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Resumo
Com
o final da Guerra Grande, dominou no Paraguai a historiografia dos
vencedores, questionada a seguir por leituras patrióticas com Solano
López como demiurgo nacional. Já quando do conflito, autores
apontaram para razões profundas da guerra. Em 1962, Oscar Creydt
empreendeu interpretação estrutural do passado paraguaio, que teve
muitas de suas limitações superadas nos anos 1970-80. Em 2011, no II
Centenário da Independência, dois autores propuseram leituras
marxistas do passado. Em Revolución
y genocidio: El
mal ejemplo de la independencia paraguaya y su destrucción, R. L. Núñez
regatou as visões nacional-patrióticas e sufocou as contradições
classistas e o caráter camponês do conflito, apresentado como saga
da burguesia paraguaia em luta pela emancipação nacional. |
1.
Paraguai: o combate historiográfico
Entre
a população paraguaia, é forte o condicionamento dos
sentimentos contemporâneos a partir das visões sobre o
passado, em geral, e a Grande Guerra [1864-1870], em
especial. Desde a segunda metade do século 19, subsiste na
população memória sobre espécie de idade de ouro perdida
naquele confronto. Com o passar dos anos, a opacidade
crescente sobre aqueles sucessos foi preenchida por tradições
construídas que embaralham fortemente a compreensão das raízes
do drama histórico paraguaio.
Após
1870, foram impostas ao país leituras sobre a formação do
Paraguai independente e o grande conflito, segundo as
necessidades dos vencedores daquela guerra: o Estado
imperial; a Argentina liberal-unitária; o Uruguai colorado;
os legionários
paraguaios. Essas visões execravam a era francista
[1813-1840], eram apenas algo mais condescendentes com o
governo de Carlos Antonio López [1841-1862] e, acusavam
Francisco Solano López [1862-1870] de ser o único responsável
pela guerra fratricida.
A
leitura liberal do conflito não supria as necessidades político-ideológicas
do novo Estado nascido após a guerra e não garantia
consenso mínimo entre uma população que guardava a memória
da inquebrantável resistência aos invasores em torno de
Solano López. Àquela apologia foi anteposta saga
nacional-patriótica com o mariscal
como grande demiurgo. Contra o lopizmo
negativo liberal-legionário, levantou-se o lopizmo
positivo populista-autoritário.[3]
O
revisionismo nacional-patriótico delineou um cenário histórico
idílico onde a sociedade paraguaia emergia no interior da
América do Sul com vocação predestinada, devido a um
clima, a um solo, a uma raça, a uma tradição, a uma língua,
etc. excepcionais, que produziram um país sem miseráveis,
sem criminosos, sem loucos, sem exploração, de fertilidade,
salubridade e abundância únicas, onde todos – ou quase
todos – eram alfabetizados. Manuel Dominguez [1868-1935]
sintetizou essa leitura idílico-fantasiosa na sua célebre conferência,
de 29 de janeiro de 1903, proferida em Asunción, sobre as
“Causas del heroismo paraguayo”.[4]
Para
aquela historiografia ufanista, a realidade paraguaia
extraordinária teria acelerado fortemente, no longo governo
de Carlos Antonio López, superando o atraso
do período autoritário francista. Este último, conheceria
recuperação historiográfica mais tardia, mais contida e
sempre condicional. Sob as ordens de López
pai e filho, o Paraguai agigantara-se, conhecendo
pioneiramente modernas indústrias metalúrgica, naval e têxtil;
ferrovias, linhas telegráficas, etc., despontando como a nação
mais avançada e progressista da América Latina, no mínimo.
Expulsão do Paraíso
Para
a leitura nacional-patriótica paraguaia, a guerra de
1864-70 fora agressão contra o país exuberante, querida
pela Inglaterra ou pelo bloco Argentina-Brasil-Uruguai.
Apesar da resistência heróica, comandada por Solano López,
general inigualável, a agressão aniquilara literalmente a
população adulta masculina; abocanhara enorme parte dos
territórios pátrios; endividara o país para sempre,
iniciando período de decadência jamais superado. Para
muitos paraguaios contemporâneos, a recuperação dos
territórios perdidos e indenizações de guerra
constituiriam o único caminho para a regeneração
nacional.
De
forte efeito performativo, essa vulgata historiográfica
procurava também encobrir as explicações essenciais
daqueles acontecimentos históricos e de suas seqüelas. Porém,
mesmo na sua relatividade essencial, encontrava-se não raro
mais “próxima” da realidade histórica do que a
narrativa liberal-legionária. As fortes singularidades do
passado paraguaio e daquele confronto mantiveram-se como
fantasmagorias ideológicas, comumente objeto de culto
devocional, apoiado sobretudo pelo regime ditatorial
colorado paraguaio.
Em
1979, o jornalista mineiro J.J. Chiavenato realizou versão americanista daquela interpretação, introduzindo pioneiramente a
problemática revisionista no Brasil, com seu livro Genocídio americano: uma história da guerra do Paraguai, de
estrondoso sucesso. Até então, no país,
conhecia-se apenas a versão nacional-patriótica brasileira.
Ou seja, no geral, relatos obsessivos das glorias
militares pátrias e da responsabilidade exclusiva pela
guerra do ditador
tresloucado. [7]
Genocídio americano
celebrizou a versão de conflito querido essencialmente pela
Inglaterra (a grande e única vitoriosa do embate), para
destruir o país que lhe fazia sombra naquela região do
mundo.
Destaque-se que o mais célebre lopizta
positivo, o
paraguaio J. E. O’Leary [1879-1969], afastara-se dessa
versão, ao dominar os meandros das fortes disputas entre as
nações e nas nações da bacia do Prata, protagonizadas
sobretudo pelo Império brasileiro por Buenos Aires. [9]
Raízes Profundas
Já
durante a guerra e nos anos posteriores a ela, intelectuais
argentinos, brasileiros e uruguaios apontavam para algumas
das razões estruturais do conflito, superando as apologias
liberais aliancistas, sem caírem nas fantasias populistas e
popular-autoritárias posteriores. Entre eles, destacaram-se
Juan Bautista Alberdi [1810-1884]; José Hernández
[1834-1886], Luis Alberto de Herrera [1873-59]; Raimundo
Teixeira Mendes [1855-1927]
,
Adolfo Saldías [1849-1914], etc.
No
século 20, pensadores marxistas e americanistas ensaiaram
explicações parciais essenciais da grande guerra do Prata,
no geral quando de análises da formação nacional
argentina, fortemente influenciada esta última por aqueles
sucessos: inicialmente, Enrique Rivera, José María Rosa,
Milcíades Peña, etc.; mais tarde, León Pomer, Moniz
Bandeira, etc.
Oscar
Creydt [1907-1987], por anos secretário-geral do Partido
Comunista do Paraguai, esboçou o primeiro ensaio geral de
interpretação categorial-sistemática da história
paraguaia – “Formación histórica de la nación paraguaya”
–, publicado em 1963. Ele fora escrito no ano anterior, na
URSS, como esboço de tese de doutoramento jamais defendida,
devido ao rompimento de Creydt com a orientação reformista
soviética.[10]
Mesmo
limitado pelo marxismo
stalinista, o texto constituiu sensível esforço de
compreensão da formação social paraguaia. Retomando a
vulgata dos estágios necessários
da evolução social, Oscar Creydt definiu a “burguesia
nacional” – formada sobretudo por comerciantes
e estancieiros –
como protagonista da independência. Isso apesar de ter
assinalado o caráter contra-revolucionário daqueles
segmentos sociais. [11]
Igual à Europa
Apesar
de essa contradição arrastar-se durante toda a sua
interpretação, Oscar Creydt assinalou com clarividência a
classe dos pequenos e médios camponeses, dedicados
tendencialmente à economia de subsistência, como fator
determinante da gênese-desenvolvimento da singular formação
paraguaia. E apontou o doutor José Gaspar de Francia
[1776-1840] como o timoneiro da fundação do Paraguai
moderno, surgido da defesa intransigente da autonomia
nacional.
Em
outra contradição candente, Oscar Creydt definiu o acesso
ao comércio mundial e à ampla mercantilização da produção
como as grandes necessidades do desenvolvimento paraguaio,
no momento em que assinalou como o Estado francista
restringiu aquele comércio, para garantir a independência,
com o apoio das classes camponesas, de fortes raízes
guaranis, desinteressadas nas vinculações exteriores.
Mesmo
propondo continuidade entre a ordem francista e lopizta,
Oscar Creydt enfatizou a restauração
parcial empreendida por Carlos Antonio López, quanto ao
alto clero, ao comércio privado, às classes estancieiras,
à intervenção na política do Prata, etc. Medidas que
determinaram retrocesso relativo dos segmentos camponeses,
igualmente afastados na nova ordem dos congressos periódicos,
desde então monopólio das classes oligárquicas.
As
contradições expressas na leitura de Oscar Creydt
apontavam para a necessidade de superação, na análise das
nações americanas, da aplicação meramente mecânica de
esquemas interpretativos próprios à Europa. Como utilizar
sem mediações categorias como revolução
burguesa, quando a burguesia
[na acepção marxiana] inexistia, mesmo em forma
embrionária, em um país como o Paraguai. Ou seja, classe
engendrada na produção manufatureiro-industrial, assentada
na proletarização de produtor direto obrigado a vender sua
força de trabalho como mercadoria.
Pouca Repercussão
Por
múltiplas razões nacionais e internacionais, o germinal
ensaio de Oscar Creydt não inspirou outros trabalhos, que
superassem suas contradições e afirmassem suas conquistas.
Apenas uma década mais tarde, o passado paraguaio foi
objeto da análise materialista de alta qualidade de Richard
Alan White, restrita ao período francista.
No mesmo sentido interpretativo, de tema mais restrito,
destaca-se também a obra do historiador alemão
Peters Heinz, El sistema educativo paraguayo desde 1811
hasta 1865, de
1984, traduzido ao espanhol em 1996.[13]
Em
La primera revolución
radical de América, o historiador estadunidense
empreendeu erudita leitura da gênese do Estado francista
como resultado da luta pela independência, contra espanholistas,
portenhistas e, finalmente, estancieiros,
capitaneada por Francia. Luta sustentada pelos
camponeses e pequenos produtores domésticos, artesanais e
manufatureiros, desinteressados no comércio mundial, quando
não opostos a ele. Segmentos igualmente opostos às
intervenções exteriores, tradicionalmente apoiadas nas milícias
populares.
Richard
White assinala que as restrições ao grande comércio,
sobretudo pela oligarquia mercantil portenha, ensejaram o
enfraquecimento da oligarquia comercial e exportadora
paraguaia [de erva mate, de madeiras, de fumo, etc.] e o
fortalecimento da economia camponesa, das aldeias de índios e da produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira,
de raízes guaranis, como assinalado. Fenômeno registrado
em forma reiterada por observadores contemporâneos aos
fatos.
O
médico suíço J.R. Rengger viveu no Paraguai de 1819 a
1825. Esse forte crítico do
francismo propôs: “La interrupción del comercio produjo
otro resultado feliz”, “el acrecentamiento de la
industria manufacturera. Hasta entonces solo se habían
servido del algodón para fabricar una especie de tela
delgada que servía para hacer camisas, pero la necesidad
precisó à los fabricantes à labrar tejidos para toda
suerte de ropajes. Los ponchos y las mantas para los
caballos, que eran de lana, y costaban crecidas sumas que
salían anualmente del Paraguay, se fabrican entonces en el
país: hasta los telares se perfeccionaron.”[14]
Oscar
Creydt assinalara que a chacra
– pequena propriedade camponesa –constituíra o eixo
central da sociedade paraguaia, devido aos limites da produção
latifundiária monocultora de exportação, mesmo antes da
era francista. Sociedade camponesa, de indiscutível
dinamismo, no contexto de seu caráter fortemente autárquico
e da sua simplicidade e rusticidade relativa, destacadas por
Oscar Creydt, Richard White e Raul de Andrada e Silva.[15]
Fortemente
enfatizada durante o francismo e ainda sólida sob o
restauracionismo lopizta, a dominância camponesa qualificou
e singularizou a sociedade paraguaia em relação às nações
vizinhas, dominadas pela grande propriedade e pelo trabalho
escravizado, servil, semi-servil, etc. Entretanto, ainda que
apoiada fortemente no pequeno produtor livre e independente,
era objetivamente impossível que a sociedade paraguaia
alcançasse o nível hiperbólico de desenvolvimento
proposto pela historiografia hagiográfica, devido à
rusticidade relativa de sua produção agrícola-artesanal
camponesa.
2.
Revolução e genocídio: o mau uso da história
Em
2011, celebraram-se os duzentos anos da Independência
Nacional do Paraguai, sob presidência constitucional que
chegara a despertar as esperanças das classes populares e
trabalhadoras. As celebrações motivaram importantes reedições
e edições, privadas e públicas, de fontes e trabalhos
historiográficos sobre o passado daquele país, com
destaque para a publicação, pelas Ediciones
del Bicentenario, da coleção Doroteo Bareiro, em
quatro fortes volumes, com documentos relativos à
administração do doutor Francia.[16]
Fatos
muito auspiciosos foram os lançamentos dos trabalhos de
dois jovens investigadores, Bernardo Coronel e Ronald León
Núñez, propondo análises sintéticas da formação
paraguaia desde uma ótica marxista, respectivamente, de
1537 a 2011 e de 1811 a 1870.
Ou seja, ensaios que se propunham retomar e aprofundar as
leituras interpretativas de Oscar Creydt, Richard White, León
Pomer, etc.
No
presente trabalho, discutiremos Revolución
y genocídio: El mal ejemplo de la independencia
paraguaya y su destrucción, lançado, em Asunción, em
julho de 2011, no ano do bi-centenário, com versão sintética
em português, publicada na mesma época, em São Paulo.
Trata-se de trabalho explicitamente político-ideológico,
onde o autor, Ronald L. Núñez, que se declara militante do
pequeno Partido de los
Trabajadores paraguaio, asssociado à Liga Internacional
dos Trabalhadores, afirma guiar-se pelo “marxismo” e
pelos “postulados centrais” da “revolução
permanente”, de León Trotsky.[18]
Trotsky vai à Guerra
As
duas versões do livro são dedicadas ao Partido
de los Trabalhadores e à LIT e trazem “Prefácio”
de Nazareno Godeiro, argentino, membro da direção do PSTU
e da LIT, que teria vivido por vários anos no Paraguai. Destaque-se inicialmente
que o trabalho, apesar das abundantes referências a Trotsky
e ao trotskismo, ignora paradoxalmente a importante
bibliografia marxista-revolucionária, sobretudo argentina,
sobre o tema em questão!
Apoiado
sobretudo em revisão bibliográfica, o estudo não se
refere a marxista-revolucionários que produziram
reconhecidos clássicos abordando o tema em debate, como José
Hernández y la guerra del Paraguay, de Enrique Rivera,
e La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la
Triple Infamia, de Milcíades Peña, este último tido por
muitos como o mais criativo historiador trotskista
argentino.[20]
Revolução e genocídio
jamais se constrói como interpretação marxista. Mesmo se
propondo analisar as “causas econômicas” subjacentes à
história, não aborda as relações de produção e elide
os conflitos de classe. As contradições classistas no
Paraguai independente são anuladas em prol de pretensa
concordância nacional de interesses entre opressores e
oprimidos, que substitui a luta entre as classes pela luta
entre as nações. As categorias interpretativas não são
usadas na acepção marxiana – manufatura, indústria,
burguesia, etc. E, a tudo isso, colam-se
citações e referências a Marx, Engels, Lênin e Trotsky.
O
autor não aborda a encomienda,
as aldeias de índios,
os obrajes de erva
mate e de madeira, as chacras,
as estâncias, formas específicas de produção e de
materialização da exploração, determinadas fortemente no
período francista, em favor dos explorados. Há apenas
referência telegráfica à dissolução, por Carlos Antonio
López, das aldeias de índios. Ronald L. Núñez circunscreve seu
desconhecimento da estrutura econômica paraguaia ao
apresentar o extrativismo da erva mate como “agricultura [sic] baseada na
monocultura [sic] da erva-mate”.[21]
Não
há referência às fazendas pastoris, base econômico-social
da oligarquia crioula [“ganaderos
uniformados”] que empreendeu a última resistência ao
francismo e foi importante vetor social do movimento de
restauração que entronizou Carlos Antonio López. A
“Estancia da Pátria”, propriedade pública dedicada
sobretudo ao financiamento da defesa, é apresentada como
espécie de kolcoz.
“[...] produzia de forma
coletiva e diversificada os produtos agrícolas e o gado
bovino de que o povo precisava, além de couro curtido para a exportação.”
Ao contrário do proposto pelo autor, as distribuições de
bens públicos à população eram realizadas apenas quando
de epidemias, de crises alimentares, de fundação de povoações
etc.
Ronald
L. Núñez violenta a especificidade da propriedade estatal
da terra na ditadura
do dr. Francia, que literalmente nacionalizou
imensos territórios, arrendados
comumente aos camponeses,
sem prazo, a preços módicos, sem a alienação da
propriedade – ou seja, sem a entrega da terra como
propriedade privada.
Um procedimento que, após a guerra e a restauração
liberal, facilitaria a expropriação dos camponeses, com a
venda das terras que exploravam. “Uma parte das imensas
extensões de terras confiscadas foram entregues como propriedades
[...] aos camponeses pobres” que “recebiam do Estado
roupas e ferramentas para a lavoura”.[24]
História e Ficção
Abandonando
as ricas nuances analíticas de Oscar Creydt, Ronald L. Núñez
retoma o pior da leitura do ex-secretário do PCP: a
transposição mecânica da realidade européia e a literal criação
de direção burguesa para a revolução
democrática paraguaia, em gritante negação de
interpretação dessa realidade a partir da concepção de revolução
permanente, que afirma abraçar! Para Ronald L. Núñez,
as grandes tarefas da revolução paraguaia [que afirma abusivamente terem sido
perseguidas por Francia] seriam “formar e consolidar uma
burguesia nacional independente” e garantir a “livre
vinculação do país ao mercado internacional”.
Ou seja, sem burguesia
nacional, nada de revolução
nacional!
Adaptando
a realidade à ficção da historiografia nacional-patriótica,
Ronald L. Núñez propõe a “burguesia rural” como a
classe “mais beneficiada pelas medidas econômicas de
Francia”. Burguesia
rural que define, inconsciente da contradição que
estabelece, como “pequenos proprietários e camponeses
livres”! Em verdade, no trabalho, vacila sempre entre a
“burguesia rural” e a “pequena burguesia rural e
urbana”, como a base social francista. [26]
No
mundo dos fatos históricos, os pequenos e médios
camponeses, de fortes raízes guaranis, possuíam,
ocupavam ou arrendavam
nesgas de terra dedicadas à economia de subsistência,
enviando ao mercado o
pequeno excedente produzido. Na colônia, eles haviam
sofrido permanentemente a forte pressão dos terratenientes,
sobretudo estancieiros, sequiosos das propriedades e da força
de trabalho dos chacareros e das aldeias de índios. Pressão fortemente arrefecida
no francismo, devido à repressão aos grandes proprietários
e ao decaimento da econômica de exportação.
Ronald
L. Núñez retoma a proposta de Oscar Creydt, sempre sem as
nuances daquele autor, de continuidade harmônica
entre francismo e lopizmo. “Era o sucessor de Francia em
sua jornada rumo à consolidação de um Paraguai cada vez
mais surpreendente [sic] [...].” Diante dessa proposta,
como interpretar a prisão e assassinato de Policarpo Patiño,
o primeiro homem de Francia, dias após a morte do ditador?
Ou como explicar a derrota do francismo
e de seu candidato, Norberto Ortellado,
pelos lopiztas,
no congresso de março de 1841?
A
proposta de harmonia
estrutural entre francismo
e lopizmo não permite igualmente compreender a repressão à agitação
do programa francista, através do bando
consular lopizta, de 31 de dezembro de 1841, que proibiu
as discussões sobre o francismo, por servirem para
apresentar o ditador como “necesario en la República,
echando de menos su Régimen, con desaire de la presente
administración” – ou seja, da administração de Carlos
Antonio López.[27]
Ronald
L. Núñez ignora as contradições políticas e sociais, em
prol de sua proposta de “burguesia progressista”, na
direção do Estado, sem contradições com os explorados,
cumprindo as necessidades dos mesmos. Não justifica
igualmente sua proposta do “caráter burguês”,
“claramente progressista”, da oligarquia pré-capitalista
surgida em torno de Carlos Antonio, com destaque para sua
família, através da apropriação de bens e direitos públicos.
Após 1852, com a retomada do comércio internacional,
valorizou-se o preço do cativo, deprimido no francismo. Então,
os filhos do presidente, com destaque para Solano López,
compravam-nos abundantes ao Estado, a preços de pai para filho.
Esta foi apenas uma via, e certamente a menos
importante, da apropriação de bens e direitos públicos
pelo núcleo social oligárquico organizado em torno de
Carlos Antonio López.
As
aldeias de índios fortaleceram-se
no francismo, devido à defesa das mesmas pelo ditador e à
depressão dos estancieiros
e do comércio internacional. Ronald L. Núñez aborda
sumariamente a dissolução das mesmas e a declaração de
“suas terras como propriedade” do Estado. Um processo
que entregou terras aos segmentos nativos superiores
e lançou na proletarização,
os inferiores.
[29]
Essa dissolução era reivindicada pelos encomenderos
e latifundiários desde
a Colônia, interessados nas terras e na força de trabalho
das aldeias.
Historiografia Nacional-Populista
Ronald
L. Núñez retoma sem peias os desvarios historiográficos
ufanistas sobre a grandeza e o esplendor nacional, que recua
paradoxalmente para os primeiros tempos francistas. Ignora
em forma absoluta os limites impostos pelo desenvolvimento
das forças produtivas materiais e das relações sociais de
produção ao desenvolvimento material do Paraguai francista
e lopizta.
Para
ele, já no início do francismo, o bloqueio comercial
portenho forçara “processo embrionário de industrialização
de algumas matérias primas. A indústria manufatureira doméstica
[sic], como as de tecidos, sapatos, ferraria, serralheria,
prataria, ourivesaria” crescera “notavelmente devido ao
desenvolvimento do campo em seu grau máximo [sic]”.
Iniciara-se “moderado, porém progressista, processo
de industrialização.”[30]
É
abnormidade historiográfica propor para o início
do francismo “indústria estatal” que crescera “a
tal ponto que em 1815” – após dois anos de governo de
Francia! – eram “lançados os primeiros navios”;
“programa de construção de estradas e de pontes”, de
“pavimentação de ruas”, de “iluminação”, de
“mercados públicos”, etc.[31]
Em
importante investigação arquival, Richard White revelou o
comprometimento dos escassos recursos públicos sobretudo no
exército, durante a era francista! Destaque-se que a formação
de um exército profissional, em um país que sempre apoiara
sua defesa nas milícias populares, era iniciativa
fortemente apoiada pelas classes camponesas, exauridas em
sua força de trabalho e recurso pelo serviço militar.
Em
1816, o quarto ano da era francista, 84 % dos recursos público
fora investido no exército e 6,8% , nas obras públicas; em
1818, respectivamente, 77,3 % e 7,8%; em 1820, 80,6% e 14%
etc. Nos últimos quatro anos de ditadura, houve forte queda relativa nos investimentos públicos:
apenas 3,4% do orçamento, em média. Realidade circunscrita
pelo permanente rebaixamento francista de impostos![32]
Destaque-se
a enorme impertinência da proposta de industrialização,
mesmo moderada, para
país isolado, de mercado minúsculo, população acanhada [uns
duzentos mil habitantes, no início do período francista],
com meios de transporte limitados e matérias-primas
escassas. Um país dominado por rústica agricultura de
subsistência que se servia, como principal instrumento de
produção, raramente do arado de madeira, utilizando
comumente, “a guisa de enxada”, as “omoplatas de vaca
ou de cavalo, rijamente atadas a um cabo de pau”![33]
Por
outro lado, como seria possível industrialização em país
privado de operariado!? Era comum o registro pelos viajantes
de prisioneiros e de soldados trabalhando nas obras públicas.
Fenômeno devido ao alto preço do trabalho, nascido da
inexistência de exército
de reserva, visto o fácil acesso à terra, radicalizado
no francismo, quando os braceros
transformaram-se maciçamente em arrendatários! Uma
realidade ainda considerável no lopizmo.
Asunción é uma festa!
O
trote-galope nacional-patriótico de R. LO. Núñez
acelera-se ainda mais ao descrever o governo de Carlos
Antonio López. O Paraguai teria sido o “primeiro país da
América do Sul que contou com uma empresa
siderúrgica e metalúrgica [...]”.
Teria lançado “o primeiro navio construído na América
Latina, o Iporã, de 226 toneladas fundidas [sic] em Ybycuí.”
Seria sinal de avanço o envio como bolsistas de “grupo de
jovens promissores rumo à Inglaterra, França, Alemanha e
Estados Unidos”. “Dom Carlos deixou um
país próspero e independente. [...] O único com
estaleiros, indústrias metalúrgicas, têxteis, de armas e
munições, telégrafo, frota mercante, marinha de guerra,
ferrovias e imprensa gráfica [...].”
Um país de “economia quase totalmente planificada”![37]
A
fundição de ferro de Ybycuí, a mais de 123 quilômetros de Asunción, era
sustentada pelo Estado, para fins militares, escapando
literalmente da produção capitalista propriamente dita. O
Iporã, finalizado em 1856, era barco fluvial, de casco de
madeira, de acanhados trinta metros e quatro canhões, de 70
HP, e capacidade de deslocamento de 226 toneladas – que o
autor apresenta como fundidas
em Ybycuí! Não há qualquer primazia na construção do
pequeno barco! Apenas um exemplo: em 1767, no Arsenal Real
da Marinha do Rio de Janeiro, entre outras embarcações,
construiu-se a nau São Sebastião, deslocando 1.400
toneladas, com 64 canhões!
Educação Superior Inexistente
O
punhado de bolsistas enviado ao exterior assinalava não
avanço, mas desenvolvimento muito limitado do ensino
superior no Paraguai, que contou apenas com o Seminário de
San Carlos, para formar clérigos, fechado pelo doutor
Francia, pela sua enorme inutilidade. Handicap
negativo devido em boa parte às limitadas exigências
culturais de sociedade essencialmente camponesa. A
Universidad de Córdoba, onde estudou Francia, foi fundada
em 1621! Em 1808, o Brasil escravista começou a ter
faculdades de Medicina, Engenharia, Direito, Farmácia. Já
na Colônia, possuía Escola Militar.
As
primeiras ferrovias da América Latina foram inauguradas no
Peru e no Chile em 1851; no Brasil, em 1854; na Argentina,
em 1857, etc. Todas elas anteriores à paraguaia, que entrou
em funcionamento em 1861. Três anos após o fim da guerra,
o Império brasileiro tinha mais de mil quilômetros de
ferrovias; antes do fim do conflito, o Paraguai jamais
ultrapassou os oitenta quilômetros! Registre-se que o feito
ferroviário do Império não dissolveu, mas consolidou,
por longos anos, o caráter escravista da formação social
brasileira e, portanto, seu atraso social relativo!
A
primeira imprensa gráfica foi inaugurada no Paraguai
durante o governo de Carlos Antônio, também com imenso
retardo em relação às outras nações vizinhas. Folga
dizer que, em país dominado pela pequena produção
camponesa de subsistência, era impossível e sem sentido economia
planificada. O que não quer dizer que inexistissem políticas econômicas – tributárias, agrárias, etc., –, o que
é algo completamente diverso.
Modesta Tonelagem
Em
El presidente López, Julio
César Chaves sintetiza em forma ponderada as principais
obras materiais dos dez primeiros anos de lopizmo: “[...]
en el campo de la cultura la apertura de muchas escuelas
primarias en la campaña; el mantenimiento por cuentas del
Estado de tres casas destinadas a la educación de jóvenes
insolventes. La inauguración de un imprenta […]. En materia de obras públicas,
presenció Asunción la construcción de la nueva casa de
gobierno […], a más de otros edificios destinados a
oficinas públicas. […] Se puso término al arreglo de las
calles, asignándoles por decreto sus respectivos
nombres.”
Segue
o historiador liberal paraguaio, sempre simpático a Carlos
Antonio López: “En la campaña se cumplió un modesto
aunque intenso plan de obras de vialidad. Abriéronse nuevos
caminos, se rectificaron otros, ensanchándose algunos más,
se construyeron puentes, se canalizaron arroyos. En el orden
industrial, fueron ampliada las fábricas de pólvora y
tercerolas, estableciéndose otras para la producción de
proyectiles de artillaría.” Propõe sobre a marinha:
“Armáronse barcos de guerra de modesto
tonelaje, al mismo tiempo que se procedía a la
construcción por cuenta del Estado de varios buques
mercantes igualmente
de escaso calado.”[39]
Tratavam-se
de rústicas escolas rurais, de uma peça, de paredes de
barro e tetos de palha; de arreglo
das ruas da capital, e não de pavimentação; da
abertura e conservação de caminhos,
e não de estradas; de fábricas
públicas necessárias à defesa, e jamais de indústrias
apoiadas em mercado consumidor; de barcos fluviais de
limitada tonelagem, de cascos de madeira, etc.
A essas iniciativas governamentais se associaram, sobretudo,
a fundição de Ybycuí; menos de oitenta quilômetros de
estrada de ferro; sistema de telégrafo – tudo segundo
esforço de modernização
do país, comandado pelo Estado, de acordo com as
possibilidades do nível de desenvolvimento paraguaio,
apoiado em aumento da tributação da população, em mais
uma inversão do programa francista.
Por que a Guerra?
Não
são gratuitas as narrativas fantasiosas de Ronald L. Núñez
de desenvolvimento extremado para o Paraguai. Elas apóiam a
proposta da conspiração do capital inglês contra burguesia
progressista que empreendera industrialização
única no mundo, nessa pequena parcela do interior sul-americano.
Segundo ele, o Paraguai era “a nação mais progressista
da América”, com “burguesia nacional autônoma” em
formação. Sob o governo de Solano López, o país
“estava evoluindo de forma independente para o capitalismo
industrial”, o que teria sido “inaceitável para a
burguesia monopolista inglesa”.
Destaque-se que, no início do governo de Solano López, o
Paraguai teria pouco mais de quatrocentos mil habitantes!
“Sua
Majestade” começou “a sentir um incômodo em seus
sapatos”, exigindo que o portentoso
“mercado paraguaio” fosse “aberto sob a descarga dos
canhões”.
“[...] a causa central da guerra contra a Tríplice Aliança”
seria o “apetite insaciável da burguesia monopolista
inglesa”, que exigia que o mercado paraguaio consumisse os
“produtos manufaturados provenientes do imperialismo” e
produzisse “matérias-primas” para a indústria britânica.
Portanto, teria sido imprescindível destruir a burguesia
progressista e industrialista, farol do povo e da nação
paraguaia! [43]
Essa
visão contradiz a proposta do próprio Ronald L. Núñez de
que a “guerra promovida pela Tríplice Aliança foi [...]
de extermínio”. Se o imperialismo queria vender
mercadorias e comprar matérias-primas, por que exterminar
os consumidores e produtores! Aquela proposta esbarra
igualmente no grande projeto lopizta: inserir o Paraguai no
comércio mundial, como exportador de matérias-primas [erva-mate,
fumo, couros, madeiras duras, etc.] e importador de
manufaturados, sobretudo ingleses. Para tal, em 2 de janeiro
de 1846, Carlos Antonio baixara a taxação francista sobre
a importação de manufaturados e interviera no Prata em
prol de ligação com o exterior, invertendo a orientação
da política externa francista.[44]
Segundo
Ronald L. Núñez, a Inglaterra não fizera a guerra
diretamente ao Paraguai apenas por que dispunha “de
lacaios” “gananciosos” e “submissos na região”.
Consequentemente, coubera à Argentina, ao Brasil e ao
Uruguai fazer o serviço sujo, sem obterem vantagens, já
que o grande e único vitorioso teria sido a Inglaterra.
“O único vencedor do maior conflito armado na América do
Sul foi o nascente imperialismo britânico”, que promoveu
igualmente “a maior matança de seres humanos [...].”[46]
A Tese Imperialista
No
seu anti-imperialismo
simplista, a tese da guerra lutada essencialmente por
delegação dos interesses ingleses teve larga aceitação
na historiografia platina, antes mesmo de ser consagrada em Genocídio
americano, em 1979. Sua grande insuficiência provém do
fato de elidir a necessária (e complexa) explicação
essencial do conflito, a partir das contradições nas e entre as nações da
região, expressões dos projetos divergentes das classes
dominantes dos países envolvidos naqueles sucessos.
A
visão de determinação imperialista inexorável dos fenômenos
nacionais desconhece o papel dos confrontos entre as classes
dominantes e de estas últimas com as classes dominadas das
nações coloniais e semi-coloniais. Nos fatos, ela nega a
existência de história própria àquelas nações, sempre
decalco mecânico das potências hegemônicas.[47]
Porém,
impugnar a explicação imperialista para a Guerra Grande não
significa propor que a Inglaterra não tenha se colocado na
perspectiva da Argentina liberal-mitrista e do Império
liberal-escravista, contra o Paraguai, realizando
excepcionais negócios com o fornecimento de armas e empréstimos.
Não significa, muito menos, aceitar a de impugnação de
qualquer ação imperialista nessa região, ou do próprio
imperialismo, como avançado pelo historiador inglês Leslie
Bethell.[48]
Já
em 1955-57, Milciades Peña refutava com sensibilidade a
explicação da guerra como iniciativa inglesa,
responsabilizando por ela sobretudo as classes dominantes do Império brasileiro e a
oligarquia liberal-unitária portenha. “Ni la monarquía coronada
brasileña ni la oligarquía mitrista [argentina] hicieron
la guerra del Paraguay por encargo de Inglaterra, aunque al
terminar la guerra el principal beneficiario de la destrucción
del Paraguay y la miseria de sus vencedores fue el capital
londinense.” Destaque-se a proposta de Milcíades Peña da Inglaterra
como principal –
e não único –
beneficiário do conflito!
O
jovem historiador marxista-revolucionário argentino
assinalava com razão que o estopim conjuntural do conflito,
a invasão do Uruguai pelo Império, violentava a “posición
británica”, que não desejava o Uruguai sob o tacão de
um Império hegemônico no Prata.
Registre-se igualmente às contradições internas no seio
das próprias classes dominantes inglesas sobre o conflito
no Plata, que levaram à divulgação do vergonhoso tratado
secreto da Tríplice Aliança, causando enormes dificuldades
diplomáticas para os signatários do acordo.
As Razões do Império
Não
é aqui o local para apresentarmos as razões profundas do
conflito. Destacaremos apenas a necessidade do Império de
impor sua hegemonia sobre o Uruguai, já que interessado,
por um lado, no comércio do Prata, sobretudo após ser
expulso da costa da África pelos ingleses, e, por outro,
nos couros e charques garantidos pelo fértil pampa
oriental, necessários à cafeicultora escravista em expansão.
Era também antiga a vontade imperial de escancarar a navegação
nos tributários do Prata, abrindo o comércio com suas províncias
ocidentais, com destaque para o Mato Grosso.
A
vila de Corumbá, fundada, em 1778, na margem esquerda do
rio Paraguai, no último trecho navegável por embarcações
de porte, desenvolveu-se significativamente apenas após a
Guerra Grande, quando o Império dominou aquela navegação.
Então, transformou-se em um dos maiores portos fluviais da
América do Sul, recebendo vapores chegados do Brasil, de
outros pontos da América e da Europa, trazendo
manufaturados e levando couros, charques, peles, etc.
As
classes dominantes do Império reivindicavam importantes porções
das terras em litígio, em processo expansionista
impulsionado em detrimento de praticamente todas as nações
com que o Brasil tinha fronteiras. Fronteira e navegação
foram os motivos da grande intervenção naval do Império
no Paraguai, de 1854-5, aventura que resultou em um enorme
fracasso, em boa parte por motivos logísticos, demonstrando
a dificuldade das forças imperiais brasileiras de imporem-se,
em forma isolada, ao Paraguai.
Até agora ninguém propôs que essa primeira
guerra contra o Paraguai tivesse sido tentada por ordem
da Inglaterra!
Para
o liberal-mitrismo, expressão dos interesses da oligarquia
mercantil portenha e dos estancieiros bonaerenses, ambos
grandes associados do comércio e do capital britânico, a
derrota do Uruguai constitucional e autônomo e do Paraguai
aniquilaria as forças federalistas orientais e das províncias
do Interior e do Litoral argentino.
Os liberal-unitaristas argentinos sonhavam com a anexação
de ao menos parte do Paraguai, frustrada pela oposição do
Império, após o conflito.
As Razões do Paraguai
Tradicionalmente,
ao se discutir as razões e os sentidos da conflito, desde o
ponto de vista do Paraguai, analisa-se a Guerra Grande como
um só bloco, que iniciaria com a declaração de guerra ao
Império e, a seguir, à Argentina, e a intervenção em
defesa do governo blanco uruguaio, e terminaria com a morte
de Solano López, em Corro Corá, em 1870.
Cremos
que, analiticamente, o conflito deva ser dividido em dois
momentos, de qualidades distintas: a campanha
ofensiva, empreendida por iniciativa do Estado lopizta
e das classes dominantes paraguaias, interessados na
consolidação e expansão do export-import
e, portanto, da liberdade comercial, ameaçada pela eventual
hegemonia imperial sobre o porto de Montevidéu e pelo
controle liberal-mitrista do porto de Buenos Aires, após a
derrota federalista na batalha de Pavón, em 1862.
A
primeira fase da guerra resultou em enorme fiasco paraguaio,
devido à escassa visão diplomática, militar, política e
estratégica da administração Solano López, que traçou
plano de campanha irrealista, apoiado no apenas provável
apoio do general Urquiza e dos federalistas argentinos e na
eventual resistência das forças blancas orientais. Os
segmentos camponeses foram mantidos à margem da decisão
sobre a campanha atabalhoada, na qual foi aniquilada grande
parte do exército de linha paraguaio. É sintomático que
as tropas paraguaias tenham mostrado escassa criatividade e
belicismo na campanha ofensiva, rendendo-se em Uruguaiana quase sem combaterem.
Quando
da aventura militar de Carlos Antonio López
fora das fronteiras nacionais, contra Rosas, em aliança
com o general unitário Paz e as forças correntinas, parte
das tropas paraguaias sublevaram-se, em 28 de fevereiro de
1846, em Payubré (Pay
Ubré), na província de Corrientes, dispostas a marcharem para
Asunción, para exigir pronunciamento de congresso
sobre a intervenção. Solano López, com 19 anos,
comandante das tropas expedicionárias paraguaias, mandou
fuzilar os cabeças da sublevação e, posteriormente,
dissolveu os esquadrões insubordinados. A sublevação
certamente influenciou na suspensão da campanha e no
retraimento posterior de Carlos Antonio López. Como assinalado, os
camponeses paraguaios abominavam as aventuras militares fora
das fronteiras nacionais.
Uma Guerra Camponesa
Durante
a campanha defensiva,
lutada totalmente em territórios paraguaios, houve reversão
radical da belicosidade das tropas paraguaias, formadas então
sobretudo pela população camponesa armada, ou seja,
principalmente pelas forças auxiliares, de fortíssimas raízes
guaranis. Por além das suas sandices patrióticas, apesar
de não ter desenvolvido sua reflexão, o citado Manuel
Dominguez vislumbrara as raízes profundas do radicalismo na
defesa das fronteiras nacionais: a compreensão ou intuição
pela população rural de que na guerra jogava-se a sua
sorte como classe, assentada na posse ou no domínio da
terra.[53]
Apreenderemos
as conseqüências sociais essenciais da derrota paraguaia
na Guerra Grande apenas se compreendermos a segunda etapa
dos combates como uma guerra camponesa, na qual os pequenos
e médios produtores rurais serviram-se de Solano López – mais do que ele serviu-se deles –
para defenderem o que haviam conquistado, sobretudo durante
o período francista, e que não fora ainda radicalmente
confiscado pelo lopizmo. O caráter social desta guerra
nacional-camponesa foi e tem sido encoberto, pelo lopizmo
positivo e negativo, através da abusiva personalização
do conflito, empreendida em torno da figura de Solano López.
A
dissolução da antiga formação social paraguaia não se
deve à perda de imensas possessões que, nos fatos, não
faziam majoritariamente parte dos territórios históricos
nacionais paraguaios, argentinos ou brasileiros. No geral,
eram regiões que haviam cabido à Espanha, na
repartição de Tordesilhas e no Tratado
de Madrid, motivos de disputas desde o período colonial
entre as potências ibéricas, reivindicadas pelo Paraguai
quando do fracionamento do vice-reinado do Prata.
Destaque-se que aqueles territórios, pouco habitados, não
possuíam povoações significativas paraguaias, argentinas
ou imperiais.
Não
foi também a indiscutível mortandade que construiu a decadência da nação paraguaia. Ela jamais alcançou a dimensão
proposta por analistas extremados, como o próprio Ronald L.
Núñez, que sugere verdadeiro genocídio,
com a morte de metade
da população, ou seja, uns 225 mil paraguaios, com a
sobrevivência de apenas “mulheres, crianças e idosos”!
Registrem-se essa tradicional extrapolação dos decessos e
a afirmação irresponsável da morte de todos
os homens. Mesmo havendo forte mortandade entre a população
masculina, sobretudo adulta, a guerra poupou a população
feminina, que garantiu rápida retomada da demografia
paraguaia.[54]
A
grande derrota da formação social paraguaia foi
essencialmente político-social. Ela deveu-se à derrota,
massacre e desorganização de sua imensa classe camponesa,
golpeada fortemente durante os confrontos. O que permitiu
que, nos anos seguintes ao fim da guerra, já sob domínio
das classes dominantes paraguaias, liberais
e nacionalistas, ela fosse destruída socialmente, quando das imensas
privatizações das terras públicas, por ela ocupadas, em
geral sem títulos de propriedade, como assinalado.
Por
um desses paradoxos da história, o golpe mortal na
combalida classe camponesa paraguaia foi dado com a Lei de
16 de julho de 1885, quinze anos após o fim do conflito,
pelo maior herói lopizta a sobreviver à guerra, o general Bernardino Caballero
[1839-1912], durante sua gestão presidencial [1880-86]. A
lei permitiu “enajenar todas las tierras públicas” e
ervais.[55]
Com
o aniquilamento final da classe camponesa autônoma
impulsionado desta vez por representante das classes
dominantes paraguaias, em grande parte em prol do capital
estrangeiro, inaugurava-se o Paraguai moderno, com suas misérias
sem fim. Registre-se que Bernardino Caballero foi o grande
fundador do Partido Colorado, populista-autoritário, que
apoiou fortemente a gênese, desenvolvimento e consolidação
das teses nacional-patrióticas sobre a guerra do Paraguai,
abraçadas por Ronald L. Núñez.
[1]
Agradecemos os comentários da lingüista Florence
Carboni, da UFRGS, e da historiadora Victoria Baratta,
da UBA, Argentina.
[2]
Mário Maestri, 63, doutor em História pela UCL, Bélgica,
é professor do PPGH da UPF, RS, Brasil. E-mail: maestri@via-rs.net
[3]
Cf. MAESTRI, Mário. A
Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da
instauração à restauração historiográfica
[1871-2002]. Revista digital Estudios Históricos –
CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317.
http://www.estudioshistoricos.org/
[4]
Cf. DOMINGUEZ, Manuel. El alma de la Raza. Buenos
Aires: Ayacucho, 1946. Pp. 17-39.
[5]
Cf. BAEZ, Cecilio. Ensayo
sobre el dr. Francia y la dictadura en Sudamérica. 2
ed. Revisada y aumentada. Asunción:
Paraguay, 1985.
[6]
Cf. QUEIROZ, Silvânia de.
“Revisando a Revisão: Genocídio Americano: a guerra
do Paraguai de J.J. Chiavenato”, PPGH-UPF, dezembro de
2010. [dissertação de mestrado].
[7]
Cf. MAESTRI, Mário. Guerra
Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da
instauração à restauração historiográfica
[1871-2002]. Ob.cit.
[8]
Cf. CHIAVENATO, J.J. Genocídio Americano:
A guerra do Paraguai. 27 ed. São Paulo:
Brasiliense. 1987.
[9]
Cf. O´LEARY, J. E. El Mariscal Solano Lopez. 3
ed. Asunción: Paraguay, 1970. [1ed
1922]; ____. El Paraguay en la unificación argentina
[1924] e La guerra de la Triple Alianza. Asunción:
Instituto Colorado de Cultura, 1976.
[10]
CREYDT, Oscar. Formación histórica de la nación
paraguaya:
pensamiento y vida del autor. 3 ed. Asunción:
Servilibro, 2007. Pp.
47-119.
[11]
Cf. MAESTRI, Mário. A Singularidade do Estado Francista:
a Leitura de Oscar Creydt. História:
Debates e Tendências. Revista do Programa de Pós-Graduação
em História, [2012], no prelo.
[12]
WHITE, Richard Alan. La primera revolución popular
en America: Paraguay (1810-1840). 2 ed. Asunción:
Carlos Schauman, 1989.
[13]
HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde
1811 hasta 1865. Asunción: Instituto Cultural
Paraguayo-Alemán, 1996.
[14]
RENGGER, J.R. “Ensayo histórico sobre la revolución
del Paraguay”. RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El
doctor Francia.
Asunción:
El Lector, 1987. p. 51.
[15]
Cf.
ANDRADA E SILVA, Raul. [1905-1991]. Ensaio sobre a
Ditadura do Paraguai: [1814-1840]. São Paulo: Coleção
Museu Paulista, 1978. [Série ensaios, 3]. 267 pp.
[16]
Cf. FRANCIA, Edición comentada, aumentada y corregida
de la Colección Doroteo Bareiro del Archivo Nacional de
Asunción. Asunción: Tiempo de História, 2009-2010.
vol. I [1762-1816], II [1817-1830], III [1831-40].
[17]
Cf. CORONEL, Bernardo. Breve
interpretación marxista de la historia paraguaya:
(1537-2011). Asunción: Arandurã, 2011. 341
pp; NÚÑEZ,
Ronald León. Guerra
do Paraguai: revolução e genocídio. São Paulo:
Sundermann, 2011. 206 pp. (Coleção 10, 17).
Agradecemos o gentil envio do autor de cópia pdf da edição
paraguaia do livro.
[19]
Em nossa análise, ao citar o trabalho, utilizaremos a
versão abreviada em português.
[20]
Cf. RIVERA, Enrique. José Hernandez y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires:
Colihue, 2007. [1 Ed. 1954]; PEÑA, Milciades. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de
la Triple Infamia. 3 ed. Buenos Aires: Fichas, 1975
[21]
NÚÑEZ, Ob.cit. p. 23. Destacamos.
[23]
Cf., por exemplo: SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropológica del Paraguay del siglo
XIX. Asunción: Museo etnográfico Andres Barbero, 1992. P.31.
[24]
NÚÑEZ, Ob.cit. p.59. Destacamos.
[27]
Arquivo Nacional de Asuncion,
Asunción, Vol. 246, n. 1.
[28]
PLÁ,
Josefina. Hermano
negro: la esclavitud en el Paraguay. Madrid:
Paraninfo, 1972. P. 60
[29]
NÚÑEZ, Ob.cit. p. 81.
[30]
Id.ib. p. 66. Destacamos.
[32]
WHITE. Ob.cit. p.
213 et seq.
[33]
Cf. ANDRADA E SILVA, Raul. Ensaio sobre a ditadura do
Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção Museu
Paulista, 1978. pp. 59, 209 et
seq.
[38]
Cf. HEINZ, Peters. El
sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Ob.cit.
pp. 83 et seq.
[39]
CHAVES, Julio Cesar. El
presidente López: vida y gobierno de Don Carlos. Buenos
Aires: Ayacucho, 1955. P. 131. Destacamos.
[40]
Sobre a educação no Paraguai, ver: HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Asunción:
Instituto Cultural Paraguayo-Alemán, 1996.
[41]
NÚÑEZ, Ob.cit. pp. 95, 12
[44]
El
Paraguayo Independiente, n
28, Asunción, sábado, 17 de enero de 1846.
[45]
NÚÑEZ, Ob.cit. p.104
[47]
Cf.,
por exemplo: BANDEIRA, Moniz. O expansionismo
brasileiro e a formação dos estados na bacia da Prata:
da colonização à guerra da Tríplice Aliança.
São Paulo: Ensaio, 1995;
[48]
BETHELL, Leslie. O imperialismo britânico e a Guerra do
Paraguai. CASTRO, M.E. & MARQUES, M. [Org.] Guerra
do Paraguai: 130
anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. Pp.
133-150.
[49]
PEÑA. La era de Mitre.
Ob.cit.
p.61; MAESTRI, Mário. Círculo de Ferro:
Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino. Socialismo o
Barbarie, Buenos Aires, junio de 2010. http://www.socialismo-o-barbarie.org/historias/100620_milciadespenia.htm
[50]
TEIXEIRA,
Fabiano Barcellos. Uma estratégia contestada: a missão
imperial ao Paraguai (1854-1855). Revista Brasileira de História Militar, ano
II, n. 6, dez. 2011, dezembro de 2011, www.historia militar.com.br/artigo4RBHM6.pdf
[51]
Cf. POMER, Leon. Cinco años de guerra civil en la
Argentina. Buenos Aires: Amorrortu, 1986.
[52]
CHAVES, Julio Cesar. El
presidente López. Ob.cit. p. 109.
[53]
Cf. DOMINGUEZ, Manuel. El alma de la Raza. Buenos
Aires: Ayacucho, 1946. Pp. 34.
[54]
NÚÑEZ, Ob.cit. p. 168.
[55].
PASTORE, Carlos. La
lucha por la tierra en el Paraguay. 3 ed. Asunción:
Intercontinental, 2008. p. 225 et seq.