"De punhos
fechados, mas com as mãos nos bolsos"
A esquerda petista
diante de uma encruzilhada decisiva
Por Valério Arcary
(*)
Correspondencia de Prensa, 25/03/05
O destino da esquerda
petista parece perturbador. Não estão de acordo com a política
econômica do Governo Lula, opõem-se às metas do superávit
primário, à elevação dos juros, à liberação do fluxo de
dólares, que são, como é óbvio, a principal orientação do
Planalto. Mas, atenção, não estão satisfeitos, também, com a
política para a Reforma Agrária. Não fosse o bastante, não estão
de acordo com a reforma universitária, nem com a sindical, nem falar
na trabalhista. Nunca foram entusiastas do Fome Zero, nem da lógica
das políticas compensatórias do Bolsa-família. Já perderam as
ilusões na política do Itamaraty, depois do silêncio mais que
embaraçoso diante da moratória argentina, e da presença das tropas
no Haiti.
Em resumo, é preciso
procurar com muito boa vontade, minuciosamente, para encontrar alguma
política do Governo Lula que a esquerda apóie. Estas posições são
fáceis de entender. No entanto, as três principais correntes
nacionais da esquerda petista, DS (Democracia Socialista), Força
Socialista e Articulação de Esquerda, insistem em permanecer no
Governo, o que, admitamos, é mais do que estranho - depois de dois
anos - é bizarro.
A decisão de focalizar
a disputa em torno de nomes para a presidência do PT - enquanto a
resistência popular procura abrir um debate sobre o futuro do Brasil
- priorizando mais uma vez, na vigésima quinta hora, a luta interna
não é muito animadora. Se antes, em condições muito mais
favoráveis, quando a Articulação não dispunha de recursos, de todo
o tipo, hoje ao seu alcance - nunca se deve subestimar a capacidade de
persuasão que o poder exerce - não foi possível deslocar,
seriamente, a supremacia do aparelho de milhares de funcionários,
imaginar que seria possível derrotar Genoíno, justo no terreno que
lhe é mais favorável, parece preocupante.
Alguns explicariam esta
insistência tática com um argumento politiqueiro, portanto,
estritamente eleitoral: a maioria dos dirigentes da esquerda petista
teria que se resignar a um cálculo 'realista' de possibilidades de
renovação de mandatos, considerando que a sobrevivência eleitoral
exterior ao PT seria muito difícil nas condições impostas pelo
coeficiente eleitoral. É um argumento muito simples, mas poderoso.
Esta teimosia estratégica que desafia o bom senso, exige, todavia,
uma explicação marxista mais complexa, portanto, uma explicação
que deve condicionar os enfoques da análise política às pressões
de classe.
As relações entre
sujeitos políticos e sociais não pode ser harmoniosa, já que todas
as classes são socialmente heterogêneas e a disputa pela direção
é um processo exasperado. O movimento operário dos últimos cento e
cinqüenta anos à escala internacional, embora menos heterogêneo que
outros movimentos sociais - ao contrário do que, geralmente, se
admite - esteve dividido, grosso modo, em três grandes correntes
históricas: a reformista, a centrista e a revolucionária.
Se existe um padrão
regular e recorrente na história da esquerda mundial é o que nos
ensina que, em situações defensivas, a tendência moderada, portanto,
programaticamente reformista, foi sempre esmagadora maioria. Nessas
circunstancias, o centrismo, que oscila no terreno da tática,
erraticamente, porque não tem âncora estratégica, permanece em sua
órbita de atração, enquanto as posições revolucionárias estão
condenadas a ser uma minoria. Isso não é difícil de compreender.
Só em situações revolucionárias as idéias anti-capitalistas podem
conquistar maioria, porque somente diante de uma profunda
desmoralização e divisão burguesa, a perspectiva do poder é,
politicamente, visível por milhões. Ocorre que esse processo
depende, e muito, da capacidade das forças revolucionárias vencerem
obstáculos que estão inscritos, por ironia da vida, na sua própria
História. Expliquemo-nos: já foi dito que a maldição dos
revolucionários é a de passar décadas à espera de uma situação
revolucionária, e não a reconhecer quando ela começa a se desenhar
em frente dos seus olhos. Parece incompreensível, mas, é
freqüentemente assim.
No entanto, a
experiência histórica sugere,também, que acontece uma inversão no
descompasso relativo das relações políticas das massas
trabalhadoras e suas organizações, quando se abre uma situação
revolucionária. Expliquemo-nos: em situações reacionárias, em que
as pressões sociais hostis são imensas, as direções dos partidos
marxistas-revolucionários estão à "esquerda" das suas
bases, estes militantes estão à "esquerda" da vanguarda e
a vanguarda está, por sua vez, à "esquerda" das massas.
Quando reina o cepticismo, e o senso comum é que não é possível
mudar a sociedade, é preciso ousadia para marchar contra-a-corrente.
Sabemos como este
processo de isolamento pode conduzir, involuntária ou até
imperceptivelmente, a um "exílio social" dos
revolucionários. Quando a massa dos trabalhadores perde a confiança
em suas próprias forças, resistir às pressões de adaptação
política não é fácil, e as aventuras arrivistas de integração
são generosamente recompensadas. O afastamento dos grandes fluxos de
opinião majoritários entre os trabalhadores favorece pressões
doutrinárias e, marginalmente, até "patologias" sectárias.
Os "nomadismos" intelectuais e as "diásporas"
políticas são uma das conseqüências das inevitáveis rupturas que
se precipitam em série, cisão após cisão.
Estas relações
políticas entre representantes e representados se invertem, porém,
quando as relações de força começam a mudar a favor dos
trabalhadores e do povo. As massas giram abruta e velozmente à "esquerda"
e ultrapassam a sua vanguarda, e superam até mesmo as organizações
revolucionárias que, pela pressão das forças de inércia política,
reagem sempre, tendencialmente, atrasadas à evolução acelerada das
relações de força. Se este processo se confirmou como uma
recorrência em todas as revoluções urbanas, e atingiu seriamente
até o bolchevismo, seria ingênuo ou ligeiro imaginar que não
voltaria a se repetir no futuro. Porque estaríamos imunes no Brasil a
um processo que se confirmou quase como um padrão? Não estamos ainda
em uma situação revolucionária no Brasil, mas não é difícil
reconhecer, relembrando o que foi a segunda metade dos anos noventa,
olhando à nossa volta na América do Sul e perscrutando o longínquo
Oriente Médio, que a realidade mudou e a relação de forças ficou
mais favorável.
Ocorre que a inércia
política, os acomodamentos mentais, e um certo conservadorismo
tático - além das pressões sociais hostis, que anos de baixa
atividade política das massas não puderam contra-balançar - são
uma das piores heranças dos anos de refluxo. Historicamente, não
existe nada como as grandes lutas para que os líderes sintam a
pressão e a vigilância de suas bases. Não nos deveria surpreender,
portanto, se muitas das forças mais combativas do movimento sindical
e popular brasileiro hesitaram, durante anos e anos, quando se tratava
de romper com o PT, antes de Lula chegar ao Planalto.
Mas, depois da
frustração que tem sido o Governo Lula, e diante da perspectiva
torturante de um segundo mandato ainda mais à direita, parece
incrível que ainda priorizem a luta interna. Quantos milhares de
ativistas de base honestos já não estão se perguntando se não
passou da hora de iniciar mobilizações de massas contra o Governo
Lula?
Se os melhores
militantes nas fábricas, nos acampamentos, nas empresas e escolas -
os mais lúcidos entre os veteranos e os mais corajosos entre os
jovens - já estão se fazendo a pergunta, então é porque os seus
líderes estão muito atrasados. Como dizia Rosa Luxemburgo, "estão
de punhos fechados, mas com as mãos nos bolsos".
(*) Militante do PSTU
(Partido Socialista dos Trabalhadores-Unificado), profesor do CEFET-SP,
membro do conselho da revista Outubro.
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