Haciendo memoria

Paraguai: Revolução e Genocídio

O Mau Uso da História[1]

Por Mário Maestri[2]
Para Socialismo o Barbarie, 30/03/2012

“Assistir a um baile oficial em Assunção era como estar em Paris.”
(Núñez, Ronald León. Guerra do Paraguai: revolução e genocídio)

Resumo

Com o final da Guerra Grande, dominou no Paraguai a historiografia dos vencedores, questionada a seguir por leituras patrióticas com Solano López como demiurgo nacional. Já quando do conflito, autores apontaram para razões profundas da guerra. Em 1962, Oscar Creydt empreendeu interpretação estrutural do passado paraguaio, que teve muitas de suas limitações superadas nos anos 1970-80. Em 2011, no II Centenário da Independência, dois autores propuseram leituras marxistas do passado. Em Revolución y genocidio: El mal ejemplo de la independencia paraguaya y su destrucción, R. L. Núñez regatou as visões nacional-patrióticas e sufocou as contradições classistas e o caráter camponês do conflito, apresentado como saga da burguesia paraguaia em luta pela emancipação nacional.

1. Paraguai: o combate historiográfico

Entre a população paraguaia, é forte o condicionamento dos sentimentos contemporâneos a partir das visões sobre o passado, em geral, e a Grande Guerra [1864-1870], em especial. Desde a segunda metade do século 19, subsiste na população memória sobre espécie de idade de ouro perdida naquele confronto. Com o passar dos anos, a opacidade crescente sobre aqueles sucessos foi preenchida por tradições construídas que embaralham fortemente a compreensão das raízes do drama histórico paraguaio.

Após 1870, foram impostas ao país leituras sobre a formação do Paraguai independente e o grande conflito, segundo as necessidades dos vencedores daquela guerra: o Estado imperial; a Argentina liberal-unitária; o Uruguai colorado; os legionários paraguaios. Essas visões execravam a era francista [1813-1840], eram apenas algo mais condescendentes com o governo de Carlos Antonio López [1841-1862] e, acusavam Francisco Solano López [1862-1870] de ser o único responsável pela guerra fratricida.

A leitura liberal do conflito não supria as necessidades político-ideológicas do novo Estado nascido após a guerra e não garantia consenso mínimo entre uma população que guardava a memória da inquebrantável resistência aos invasores em torno de Solano López. Àquela apologia foi anteposta saga nacional-patriótica com o mariscal como grande demiurgo. Contra o lopizmo negativo liberal-legionário, levantou-se o lopizmo positivo populista-autoritário.[3]

O revisionismo nacional-patriótico delineou um cenário histórico idílico onde a sociedade paraguaia emergia no interior da América do Sul com vocação predestinada, devido a um clima, a um solo, a uma raça, a uma tradição, a uma língua, etc. excepcionais, que produziram um país sem miseráveis, sem criminosos, sem loucos, sem exploração, de fertilidade, salubridade e abundância únicas, onde todos – ou quase todos – eram alfabetizados. Manuel Dominguez [1868-1935] sintetizou essa leitura idílico-fantasiosa na sua célebre conferência, de 29 de janeiro de 1903, proferida em Asunción, sobre as “Causas del heroismo paraguayo”.[4]

Para aquela historiografia ufanista, a realidade paraguaia extraordinária teria acelerado fortemente, no longo governo de Carlos Antonio López, superando o atraso do período autoritário francista. Este último, conheceria recuperação historiográfica mais tardia, mais contida e sempre condicional.[5] Sob as ordens de López pai e filho, o Paraguai agigantara-se, conhecendo pioneiramente modernas indústrias metalúrgica, naval e têxtil; ferrovias, linhas telegráficas, etc., despontando como a nação mais avançada e progressista da América Latina, no mínimo.

Expulsão do Paraíso

Para a leitura nacional-patriótica paraguaia, a guerra de 1864-70 fora agressão contra o país exuberante, querida pela Inglaterra ou pelo bloco Argentina-Brasil-Uruguai. Apesar da resistência heróica, comandada por Solano López, general inigualável, a agressão aniquilara literalmente a população adulta masculina; abocanhara enorme parte dos territórios pátrios; endividara o país para sempre, iniciando período de decadência jamais superado. Para muitos paraguaios contemporâneos, a recuperação dos territórios perdidos e indenizações de guerra constituiriam o único caminho para a regeneração nacional.

De forte efeito performativo, essa vulgata historiográfica procurava também encobrir as explicações essenciais daqueles acontecimentos históricos e de suas seqüelas. Porém, mesmo na sua relatividade essencial, encontrava-se não raro mais “próxima” da realidade histórica do que a narrativa liberal-legionária. As fortes singularidades do passado paraguaio e daquele confronto mantiveram-se como fantasmagorias ideológicas, comumente objeto de culto devocional, apoiado sobretudo pelo regime ditatorial colorado paraguaio.

Em 1979, o jornalista mineiro J.J. Chiavenato realizou versão americanista daquela interpretação, introduzindo pioneiramente a problemática revisionista no Brasil, com seu livro Genocídio americano: uma história da guerra do Paraguai, de estrondoso sucesso.[6] Até então, no país, conhecia-se apenas a versão nacional-patriótica brasileira. Ou seja, no geral, relatos obsessivos das glorias militares pátrias e da responsabilidade exclusiva pela guerra do ditador tresloucado. [7]

Genocídio americano celebrizou a versão de conflito querido essencialmente pela Inglaterra (a grande e única vitoriosa do embate), para destruir o país que lhe fazia sombra naquela região do mundo.[8] Destaque-se que o mais célebre lopizta positivo, o paraguaio J. E. O’Leary [1879-1969], afastara-se dessa versão, ao dominar os meandros das fortes disputas entre as nações e nas nações da bacia do Prata, protagonizadas sobretudo pelo Império brasileiro por Buenos Aires. [9]

Raízes Profundas

Já durante a guerra e nos anos posteriores a ela, intelectuais argentinos, brasileiros e uruguaios apontavam para algumas das razões estruturais do conflito, superando as apologias liberais aliancistas, sem caírem nas fantasias populistas e popular-autoritárias posteriores. Entre eles, destacaram-se Juan Bautista Alberdi [1810-1884]; José Hernández [1834-1886], Luis Alberto de Herrera [1873-59]; Raimundo Teixeira Mendes  [1855-1927] , Adolfo Saldías [1849-1914], etc.

No século 20, pensadores marxistas e americanistas ensaiaram explicações parciais essenciais da grande guerra do Prata, no geral quando de análises da formação nacional argentina, fortemente influenciada esta última por aqueles sucessos: inicialmente, Enrique Rivera, José María Rosa, Milcíades Peña, etc.; mais tarde, León Pomer, Moniz Bandeira, etc.

Oscar Creydt [1907-1987], por anos secretário-geral do Partido Comunista do Paraguai, esboçou o primeiro ensaio geral de interpretação categorial-sistemática da história paraguaia – “Formación histórica de la nación paraguaya –, publicado em 1963. Ele fora escrito no ano anterior, na URSS, como esboço de tese de doutoramento jamais defendida, devido ao rompimento de Creydt com a orientação reformista soviética.[10]

Mesmo limitado pelo marxismo stalinista, o texto constituiu sensível esforço de compreensão da formação social paraguaia. Retomando a vulgata dos estágios necessários da evolução social, Oscar Creydt definiu a “burguesia nacional” – formada sobretudo por comerciantes e estancieiros – como protagonista da independência. Isso apesar de ter assinalado o caráter contra-revolucionário daqueles segmentos sociais. [11]

Igual à Europa

Apesar de essa contradição arrastar-se durante toda a sua interpretação, Oscar Creydt assinalou com clarividência a classe dos pequenos e médios camponeses, dedicados tendencialmente à economia de subsistência, como fator determinante da gênese-desenvolvimento da singular formação paraguaia. E apontou o doutor José Gaspar de Francia [1776-1840] como o timoneiro da fundação do Paraguai moderno, surgido da defesa intransigente da autonomia nacional.

Em outra contradição candente, Oscar Creydt definiu o acesso ao comércio mundial e à ampla mercantilização da produção como as grandes necessidades do desenvolvimento paraguaio, no momento em que assinalou como o Estado francista restringiu aquele comércio, para garantir a independência, com o apoio das classes camponesas, de fortes raízes guaranis, desinteressadas nas vinculações exteriores.

Mesmo propondo continuidade entre a ordem francista e lopizta, Oscar Creydt enfatizou a restauração parcial empreendida por Carlos Antonio López, quanto ao alto clero, ao comércio privado, às classes estancieiras, à intervenção na política do Prata, etc. Medidas que determinaram retrocesso relativo dos segmentos camponeses, igualmente afastados na nova ordem dos congressos periódicos, desde então monopólio das classes oligárquicas.

As contradições expressas na leitura de Oscar Creydt apontavam para a necessidade de superação, na análise das nações americanas, da aplicação meramente mecânica de esquemas interpretativos próprios à Europa. Como utilizar sem mediações categorias como revolução burguesa, quando a burguesia [na acepção marxiana] inexistia, mesmo em forma embrionária, em um país como o Paraguai. Ou seja, classe engendrada na produção manufatureiro-industrial, assentada na proletarização de produtor direto obrigado a vender sua força de trabalho como mercadoria.

Pouca Repercussão

Por múltiplas razões nacionais e internacionais, o germinal ensaio de Oscar Creydt não inspirou outros trabalhos, que superassem suas contradições e afirmassem suas conquistas. Apenas uma década mais tarde, o passado paraguaio foi objeto da análise materialista de alta qualidade de Richard Alan White, restrita ao período francista.[12] No mesmo sentido interpretativo, de tema mais restrito, destaca-se também a obra do historiador alemão Peters Heinz, El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865, de 1984, traduzido ao espanhol em 1996.[13]

Em La primera revolución radical de América, o historiador estadunidense empreendeu erudita leitura da gênese do Estado francista como resultado da luta pela independência, contra espanholistas, portenhistas e, finalmente, estancieiros, capitaneada por Francia. Luta sustentada pelos camponeses e pequenos produtores domésticos, artesanais e manufatureiros, desinteressados no comércio mundial, quando não opostos a ele. Segmentos igualmente opostos às intervenções exteriores, tradicionalmente apoiadas nas milícias populares.

Richard White assinala que as restrições ao grande comércio, sobretudo pela oligarquia mercantil portenha, ensejaram o enfraquecimento da oligarquia comercial e exportadora paraguaia [de erva mate, de madeiras, de fumo, etc.] e o fortalecimento da economia camponesa, das aldeias de índios e da produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira, de raízes guaranis, como assinalado. Fenômeno registrado em forma reiterada por observadores contemporâneos aos fatos.

O médico suíço J.R. Rengger viveu no Paraguai de 1819 a 1825. Esse forte crítico do francismo propôs: “La interrupción del comercio produjo otro resultado feliz”, “el acrecentamiento de la industria manufacturera. Hasta entonces solo se habían servido del algodón para fabricar una especie de tela delgada que servía para hacer camisas, pero la necesidad precisó à los fabricantes à labrar tejidos para toda suerte de ropajes. Los ponchos y las mantas para los caballos, que eran de lana, y costaban crecidas sumas que salían anualmente del Paraguay, se fabrican entonces en el país: hasta los telares se perfeccionaron.”[14]

Oscar Creydt assinalara que a chacra – pequena propriedade camponesa –constituíra o eixo central da sociedade paraguaia, devido aos limites da produção latifundiária monocultora de exportação, mesmo antes da era francista. Sociedade camponesa, de indiscutível dinamismo, no contexto de seu caráter fortemente autárquico e da sua simplicidade e rusticidade relativa, destacadas por Oscar Creydt, Richard White e Raul de Andrada e Silva.[15]

Fortemente enfatizada durante o francismo e ainda sólida sob o restauracionismo lopizta, a dominância camponesa qualificou e singularizou a sociedade paraguaia em relação às nações vizinhas, dominadas pela grande propriedade e pelo trabalho escravizado, servil, semi-servil, etc. Entretanto, ainda que apoiada fortemente no pequeno produtor livre e independente, era objetivamente impossível que a sociedade paraguaia alcançasse o nível hiperbólico de desenvolvimento proposto pela historiografia hagiográfica, devido à rusticidade relativa de sua produção agrícola-artesanal camponesa.

2. Revolução e genocídio: o mau uso da história

Em 2011, celebraram-se os duzentos anos da Independência Nacional do Paraguai, sob presidência constitucional que chegara a despertar as esperanças das classes populares e trabalhadoras. As celebrações motivaram importantes reedições e edições, privadas e públicas, de fontes e trabalhos historiográficos sobre o passado daquele país, com destaque para a publicação, pelas Ediciones del Bicentenario, da coleção Doroteo Bareiro, em quatro fortes volumes, com documentos relativos à administração do doutor Francia.[16]

Fatos muito auspiciosos foram os lançamentos dos trabalhos de dois jovens investigadores, Bernardo Coronel e Ronald León Núñez, propondo análises sintéticas da formação paraguaia desde uma ótica marxista, respectivamente, de 1537 a 2011 e de 1811 a 1870. [17] Ou seja, ensaios que se propunham retomar e aprofundar as leituras interpretativas de Oscar Creydt, Richard White, León Pomer, etc.

No presente trabalho, discutiremos Revolución y genocídio: El mal ejemplo de la independencia paraguaya y su destrucción, lançado, em Asunción, em julho de 2011, no ano do bi-centenário, com versão sintética em português, publicada na mesma época, em São Paulo. Trata-se de trabalho explicitamente político-ideológico, onde o autor, Ronald L. Núñez, que se declara militante do pequeno Partido de los Trabajadores paraguaio, asssociado à Liga Internacional dos Trabalhadores, afirma guiar-se pelo “marxismo” e pelos “postulados centrais” da “revolução permanente”, de León Trotsky.[18]

Trotsky vai à Guerra

As duas versões do livro são dedicadas ao Partido de los Trabalhadores e à LIT e trazem “Prefácio” de Nazareno Godeiro, argentino, membro da direção do PSTU e da LIT, que teria vivido por vários anos no Paraguai.[19] Destaque-se inicialmente que o trabalho, apesar das abundantes referências a Trotsky e ao trotskismo, ignora paradoxalmente a importante bibliografia marxista-revolucionária, sobretudo argentina, sobre o tema em questão!

Apoiado sobretudo em revisão bibliográfica, o estudo não se refere a marxista-revolucionários que produziram reconhecidos clássicos abordando o tema em debate, como José Hernández y la guerra del Paraguay, de Enrique Rivera, e La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia, de Milcíades Peña, este último tido por muitos como o mais criativo historiador trotskista argentino.[20]

Revolução e genocídio jamais se constrói como interpretação marxista. Mesmo se propondo analisar as “causas econômicas” subjacentes à história, não aborda as relações de produção e elide os conflitos de classe. As contradições classistas no Paraguai independente são anuladas em prol de pretensa concordância nacional de interesses entre opressores e oprimidos, que substitui a luta entre as classes pela luta entre as nações. As categorias interpretativas não são usadas na acepção marxiana – manufatura, indústria, burguesia, etc. E, a tudo isso, colam-se citações e referências a Marx, Engels, Lênin e Trotsky.

O autor não aborda a encomienda, as aldeias de índios, os obrajes de erva mate e de madeira, as chacras, as estâncias, formas específicas de produção e de materialização da exploração, determinadas fortemente no período francista, em favor dos explorados. Há apenas referência telegráfica à dissolução, por Carlos Antonio López, das aldeias de índios. Ronald L. Núñez circunscreve seu desconhecimento da estrutura econômica paraguaia ao apresentar o extrativismo da erva mate como “agricultura [sic] baseada na monocultura [sic] da erva-mate”.[21]

Não há referência às fazendas pastoris, base econômico-social da oligarquia crioula [“ganaderos uniformados”] que empreendeu a última resistência ao francismo e foi importante vetor social do movimento de restauração que entronizou Carlos Antonio López. A “Estancia da Pátria”, propriedade pública dedicada sobretudo ao financiamento da defesa, é apresentada como espécie de kolcoz. “[...] produzia de forma coletiva e diversificada os produtos agrícolas e o gado bovino de que o povo precisava, além de couro curtido para a exportação.”[22] Ao contrário do proposto pelo autor, as distribuições de bens públicos à população eram realizadas apenas quando de epidemias, de crises alimentares, de fundação de povoações etc.

Ronald L. Núñez violenta a especificidade da propriedade estatal da terra na ditadura do dr. Francia, que literalmente nacionalizou imensos territórios, arrendados comumente aos camponeses, sem prazo, a preços módicos, sem a alienação da propriedade – ou seja, sem a entrega da terra como propriedade privada. [23] Um procedimento que, após a guerra e a restauração liberal, facilitaria a expropriação dos camponeses, com a venda das terras que exploravam. “Uma parte das imensas extensões de terras confiscadas foram entregues como propriedades [...] aos camponeses pobres” que “recebiam do Estado roupas e ferramentas para a lavoura”.[24]

História e Ficção

Abandonando as ricas nuances analíticas de Oscar Creydt, Ronald L. Núñez retoma o pior da leitura do ex-secretário do PCP: a transposição mecânica da realidade européia e a literal criação de direção burguesa para a revolução democrática paraguaia, em gritante negação de interpretação dessa realidade a partir da concepção de revolução permanente, que afirma abraçar! Para Ronald L. Núñez, as grandes tarefas da revolução paraguaia [que afirma abusivamente terem sido perseguidas por Francia] seriam “formar e consolidar uma burguesia nacional independente” e garantir a “livre vinculação do país ao mercado internacional”. [25] Ou seja, sem burguesia nacional, nada de revolução nacional!

Adaptando a realidade à ficção da historiografia nacional-patriótica, Ronald L. Núñez propõe a “burguesia rural” como a classe “mais beneficiada pelas medidas econômicas de Francia”. Burguesia rural que define, inconsciente da contradição que estabelece, como “pequenos proprietários e camponeses livres”! Em verdade, no trabalho, vacila sempre entre a “burguesia rural” e a “pequena burguesia rural e urbana”, como a base social francista. [26]

No mundo dos fatos históricos, os pequenos e médios camponeses, de fortes raízes guaranis, possuíam, ocupavam ou arrendavam nesgas de terra dedicadas à economia de subsistência, enviando ao mercado o pequeno excedente produzido. Na colônia, eles haviam sofrido permanentemente a forte pressão dos terratenientes, sobretudo estancieiros, sequiosos das propriedades e da força de trabalho dos chacareros e das aldeias de índios. Pressão fortemente arrefecida no francismo, devido à repressão aos grandes proprietários e ao decaimento da econômica de exportação.

Ronald L. Núñez retoma a proposta de Oscar Creydt, sempre sem as nuances daquele autor, de continuidade harmônica entre francismo e lopizmo. “Era o sucessor de Francia em sua jornada rumo à consolidação de um Paraguai cada vez mais surpreendente [sic] [...].” Diante dessa proposta, como interpretar a prisão e assassinato de Policarpo Patiño, o primeiro homem de Francia, dias após a morte do ditador? Ou como explicar a derrota do francismo e de seu candidato, Norberto Ortellado, pelos lopiztas, no congresso de março de 1841?

A proposta de harmonia estrutural entre francismo e lopizmo não permite igualmente compreender a repressão à agitação do programa francista, através do bando consular lopizta, de 31 de dezembro de 1841, que proibiu as discussões sobre o francismo, por servirem para apresentar o ditador como “necesario en la República, echando de menos su Régimen, con desaire de la presente administración” – ou seja, da administração de Carlos Antonio López.[27]

Ronald L. Núñez ignora as contradições políticas e sociais, em prol de sua proposta de “burguesia progressista”, na direção do Estado, sem contradições com os explorados, cumprindo as necessidades dos mesmos. Não justifica igualmente sua proposta do “caráter burguês”, “claramente progressista”, da oligarquia pré-capitalista surgida em torno de Carlos Antonio, com destaque para sua família, através da apropriação de bens e direitos públicos. Após 1852, com a retomada do comércio internacional, valorizou-se o preço do cativo, deprimido no francismo. Então, os filhos do presidente, com destaque para Solano López, compravam-nos abundantes ao Estado, a preços de pai para filho.[28] Esta foi apenas uma via, e certamente a menos importante, da apropriação de bens e direitos públicos pelo núcleo social oligárquico organizado em torno de Carlos Antonio López.

As aldeias de índios fortaleceram-se no francismo, devido à defesa das mesmas pelo ditador e à depressão dos estancieiros e do comércio internacional. Ronald L. Núñez aborda sumariamente a dissolução das mesmas e a declaração de “suas terras como propriedade” do Estado. Um processo que entregou terras aos segmentos nativos superiores e lançou na proletarização, os inferiores. [29] Essa dissolução era reivindicada pelos encomenderos e latifundiários desde a Colônia, interessados nas terras e na força de trabalho das aldeias.

Historiografia Nacional-Populista

 Ronald L. Núñez retoma sem peias os desvarios historiográficos ufanistas sobre a grandeza e o esplendor nacional, que recua paradoxalmente para os primeiros tempos francistas. Ignora em forma absoluta os limites impostos pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais e das relações sociais de produção ao desenvolvimento material do Paraguai francista e lopizta.

Para ele, já no início do francismo, o bloqueio comercial portenho forçara “processo embrionário de industrialização de algumas matérias primas. A indústria manufatureira doméstica [sic], como as de tecidos, sapatos, ferraria, serralheria, prataria, ourivesaria” crescera “notavelmente devido ao desenvolvimento do campo em seu grau máximo [sic]”. Iniciara-se “moderado, porém progressista, processo de industrialização.”[30]

É abnormidade historiográfica propor para o início do francismo “indústria estatal” que crescera “a tal ponto que em 1815” – após dois anos de governo de Francia! – eram “lançados os primeiros navios”; “programa de construção de estradas e de pontes”, de “pavimentação de ruas”, de “iluminação”, de “mercados públicos”, etc.[31]

Em importante investigação arquival, Richard White revelou o comprometimento dos escassos recursos públicos sobretudo no exército, durante a era francista! Destaque-se que a formação de um exército profissional, em um país que sempre apoiara sua defesa nas milícias populares, era iniciativa fortemente apoiada pelas classes camponesas, exauridas em sua força de trabalho e recurso pelo serviço militar.

Em 1816, o quarto ano da era francista, 84 % dos recursos público fora investido no exército e 6,8% , nas obras públicas; em 1818, respectivamente, 77,3 % e 7,8%; em 1820, 80,6% e 14% etc. Nos últimos quatro anos de ditadura, houve forte queda relativa nos investimentos públicos: apenas 3,4% do orçamento, em média. Realidade circunscrita pelo permanente rebaixamento francista de impostos![32]

Destaque-se a enorme impertinência da proposta de industrialização, mesmo moderada, para país isolado, de mercado minúsculo, população acanhada [uns duzentos mil habitantes, no início do período francista], com meios de transporte limitados e matérias-primas escassas. Um país dominado por rústica agricultura de subsistência que se servia, como principal instrumento de produção, raramente do arado de madeira, utilizando comumente, “a guisa de enxada”, as “omoplatas de vaca ou de cavalo, rijamente atadas a um cabo de pau”![33]

Por outro lado, como seria possível industrialização em país privado de operariado!? Era comum o registro pelos viajantes de prisioneiros e de soldados trabalhando nas obras públicas. Fenômeno devido ao alto preço do trabalho, nascido da inexistência de exército de reserva, visto o fácil acesso à terra, radicalizado no francismo, quando os braceros transformaram-se maciçamente em arrendatários! Uma realidade ainda considerável no lopizmo.

Asunción é uma festa!

O trote-galope nacional-patriótico de R. LO. Núñez acelera-se ainda mais ao descrever o governo de Carlos Antonio López. O Paraguai teria sido o “primeiro país da América do Sul que contou com uma empresa siderúrgica e metalúrgica [...]”.[34] Teria lançado “o primeiro navio construído na América Latina, o Iporã, de 226 toneladas fundidas [sic] em Ybycuí.” Seria sinal de avanço o envio como bolsistas de “grupo de jovens promissores rumo à Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos”.[35] “Dom Carlos deixou um país próspero e independente. [...] O único com estaleiros, indústrias metalúrgicas, têxteis, de armas e munições, telégrafo, frota mercante, marinha de guerra, ferrovias e imprensa gráfica [...].”[36] Um país de “economia quase totalmente planificada”![37]

A fundição de ferro de Ybycuí, a mais de 123 quilômetros de Asunción, era sustentada pelo Estado, para fins militares, escapando literalmente da produção capitalista propriamente dita. O Iporã, finalizado em 1856, era barco fluvial, de casco de madeira, de acanhados trinta metros e quatro canhões, de 70 HP, e capacidade de deslocamento de 226 toneladas – que o autor apresenta como fundidas em Ybycuí! Não há qualquer primazia na construção do pequeno barco! Apenas um exemplo: em 1767, no Arsenal Real da Marinha do Rio de Janeiro, entre outras embarcações, construiu-se a nau São Sebastião, deslocando 1.400 toneladas, com 64 canhões!

Educação Superior Inexistente

O punhado de bolsistas enviado ao exterior assinalava não avanço, mas desenvolvimento muito limitado do ensino superior no Paraguai, que contou apenas com o Seminário de San Carlos, para formar clérigos, fechado pelo doutor Francia, pela sua enorme inutilidade.[38] Handicap negativo devido em boa parte às limitadas exigências culturais de sociedade essencialmente camponesa. A Universidad de Córdoba, onde estudou Francia, foi fundada em 1621! Em 1808, o Brasil escravista começou a ter faculdades de Medicina, Engenharia, Direito, Farmácia. Já na Colônia, possuía Escola Militar.

As primeiras ferrovias da América Latina foram inauguradas no Peru e no Chile em 1851; no Brasil, em 1854; na Argentina, em 1857, etc. Todas elas anteriores à paraguaia, que entrou em funcionamento em 1861. Três anos após o fim da guerra, o Império brasileiro tinha mais de mil quilômetros de ferrovias; antes do fim do conflito, o Paraguai jamais ultrapassou os oitenta quilômetros! Registre-se que o feito ferroviário do Império não dissolveu, mas consolidou, por longos anos, o caráter escravista da formação social brasileira e, portanto, seu atraso social relativo!

A primeira imprensa gráfica foi inaugurada no Paraguai durante o governo de Carlos Antônio, também com imenso retardo em relação às outras nações vizinhas. Folga dizer que, em país dominado pela pequena produção camponesa de subsistência, era impossível e sem sentido economia planificada. O que não quer dizer que inexistissem políticas econômicas – tributárias, agrárias, etc., –, o que é algo completamente diverso.

Modesta Tonelagem

Em El presidente López, Julio César Chaves sintetiza em forma ponderada as principais obras materiais dos dez primeiros anos de lopizmo: “[...] en el campo de la cultura la apertura de muchas escuelas primarias en la campaña; el mantenimiento por cuentas del Estado de tres casas destinadas a la educación de jóvenes insolventes. La inauguración de un imprenta […]. En materia de obras públicas, presenció Asunción la construcción de la nueva casa de gobierno […], a más de otros edificios destinados a oficinas públicas. […] Se puso término al arreglo de las calles, asignándoles por decreto sus respectivos nombres.”

Segue o historiador liberal paraguaio, sempre simpático a Carlos Antonio López: “En la campaña se cumplió un modesto aunque intenso plan de obras de vialidad. Abriéronse nuevos caminos, se rectificaron otros, ensanchándose algunos más, se construyeron puentes, se canalizaron arroyos. En el orden industrial, fueron ampliada las fábricas de pólvora y tercerolas, estableciéndose otras para la producción de proyectiles de artillaría.” Propõe sobre a marinha: “Armáronse barcos de guerra de modesto tonelaje, al mismo tiempo que se procedía a la construcción por cuenta del Estado de varios buques mercantes igualmente de escaso calado.”[39]

Tratavam-se de rústicas escolas rurais, de uma peça, de paredes de barro e tetos de palha; de arreglo das ruas da capital, e não de pavimentação; da abertura e conservação de caminhos, e não de estradas; de fábricas públicas necessárias à defesa, e jamais de indústrias apoiadas em mercado consumidor; de barcos fluviais de limitada tonelagem, de cascos de madeira, etc.[40] A essas iniciativas governamentais se associaram, sobretudo, a fundição de Ybycuí; menos de oitenta quilômetros de estrada de ferro; sistema de telégrafo – tudo segundo esforço de modernização do país, comandado pelo Estado, de acordo com as possibilidades do nível de desenvolvimento paraguaio, apoiado em aumento da tributação da população, em mais uma inversão do programa francista.

Por que a Guerra?

Não são gratuitas as narrativas fantasiosas de Ronald L. Núñez de desenvolvimento extremado para o Paraguai. Elas apóiam a proposta da conspiração do capital inglês contra burguesia progressista que empreendera industrialização única no mundo, nessa pequena parcela do interior sul-americano. Segundo ele, o Paraguai era “a nação mais progressista da América”, com “burguesia nacional autônoma” em formação. Sob o governo de Solano López, o país “estava evoluindo de forma independente para o capitalismo industrial”, o que teria sido “inaceitável para a burguesia monopolista inglesa”. [41] Destaque-se que, no início do governo de Solano López, o Paraguai teria pouco mais de quatrocentos mil habitantes!

 “Sua Majestade” começou “a sentir um incômodo em seus sapatos”, exigindo que o portentoso “mercado paraguaio” fosse “aberto sob a descarga dos canhões”.[42] “[...] a causa central da guerra contra a Tríplice Aliança” seria o “apetite insaciável da burguesia monopolista inglesa”, que exigia que o mercado paraguaio consumisse os “produtos manufaturados provenientes do imperialismo” e produzisse “matérias-primas” para a indústria britânica. Portanto, teria sido imprescindível destruir a burguesia progressista e industrialista, farol do povo e da nação paraguaia! [43]

 Essa visão contradiz a proposta do próprio Ronald L. Núñez de que a “guerra promovida pela Tríplice Aliança foi [...] de extermínio”. Se o imperialismo queria vender mercadorias e comprar matérias-primas, por que exterminar os consumidores e produtores! Aquela proposta esbarra igualmente no grande projeto lopizta: inserir o Paraguai no comércio mundial, como exportador de matérias-primas [erva-mate, fumo, couros, madeiras duras, etc.] e importador de manufaturados, sobretudo ingleses. Para tal, em 2 de janeiro de 1846, Carlos Antonio baixara a taxação francista sobre a importação de manufaturados e interviera no Prata em prol de ligação com o exterior, invertendo a orientação da política externa francista.[44]

Segundo Ronald L. Núñez, a Inglaterra não fizera a guerra diretamente ao Paraguai apenas por que dispunha “de lacaios” “gananciosos” e “submissos na região”.[45] Consequentemente, coubera à Argentina, ao Brasil e ao Uruguai fazer o serviço sujo, sem obterem vantagens, já que o grande e único vitorioso teria sido a Inglaterra. “O único vencedor do maior conflito armado na América do Sul foi o nascente imperialismo britânico”, que promoveu igualmente “a maior matança de seres humanos [...].”[46]

A Tese Imperialista

No seu anti-imperialismo simplista, a tese da guerra lutada essencialmente por delegação dos interesses ingleses teve larga aceitação na historiografia platina, antes mesmo de ser consagrada em Genocídio americano, em 1979. Sua grande insuficiência provém do fato de elidir a necessária (e complexa) explicação essencial do conflito, a partir das contradições nas e entre as nações da região, expressões dos projetos divergentes das classes dominantes dos países envolvidos naqueles sucessos.

A visão de determinação imperialista inexorável dos fenômenos nacionais desconhece o papel dos confrontos entre as classes dominantes e de estas últimas com as classes dominadas das nações coloniais e semi-coloniais. Nos fatos, ela nega a existência de história própria àquelas nações, sempre decalco mecânico das potências hegemônicas.[47]

Porém, impugnar a explicação imperialista para a Guerra Grande não significa propor que a Inglaterra não tenha se colocado na perspectiva da Argentina liberal-mitrista e do Império liberal-escravista, contra o Paraguai, realizando excepcionais negócios com o fornecimento de armas e empréstimos. Não significa, muito menos, aceitar a de impugnação de qualquer ação imperialista nessa região, ou do próprio imperialismo, como avançado pelo historiador inglês Leslie Bethell.[48]

Já em 1955-57, Milciades Peña refutava com sensibilidade a explicação da guerra como iniciativa inglesa, responsabilizando por ela sobretudo as classes dominantes do Império brasileiro e a oligarquia liberal-unitária portenha. “Ni la monarquía coronada brasileña ni la oligarquía mitrista [argentina] hicieron la guerra del Paraguay por encargo de Inglaterra, aunque al terminar la guerra el principal beneficiario de la destrucción del Paraguay y la miseria de sus vencedores fue el capital londinense.” Destaque-se a proposta de Milcíades Peña da Inglaterra como principal – e não único – beneficiário do conflito!

O jovem historiador marxista-revolucionário argentino assinalava com razão que o estopim conjuntural do conflito, a invasão do Uruguai pelo Império, violentava a “posición británica”, que não desejava o Uruguai sob o tacão de um Império hegemônico no Prata.[49] Registre-se igualmente às contradições internas no seio das próprias classes dominantes inglesas sobre o conflito no Plata, que levaram à divulgação do vergonhoso tratado secreto da Tríplice Aliança, causando enormes dificuldades diplomáticas para os signatários do acordo.

As Razões do Império

 

Não é aqui o local para apresentarmos as razões profundas do conflito. Destacaremos apenas a necessidade do Império de impor sua hegemonia sobre o Uruguai, já que interessado, por um lado, no comércio do Prata, sobretudo após ser expulso da costa da África pelos ingleses, e, por outro, nos couros e charques garantidos pelo fértil pampa oriental, necessários à cafeicultora escravista em expansão. Era também antiga a vontade imperial de escancarar a navegação nos tributários do Prata, abrindo o comércio com suas províncias ocidentais, com destaque para o Mato Grosso.

A vila de Corumbá, fundada, em 1778, na margem esquerda do rio Paraguai, no último trecho navegável por embarcações de porte, desenvolveu-se significativamente apenas após a Guerra Grande, quando o Império dominou aquela navegação. Então, transformou-se em um dos maiores portos fluviais da América do Sul, recebendo vapores chegados do Brasil, de outros pontos da América e da Europa, trazendo manufaturados e levando couros, charques, peles, etc.

As classes dominantes do Império reivindicavam importantes porções das terras em litígio, em processo expansionista impulsionado em detrimento de praticamente todas as nações com que o Brasil tinha fronteiras. Fronteira e navegação foram os motivos da grande intervenção naval do Império no Paraguai, de 1854-5, aventura que resultou em um enorme fracasso, em boa parte por motivos logísticos, demonstrando a dificuldade das forças imperiais brasileiras de imporem-se, em forma isolada, ao Paraguai.[50] Até agora ninguém propôs que essa primeira guerra contra o Paraguai tivesse sido tentada por ordem da Inglaterra!

Para o liberal-mitrismo, expressão dos interesses da oligarquia mercantil portenha e dos estancieiros bonaerenses, ambos grandes associados do comércio e do capital britânico, a derrota do Uruguai constitucional e autônomo e do Paraguai aniquilaria as forças federalistas orientais e das províncias do Interior e do Litoral argentino.[51] Os liberal-unitaristas argentinos sonhavam com a anexação de ao menos parte do Paraguai, frustrada pela oposição do Império, após o conflito.

As Razões do Paraguai

Tradicionalmente, ao se discutir as razões e os sentidos da conflito, desde o ponto de vista do Paraguai, analisa-se a Guerra Grande como um só bloco, que iniciaria com a declaração de guerra ao Império e, a seguir, à Argentina, e a intervenção em defesa do governo blanco uruguaio, e terminaria com a morte de Solano López, em Corro Corá, em 1870.

Cremos que, analiticamente, o conflito deva ser dividido em dois momentos, de qualidades distintas: a campanha ofensiva, empreendida por iniciativa do Estado lopizta e das classes dominantes paraguaias, interessados na consolidação e expansão do export-import e, portanto, da liberdade comercial, ameaçada pela eventual hegemonia imperial sobre o porto de Montevidéu e pelo controle liberal-mitrista do porto de Buenos Aires, após a derrota federalista na batalha de Pavón, em 1862.

A primeira fase da guerra resultou em enorme fiasco paraguaio, devido à escassa visão diplomática, militar, política e estratégica da administração Solano López, que traçou plano de campanha irrealista, apoiado no apenas provável apoio do general Urquiza e dos federalistas argentinos e na eventual resistência das forças blancas orientais. Os segmentos camponeses foram mantidos à margem da decisão sobre a campanha atabalhoada, na qual foi aniquilada grande parte do exército de linha paraguaio. É sintomático que as tropas paraguaias tenham mostrado escassa criatividade e belicismo na campanha ofensiva, rendendo-se em Uruguaiana quase sem combaterem.

Quando da aventura militar de Carlos Antonio López fora das fronteiras nacionais, contra Rosas, em aliança com o general unitário Paz e as forças correntinas, parte das tropas paraguaias sublevaram-se, em 28 de fevereiro de 1846, em Payubré (Pay Ubré), na província de Corrientes, dispostas a marcharem para Asunción, para exigir pronunciamento de congresso sobre a intervenção. Solano López, com 19 anos, comandante das tropas expedicionárias paraguaias, mandou fuzilar os cabeças da sublevação e, posteriormente, dissolveu os esquadrões insubordinados. A sublevação certamente influenciou na suspensão da campanha e no retraimento posterior de Carlos Antonio López. [52] Como assinalado, os camponeses paraguaios abominavam as aventuras militares fora das fronteiras nacionais.

Uma Guerra Camponesa

Durante a campanha defensiva, lutada totalmente em territórios paraguaios, houve reversão radical da belicosidade das tropas paraguaias, formadas então sobretudo pela população camponesa armada, ou seja, principalmente pelas forças auxiliares, de fortíssimas raízes guaranis. Por além das suas sandices patrióticas, apesar de não ter desenvolvido sua reflexão, o citado Manuel Dominguez vislumbrara as raízes profundas do radicalismo na defesa das fronteiras nacionais: a compreensão ou intuição pela população rural de que na guerra jogava-se a sua sorte como classe, assentada na posse ou no domínio da terra.[53]

Apreenderemos as conseqüências sociais essenciais da derrota paraguaia na Guerra Grande apenas se compreendermos a segunda etapa dos combates como uma guerra camponesa, na qual os pequenos e médios produtores rurais serviram-se de Solano López – mais do que ele serviu-se deles – para defenderem o que haviam conquistado, sobretudo durante o período francista, e que não fora ainda radicalmente confiscado pelo lopizmo. O caráter social desta guerra nacional-camponesa foi e tem sido encoberto, pelo lopizmo positivo e negativo, através da abusiva personalização do conflito, empreendida em torno da figura de Solano López.

A dissolução da antiga formação social paraguaia não se deve à perda de imensas possessões que, nos fatos, não faziam majoritariamente parte dos territórios históricos nacionais paraguaios, argentinos ou brasileiros. No geral, eram regiões que haviam cabido à Espanha, na repartição de Tordesilhas e no Tratado de Madrid, motivos de disputas desde o período colonial entre as potências ibéricas, reivindicadas pelo Paraguai quando do fracionamento do vice-reinado do Prata. Destaque-se que aqueles territórios, pouco habitados, não possuíam povoações significativas paraguaias, argentinas ou imperiais.

Não foi também a indiscutível mortandade que construiu a decadência da nação paraguaia. Ela jamais alcançou a dimensão proposta por analistas extremados, como o próprio Ronald L. Núñez, que sugere verdadeiro genocídio, com a morte de metade da população, ou seja, uns 225 mil paraguaios, com a sobrevivência de apenas “mulheres, crianças e idosos”! Registrem-se essa tradicional extrapolação dos decessos e a afirmação irresponsável da morte de todos os homens. Mesmo havendo forte mortandade entre a população masculina, sobretudo adulta, a guerra poupou a população feminina, que garantiu rápida retomada da demografia paraguaia.[54]

A grande derrota da formação social paraguaia foi essencialmente político-social. Ela deveu-se à derrota, massacre e desorganização de sua imensa classe camponesa, golpeada fortemente durante os confrontos. O que permitiu que, nos anos seguintes ao fim da guerra, já sob domínio das classes dominantes paraguaias, liberais e nacionalistas, ela fosse destruída socialmente, quando das imensas privatizações das terras públicas, por ela ocupadas, em geral sem títulos de propriedade, como assinalado.

Por um desses paradoxos da história, o golpe mortal na combalida classe camponesa paraguaia foi dado com a Lei de 16 de julho de 1885, quinze anos após o fim do conflito, pelo maior herói lopizta a sobreviver à guerra, o general Bernardino Caballero [1839-1912], durante sua gestão presidencial [1880-86]. A lei permitiu “enajenar todas las tierras públicas” e ervais.[55]

Com o aniquilamento final da classe camponesa autônoma impulsionado desta vez por representante das classes dominantes paraguaias, em grande parte em prol do capital estrangeiro, inaugurava-se o Paraguai moderno, com suas misérias sem fim. Registre-se que Bernardino Caballero foi o grande fundador do Partido Colorado, populista-autoritário, que apoiou fortemente a gênese, desenvolvimento e consolidação das teses nacional-patrióticas sobre a guerra do Paraguai, abraçadas por Ronald L. Núñez.


[1] Agradecemos os comentários da lingüista Florence Carboni, da UFRGS, e da historiadora Victoria Baratta, da UBA, Argentina.

[2] Mário Maestri, 63, doutor em História pela UCL, Bélgica, é professor do PPGH da UPF, RS, Brasil. E-mail: maestri@via-rs.net

[3] Cf. MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Revista digital Estudios Históricos – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317. http://www.estudioshistoricos.org/

[4] Cf. DOMINGUEZ, Manuel. El alma de la Raza. Buenos Aires: Ayacucho, 1946. Pp. 17-39.

[5] Cf. BAEZ, Cecilio. Ensayo sobre el dr. Francia y la dictadura en Sudamérica. 2 ed. Revisada y aumentada. Asunción: Paraguay, 1985.

[6] Cf. QUEIROZ, Silvânia de. “Revisando a Revisão: Genocídio Americano: a guerra do Paraguai de J.J. Chiavenato”, PPGH-UPF, dezembro de 2010. [dissertação de mestrado].

[7] Cf. MAESTRI, Mário. Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Ob.cit.

[8] Cf. CHIAVENATO, J.J. Genocídio Americano: A guerra do Paraguai. 27 ed. São Paulo: Brasiliense. 1987.

[9] Cf. O´LEARY, J. E. El Mariscal Solano Lopez. 3 ed. Asunción: Paraguay, 1970. [1ed 1922]; ____. El Paraguay en la unificación argentina [1924] e La guerra de la Triple Alianza. Asunción: Instituto Colorado de Cultura, 1976.

[10] CREYDT, Oscar. Formación histórica de la nación paraguaya: pensamiento y vida del autor. 3 ed. Asunción: Servilibro, 2007. Pp. 47-119.

[11] Cf. MAESTRI, Mário. A Singularidade do Estado Francista: a Leitura de Oscar Creydt. História: Debates e Tendências. Revista do Programa de Pós-Graduação em História, [2012], no prelo.

[12] WHITE, Richard Alan. La primera revolución popular en America: Paraguay (1810-1840). 2 ed. Asunción: Carlos Schauman, 1989.

[13] HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Asunción: Instituto Cultural Paraguayo-Alemán, 1996.

[14] RENGGER, J.R. “Ensayo histórico sobre la revolución del Paraguay”. RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El doctor Francia. Asunción: El Lector, 1987. p. 51.

[15] Cf. ANDRADA E SILVA, Raul. [1905-1991]. Ensaio sobre a Ditadura do Paraguai: [1814-1840]. São Paulo: Coleção Museu Paulista, 1978. [Série ensaios, 3]. 267 pp.

[16] Cf. FRANCIA, Edición comentada, aumentada y corregida de la Colección Doroteo Bareiro del Archivo Nacional de Asunción. Asunción: Tiempo de História, 2009-2010. vol. I [1762-1816], II [1817-1830], III [1831-40].

[17] Cf. CORONEL, Bernardo. Breve interpretación marxista de la historia paraguaya: (1537-2011). Asunción: Arandurã, 2011. 341 pp; NÚÑEZ, Ronald León. Guerra do Paraguai: revolução e genocídio. São Paulo: Sundermann, 2011. 206 pp. (Coleção 10, 17). Agradecemos o gentil envio do autor de cópia pdf da edição paraguaia do livro.

[18] Id.ib. p. 15.

[19] Em nossa análise, ao citar o trabalho, utilizaremos a versão abreviada em português.

[20] Cf. RIVERA, Enrique. José Hernandez y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Colihue, 2007. [1 Ed. 1954]; PEÑA, Milciades. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 3 ed. Buenos Aires: Fichas, 1975

[21] NÚÑEZ, Ob.cit. p. 23. Destacamos.

[22] Id.ib. p. 59

[23] Cf., por exemplo: SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropológica del Paraguay del siglo XIX. Asunción: Museo etnográfico Andres Barbero, 1992. P.31.

[24] NÚÑEZ, Ob.cit. p.59. Destacamos.

[25] Id.ib. p. 43

[26] Id.ib. p. 71

[27] Arquivo Nacional de Asuncion, Asunción, Vol. 246, n. 1.

[28] PLÁ, Josefina. Hermano negro: la esclavitud en el Paraguay. Madrid: Paraninfo, 1972. P. 60

[29] NÚÑEZ, Ob.cit. p. 81.

[30] Id.ib. p. 66. Destacamos.

[31] Loc.cit.

[32] WHITE. Ob.cit. p. 213 et seq.

[33] Cf. ANDRADA E SILVA, Raul. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção Museu Paulista, 1978. pp. 59, 209 et seq.

[34] NÚÑEZ, Ob.cit. 82

[35] Id.ib. pp. 84-83

[36] Id.ib. p. 89

[37] Id.ib. p.110

[38] Cf. HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Ob.cit. pp. 83 et seq.

[39] CHAVES, Julio Cesar. El presidente López: vida y gobierno de Don Carlos. Buenos Aires: Ayacucho, 1955. P. 131. Destacamos.

[40] Sobre a educação no Paraguai, ver: HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Asunción: Instituto Cultural Paraguayo-Alemán, 1996.

[41] NÚÑEZ, Ob.cit. pp. 95, 12

[42] Id.ib. p. 135

[43] Loc.cit.

[44] El Paraguayo Independiente, n 28, Asunción, sábado, 17 de enero de 1846.

[45] NÚÑEZ, Ob.cit. p.104

[46] Id.ib. pp. 178, 181

[47] Cf., por exemplo: BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos estados na bacia da Prata: da colonização à guerra da Tríplice Aliança. São Paulo: Ensaio, 1995;

[48] BETHELL, Leslie. O imperialismo britânico e a Guerra do Paraguai. CASTRO, M.E. & MARQUES, M. [Org.] Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. Pp. 133-150.

[49] PEÑA. La era de Mitre. Ob.cit. p.61; MAESTRI, Mário. Círculo de Ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino. Socialismo o Barbarie, Buenos Aires, junio de 2010. http://www.socialismo-o-barbarie.org/historias/100620_milciadespenia.htm

[50] TEIXEIRA, Fabiano Barcellos. Uma estratégia contestada: a missão imperial ao Paraguai (1854-1855). Revista Brasileira de História Militar, ano II, n. 6, dez. 2011, dezembro de 2011, www.historia militar.com.br/artigo4RBHM6.pdf

[51] Cf. POMER, Leon. Cinco años de guerra civil en la Argentina. Buenos Aires: Amorrortu, 1986.

[52] CHAVES, Julio Cesar. El presidente López. Ob.cit. p. 109.

[53] Cf. DOMINGUEZ, Manuel. El alma de la Raza. Buenos Aires: Ayacucho, 1946. Pp. 34.

[54] NÚÑEZ, Ob.cit. p. 168.

[55]. PASTORE, Carlos. La lucha por la tierra en el Paraguay. 3 ed. Asunción: Intercontinental, 2008. p. 225 et seq.