O
Brasil e dos ricos
Por Amália Safatle
Do estudo Os Ricos no Brasil
ESPSOC, 05/04/04
Os 10% mais endinheirados têm nas mãos 75,4% da
riqueza nacional
A renda dos
10% mais ricos corresponde a 45,3% do PIB brasileiro
O mais novo mapa da exclusão
social no Brasil revela uma concentração de riquezas maior do que se
supunha até agora. O estudo Os Ricos no Brasil, o terceiro de
uma série sobre o tema, levou um ano para ficar pronto, envolveu 16
especialistas e foi organizado pelo economista Marcio Pochmann, secretário
do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São
Paulo.
A pesquisa traz dados
aterradores ao considerar, além da renda das famílias mais ricas do
País – auferida pela participação no PIB –, o patrimônio
acumulado ao longo do tempo, ou seja, o seu estoque de dinheiro
representado por bens tais como imóveis, títulos públicos e ações.
A renda dos 10% mais ricos
corresponde a 45,3% do PIB brasileiro. Mas, quando se incluem no cálculo
dados sobre o patrimônio, a concentração salta aos olhos: chega a
nada menos que 75,4% da riqueza total brasileira. “O número de 45,3% já é um escândalo.
O que dizer de 75,4%?”, indaga
Pochmann.
Outro dado preocupante,
demonstrado no estudo de forma quantitativa, é que essa concentração
não vem de hoje, está cristalizada na história brasileira desde o
seu início.As famílias ricas mantiveram o seu status ao longo do
tempo durante séculos, mesmo atravessando mudanças de regime político
e de ciclos econômicos – Colônia, Império, República, economia
extrativista, agrícola, industrial, até a recente globalização.
– Daí pode-se concluir
que o Brasil é uma sociedade sem reformas – diz Pochmann.
Para resolver este que
talvez seja o principal problema na Nação – a desigualdade social
– Pochmann afirma que não basta exercer programas voltados apenas
aos pobres e miseráveis, como costumam fazer instituições
financeiras internacionais, a exemplo do Banco Mundial: é preciso,
mais que isso, envolver os ricos em uma grande operação de
redistribuição de renda. E, para envolvê-los, um dos primeiros
passos é saber quem são, quais são suas raízes históricas e como
agem no presente.
O
estudo, amparado em
bibliografia enriquecida por nomes como Gilberto Freyre, Raymundo
Faoro e Celso Furtado, teve como objetivo descobrir quem é, o que
faz, o que consome e onde “se
esconde”
a fina flor da elite brasileira. Sim, o termo é “se esconde”
– em vários sentidos. Esconde-se sob um aparato de segurança e
exclusão, vivendo em ambientes sempre fechados e restritos.
Esconde-se também do Fisco. Além disso, a literatura acadêmica
nacional, embora seja relativamente farta em dados sobre os pobres,
traz poucas informações sobre os ricos.
Pochmann conta a dificuldade em se obter dados sobre o estoque da
riqueza no Brasil. Os pesquisadores, que tiveram de recorrer a dados
tributários, reconhecem a imprecisão desses números – o que não
invalida a pesquisa, apenas mostra que a realidade da concentração
econômica brasileira pode ser ainda pior. O trabalho cita o estudioso
Charles Wright Mills, realizador de um estudo segundo o qual dois terços
da riqueza norte-americana não são declarados ao Fisco – isso em
um país com rigor tributário bem maior que o nosso. Além dos dados
da Receita, a pesquisa tomou como base informações dos Censos Demográficos
de 1980, 2000 e 2001 e a Pesquisa de Orçamento Familiar de 1996.
O trabalho de Pochmann vai
além dos dados divulgados pelo IBGE sobre desigualdade social, nos
quais se considera apenas a população com renda monetária. “Há
no Brasil 4,1 milhões de pessoas sem renda monetária, que não
entram nesse cálculo. Além disso, não conta o rendimento obtido por
meio de ações e títulos públicos”, explica.
Os ricos no Brasil são, na
grande maioria, altos dirigentes do setor privado, atuam
principalmente no setor de serviços e encontram-se nas capitais das
unidades federativas, encravados em bairros nobres. As duas últimas décadas
mostram uma concentração galopante de riquezas na capital paulista,
em detrimento da cidade carioca – fenômeno que Pochmann associa ao
conceito de cidades globais, pólos que o mundo globalizado elege para
liderar regiões. No caso, São Paulo conquistou o centro nevrálgico
da América Latina.
A cidade paulistana é prova de
como as elites adaptam-se às mudanças econômicas sem que seu status
seja alterado. Dona do principal pólo fabril do País, as riquezas não
saíram da cidade ainda que o setor industrial como um todo perdesse
força relativa na economia nacional nos últimos anos. A pujança das
indústrias foi substituída pela dos bancos, e São Paulo acabou
engolindo outras praças financeiras que até a década de 80 tinham o
seu destaque, como Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Para o economista, a crescente
sofisticação das operações do mercado financeiro, como as de
derivativos, potencializa a rapidez com que se geram e acumulam
riquezas. Em São Paulo, meca da ciranda financeira, a renda média
mensal das 76.738 famílias mais ricas é de R$ 36,6 mil, mais que o
dobro da renda média dos 1% mais ricos do Brasil (R$ 14,6 mil). No
Jardim Europa (distrito do Jardim Paulista, o bairro mais rico da
cidade) encontra-se o segundo metro quadrado mais caro do Brasil: R$
6,5 mil. Só perde para o metro quadrado de Ipanema: R$ 10 mil.
Já virou chavão dizer que a
cidade ostenta a maior frota urbana de helicópteros do mundo e a
maior de Ferrari, carro que custa quase R$ 1,5 milhão (o mesmo
comprado por Ronaldinho, vendido em 2001). O estudo cita ainda que uma
Ferrari 550 Maranello é importada por US$ 480 mil, o que financiaria
um ano de Bolsa-Família para 2.400 famílias brasileiras. Mais um
exemplo das absurdas discrepâncias nacionais: o assalariado-mínimo,
que ganha R$ 240 mensais, precisaria trabalhar 1.042 anos, e guardar
todo o seu dinheiro, se quisesse comprar por R$ 3 milhões a maior e
mais luxuosa lancha fabricada no Brasil, a Intermarine 740 Full.
Há ainda uma lógica perversa que
alimenta essa situação. De 1987 a 1996, os gastos das famílias
ricas que mais cresceram foram relativos ao aumento do ativo, ou seja,
à alocação de recursos em aplicações no mercado financeiro,
aquisição de imóveis e outros investimentos. As famílias ricas
destinam 23,1% (dados de 1996), ou quase um quarto de sua renda, aos
investimentos. Com isso, garantem a perpetuação da sua riqueza ou,
em outras palavras, a manutenção das coisas como elas estão. A título
de comparação, as famílias pobres conseguem destinar ao aumento do
ativo no máximo 4,5% de suas rendas.
O problema é ainda maior que esse,
na visão dos pesquisadores: ao pagar os polpudos juros dos títulos
da dívida pública vendidos a esses investidores abonados, o governo
impõe apertadíssimas metas de superávit primário que comprometem a
capacidade de investimento na chamada economia real, o que gera
desemprego e penaliza, principalmente, as classes menos favorecidas.
“Trata-se de uma transferência de dinheiro dos menos ricos para os
mais bem situados na pirâmide social”, afirmam os autores.
Que soluções Pochmann aponta para
o problema da exclusão social?
“Se formos usar a via da reforma,
e não da revolução, a principal experiência histórica que temos
no mundo é a da social-democracia”, diz. Nesses casos, construiu-se
uma estrutura secundária para a equalização da renda, ou seja,
ampliou-se a presença do Estado com a finalidade de aumentar a
tributação dos ricos e reduzir a dos pobres (a chamada tributação
progressiva), e redistribuiram-se os recursos em aparatos públicos (educação,
saúde, etc.), em programas de garantia de renda e em aposentadorias.
“Esse é o modelo mais exitoso de
inclusão social, sem que seja necessário alterar a lógica do
capitalismo”, diz o economista. Ele cita como países mais bem-sucedidos
nessa política os escandinavos, seguidos pelas demais nações da
Europa Ocidental e pelos Estados Unidos. Uma crítica do secretário
do Trabalho da prefeitura petista de São Paulo à reforma tributária
conduzida por Lula: “Nessa reforma não passou, por exemplo, o
imposto sobre a herança”, diz.
E de quem pode partir esse amplo
movimento de inclusão social? Pochmann de novo recorre à experiência
histórica para responder que é necessária uma combinação de três
fatores: grau de organização da sociedade, cultura democrática e
Estado com capacidade de fazer cumprir a lei. “Se houver vontade, em
três décadas o Brasil tem condições de ajustar esse grande
problema. Mas é preciso haver pressão social organizada. Por
enquanto só temos aqui uma pressão social não organizada, que
explode em forma de violência.”
O economista lembra que o Brasil só
viveu até agora sob dois tipos de combinações: autoritarismo político
com crescimento econômico e democracia com baixo crescimento econômico.
Nunca vivemos democracia com crescimento e com igualdade de
oportunidades para toda a população.
Ainda que a violência seja uma
forma de expressão, e das piores, o Brasil – um país sem reformas,
mas em guerra civil, como atestam os índices de criminalidade –
nunca assistiu a uma rebelião organizada das massas excluídas,
embora sobrem motivos para que se demonstre insatisfação. O que faz
dos brasileiros um povo tão pacato, termo que muitos gostam de usar?
Não se trata propriamente de uma questão de calma ou paciência.
Segundo Pochmann, “alguém já
disse, lá no século XIX, que o primeiro passo para mudar a realidade
é conhecê-la”. A não informação gera um quadro de acomodação
e cria as massas de manobra. Outra causa é a ausência de tradição
democrática. “Um país com 500 anos não viveu 50 anos de
democracia, ou seja, nem 10% de sua história.”
André Campos, sociólogo e um dos
co-autores da obra, acrescenta mais um fator: há uma relação de
dependência das pessoas prestadoras de serviços com os ricos (empregada,
babá, jardineiro, passeador de cachorro). Essa chamada “rede de
agregados” flutua ao redor da renda das famílias abonadas, e é
interessante para elas que o patrão se mantenha endinheirado.
Os autores citam também os fatores
midiáticos que reforçam a exclusão. A publicidade que enaltece os
valores do consumo, a novela da Globo que cristaliza as diferenças
entre as classes sociais e o jornalismo que nem sempre aborda o
assunto como deveria – até porque, como diz André Campos, é
controlado, no Brasil, pelas mesmas famílias que ocupam o topo da pirámide.
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