brasil, a
Guerra do Paraguai, a ditadura militar, os acordos para a
construção de Itaipu.
No
projeto de lei, o Estado manteria papéis sob sigilo por até
setenta e cinco anos! Proposta que determinaria a
publicidade imediata dos documentos sobre a Guerra do
Paraguai. E empurraria com a barriga, por alguns anos, os
sobre a ditadura e Itaipu. Ambos, assuntos candentes, devido
aos crimes de Estado de 1964–85 e às condições impostas
pela ditadura brasileira à paraguaia, quando daquele acordo,
e às denúncias de mortes e torturas de operários durante
as obras da usina.
Parece
difícil que as feridas abertas pela guerra cicatrizem–se
com a devolução do botim e revelação da documentação.
Mais do que a perda territorial e a enorme indenização
paga pelo Paraguai, a grande chaga na carne daquela população
foi a liquidação da forte comunidade camponesa proprietária
e arrendatária, que entregou literalmente a vida combatendo
o avanço de invasores. Ela sabia ou intuía que eles
chegavam para impor a ordem liberal–latifundiária
reinante em suas nações.
(*) Mário Maestri, 61, historiador,
é professor do Programa de Pós–Graduação em História
da UPF. E–mail: maestri@via–rs.net