Brasil bajo Lula

 

Para uma análise de conjuntura

Por Marcelo Badaró Mattos
www.grupopraxis.org, Agosto 2005

Não é simples realizar análises de conjuntura nestes tempos de perplexidade e desilusão, diante da extensão do estrago causado pelo governo do PT. Um estrago de grandes dimensões não apenas porque demonstra que esse partido surgido das lutas da classe trabalhadora contra a ditadura militar está irremediavelmente perdido como instrumento da classe, desde que assumiu no governo uma lógica contrária aos interesses desta classe. Mas, hoje principalmente porque se instaura um senso comum de que a esquerda no governo faz o mesmo ou pior do que a direita, vendendo–se politicamente através da corrupção.

A perplexidade e a desilusão não nos devem paralisar, pois os socialistas sabem que das contradições inerentes às crises podem surgir movimentos de confrontação à ordem do capital de maior magnitude. Para que tenhamos condição de intervir adequadamente num contexto destes, o primeiro passo é dimensionar a crise atual, o que não é simples, pois se trata de um processo em curso. Das denúncias de corrupção visando atingir o PT e os partidos da base aliada, passamos a uma crise política mais ampla, atingindo todo o sistema partidário (já que o esquema de distribuição de recursos do "Valerioduto" é suprapartidário e mais antigo) e caminha–se para uma crise institucional, em que estão em questão a legitimidade dos – até aqui dezenas – mandatos de parlamentares envolvidos, do Legislativo em si e das relações entre Legislativo e Executivo. No entanto, não há elementos para que avaliemos que tal crise possa abalar as bases da dominação de classes, pois, até aqui, as forças políticas que representam os interesses dominantes no Brasil estão sendo bem sucedidas em evitar que tal crise atinja os fundamentos de sua dominação, que se traduzem hoje na política econômica do governo Lula da Silva.(1)

Sustentando o insustentável

Em meio a esse quadro, surgem duas estratégias combinadas de defesa do governo e das figuras envolvidas no escândalo, particularmente as vinculadas ao PT. De um lado, tentam nos vender a idéia de que o crime que cometeram todos os que de alguma forma se vincularam ao esquema ao redor de Marcos Valério e suas empresas foi o crime eleitoral. Dinheiro e mais dinheiro teria circulado através de "caixas 2" com o objetivo de cobrir gastos de campanha. Embora só isto já configure de fato um grave atentado às nossas já limitadas instituições democráticas e a questão do financiamento das campanhas deva ser investigada até o fim, o fato que se tenta encobrir com tal ênfase nos desvios eleitorais é bem mais grave: todas as votações contrárias aos interesses dos trabalhadores perpetradas ao longo dos últimos anos (por enquanto tratamos do governo Lula, o que não dispensa as investigações sobre a "era FHC") – como a contra–reforma da previdência, a lei de falências, a liberação dos transgênicos, etc. – foram movidas à compra de votos dos parlamentares, sendo, portanto, ilegítimas e ilegais, mesmo do ponto de vista dos limitados controles de nosso sistema representativo atual.

De outro lado, e complementarmente, apresenta–se a tese de que a onda de denúncias é movida pelas "elites" – expressão vaga do jargão petista, cunhada justamente para se tirar de foco a dimensão de luta de classes e a precisa localização dos interesses das classes dominantes – inconformadas com o governo do operário Lula, buscando desestabilizá–lo, até mesmo através de um golpe. A ficção do "golpe das elites" já foi fartamente criticada e cabe retomar o argumento apenas para, ao destacar sua inconsistência, tentar explicitar o sentido de classe do governo Lula, moldura em que se desenrola a crise. Existisse de fato uma tentativa de desestabilização de Lula a partir das "elites", de onde ela viria? De fora, do imperialismo ianque, ameaçando Lula tal como ameaçou e ameaça Chavez na Venezuela?

Esse argumento é insustentável. O quadro internacional atual é marcado pelo domínio imperialista estadunidense. Um domínio afirmado não apenas pelo caminho econômico, mas também pela via militar, por guerras imperialistas de novo tipo, deflagradas não por conflitos entre potências imperialistas, como no quadro das Guerras Mundiais da primeira metade do século XX, nem pelo conflito bi–polar, que opôs o "bloco capitalista" ao "bloco comunista" durante a Guerra Fria.

A invasão do Iraque, dando seqüência ao movimento iniciado com a invasão do Afeganistão, é uma guerra imperialista de novo tipo justamente por marcar a posição estadunidense de dispensar inclusive a construção de uma coalizão internacional legitimada pela ONU. Trata–se de trocar sangue por petróleo, mas também de uma afirmação do poderio imperial da potência única, detentora de enorme poderio bélico, decorrente da dimensão gigantesca de seu complexo industrial militar. Duas ameaças em potencial poderiam hoje desestabilizar o projeto imperial estadunidense. Uma delas seria recrudescimento da crise econômica capitalista de longa duração, crise estrutural na análise de muitos. O outro, a ampliação da luta anti–imperialista, que se manifesta na resistência iraquiana, na resistência palestina, e no movimento anti–guerra e anti–globalização em suas dimensões internacionais.

Neste contexto, um dos focos de resistência ao Imperialismo estadunidense hoje surge, com todas as suas debilidades, na América Latina. Colocando em cheque as políticas neoliberais e os governos títeres do "grande irmão do norte" que as executam, as sucessivas rebeliões populares dos últimos anos, na Argentina, Bolívia, Equador e na Venezuela – as três primeiras para defenestrar governos pró–imperialistas e a última para manter um governo que se opõe aos interesses estadunidenses – constituíram–se sim em ameaças aos interesses dos EUA no território que desde o fim do século XIX seu governo tenta tratar como quintal. A resposta estadunidense vem através de mais cerco econômico para a manutenção do receituário ortodoxo imposto pelos organismos financeiros internacionais e mais cerco militar, como o demonstra o recente acordo para a instalação de mais um enclave militar estadunidense, através de uma base no Paraguai. Por isso, para o governo Bush, é muito importante manter, no maior país da América do Sul, um governo fiel à ortodoxia do FMI/Banco Mundial e parceiro do Imperialismo em ações de contenção pela América Latina, como no Haiti. Enquanto Lula da Silva continuar a cumprir esse papel, não haverá desestabilização imperialista contra ele.

Se não vem de fora, não viria de dentro – dos interesses contrariados das classes dominantes locais – a desetabilização, ou o "golpe das elites"? Trata–se de tese ainda mais insustentável. Mesmo para os que se apegam à superfície do debate partidário é difícil não constatar que a dita "oposição" dos partidos conservadores, formada pelo PSDB/PFL no Congresso Nacional, faz o que pode para equilibrar a equação – desgastar o governo, mantendo a governabilidade. Não lhes interessa que a crise política atinja dimensões de contestação social aberta, porque caso isso ocorra as maiorias trabalhadoras podem ir às ruas exigir não apenas a saída de Lula da Silva, mas o fim de sua política econômica. Por outro lado, querem fazer crer à população que a corrupção é coisa desse governo, e que a saída – sempre eleitoral – estará em eleger os "éticos" do PSDB/PFL em 2006. Para tanto, o mesmo FHC que mandou esquecerem o que escreveu, agora se recusa a responder às acusações fundadas de corrupção no seu governo com o argumento de que o que se passou até três anos atrás foi história e já está enterrado.

Mesmo a alternativa de um impedimento presidencial contido pelas regras vigentes – como no caso da substituição de Collor por Itamar – não parece cativar essa dita "oposição", pois o vice José Alencar, com suas constantes críticas à política de juros altos, é visto como uma ameaça ao "mercado" e como um candidato potencialmente imbatível se resolver alterar, ainda que superficialmente, a atual rota da ortodoxia de Meirelles e Palloci.

Neste ponto, poderíamos avançar um pouco mais, tentando localizar eventuais fissuras no bloco no poder, diante de diferentes posições de representantes das classes dominantes face à política econômica do governo. Alencar representaria os interesses do "capital produtivo" insatisfeito com a política recessiva de juros altos, enquanto Meirelles/Paloci seriam os prepostos do grande capital financeiro. Há aí alguma dose de verdade, mas não podemos nos dar ao luxo de análises simplificadoras do quadro atual da composição de forças dominantes.

Deve–se evitar, de um lado, qualquer tipo de associação entre "capital produtivo" e interesses nacionais, pois o grau de internacionalização do setor secundário brasileiro é cada vez mais elevado e o interesse maior dos empresários industriais brasileiros nas últimas décadas foi assumidamente o de inserir–se na nova fase da internacionalização do capital – a era da "globalização" – de forma subalterna, trabalhando por acordos comerciais que amplificam a subordinação da economia brasileira aos interesses imperialistas (como a ALCA ou o acordo Mercosul–União Européia) em troca de maior espaço para a exportação de mercadorias brasileiras.

Também é indevida a associação entre estes setores e a idéia de um novo "desenvolvimentismo". Não há espaço para desenvolvimento econômico acelerado com um mínimo de autonomia no quadro atual da economia capitalista internacionalizada. As políticas desenvolvimentistas, particularmente na sua origem no governo JK, tendiam a basear–se na disposição de sacrificar as receitas ortodoxas visto serem impeditivas ao crescimento econômico acelerado (como ficou demonstrado pela recusa em se fechar um acordo com o FMI nos termos propostos pelo Fundo). Além disso, eram baseadas em algum tipo de concessão, ainda que superficial e ilusória, aos de baixo. Assim, justificava–se o desenvolvimentismo junto aos trabalhadores com a idéia da expansão dos empregos urbanos no setor produtivo e da ampliação dos direitos sociais (como a extensão das garantias da CLT aos trabalhadores rurais e o 13o. salário, entre outras reivindicações atendidas na conjuntura de ampliação das lutas do pré–1964etc.). Hoje, o setor produtivo é o campeão das demissões, decorrentes do processo de reestruturação produtiva do capital e sua posição em relação aos trabalhadores é clara: retirada de direitos – flexibilização no eufemismo corrente – através de uma reforma trabalhista que sepulte de vez as parcas garantias que ainda estão de pé.

Portanto, a oposição de interesses entre "capital produtivo" e "capital financeiro" é superficial e superável. Uma pequena redução da taxa de juros e uma alteração na política cambial que possam gerar um novo e contido surto de crescimento da produção visando o mercado externo já bastaria para conter a querela interna à burguesia. Como fazê–lo sem abalar os fundamentos ortodoxos da política econômica e sem despertar a "desconfiança do mercado"? Ninguém menos que Delfin Neto, o velho comandante do naufragado "milagre econômico" da ditadura militar, apareceu como porta voz da nova "fórmula milagrosa". Apelidada de déficit nominal zero, consistiria em quebrar os já burlados (através das contribuições e taxas, como CPMF e Cofins, e da Desvinculação das Receitas União) mecanismos constitucionais que atrelam a arrecadação de impostos a gastos sociais nas áreas de saúde e educação, para cortar ainda mais os gastos públicos, gerando um superávit primário tão elevado que tornaria desnecessária a política de juros tão altos.

Se do ponto de vista dos interesses dominantes essa proposta daria certo é difícil avaliar. Mas é fato que se implementada agravará em proporções incalculáveis a situação já caótica de uma população cada vez mais empobrecida, espremida pelo desemprego, pela queda do poder de compra dos salários, pela insuficiência das políticas compensatórias e pela falência dos serviços públicos. Uma fórmula que certamente não ajudará a (re)eleger seu executor.

Se vista pelo ângulo dos interesses de classe dos dominantes no Brasil a tese da conspiração das elites não se sustenta, poderíamos crer que o governo de Lula da Silva e seus defensores no PT e nos movimentos sociais realmente acreditam nisso? No que diz respeito ao governo é óbvio que se trata apenas de argumento de retórica, pois seu caráter de classe – como governo das classes dominantes – está dado desde a 1a "Carta ao Povo Brasileiro", um documento de campanha em que a candidatura Lula/Alencar se propunha a "cumprir todos os compromissos" com o grande capital, financeiro em especial, assumidos pelo governo FHC.

Seguiram–se, para confirmar tal caráter de classe do governo: a nomeação do mega–executivo do Banco de Boston, Henrique Meirelles, para o Banco Central; a presença de Furlan e Rodrigues – representando o setor exportador de commodities e o agronegócio – no Ministério; a prioridade conferida em 2003 à (contra)reforma–previdenciária que retirou direitos dos trabalhadores e abriu novas fatias de mercado ao setor financeiro; as propostas de (contra)reformas nas áreas sindical/trabalhista e universitária; a política econômica dos juros altos, superávit asfixiante e completa subordinação ao FMI, entre muitos outros indicadores que poderiam ser aqui listados. Estivesse Lula da Silva de fato enfrentando – ou ao menos acreditando que está enfrentando – uma conspiração das elites, seus caminhos no governo poderiam tender a várias direções, mas dificilmente àquela que efetivamente foi tomada após a crise: uma reforma ministerial que ampliou as fatias ocupadas pelos partidos conservadores – das elites – e pelos setores ditos "técnicos" que representam os interesses do grande capital, sempre dispostos a avançar mais sobre os direitos dos trabalhadores com novas etapas de suas (contra)reformas neoliberais.

Este caminho do governo, cada vez mais à direita, teima em desmentir aqueles que ainda insistem na idéia de que é possível disputar alguma coisa neste governo, alguns com a sinceridade dos que ingenuamente sobrevalorizam sua vontade diante dos fatos da realidade, outros como pretexto para evitar o duro caminho de assumir esta realidade e coerentemente abdicar dos cargos e aparatos.

Porque então, se são tão insustentáveis as teses da "conspiração das elites" contra Lula, devemos continuar a debater com elas? Em especial porque, além do governo há setores expressivos dos movimentos sociais que estão respaldando essas teses, como os que assinaram o documento de junho "Carta ao povo brasileiro" e o reafirmaram em declarações recentes. Em relação a estes, é necessário estabelecer distinções, em especial entre os principais signatários, as forças que compõem a CMS – Coordenação dos Movimentos Sociais – CUT, UNE e MST.

Em relação à CUT, a saída de Luiz Marinho (Presidente da CUT eleito em 2003 por indicação de Lula) para o Ministério do Trabalho, afirmando–se desde a nomeação disposto a executar uma proposta de reforma sindical repudiada por todos os setores do movimento sindical, à exceção da tendência de Marinho na CUT (a Articulação Sindical e seus satélites) e da Força Sindical, é a comprovação derradeira de que o papel deste que foi o mais importante instrumento intersindical construído pela classe trabalhadora brasileira em sua história é hoje o de uma correia de transmissão de políticas de governo contrárias aos interesses dos trabalhadores. Perdida como instrumento de mobilização – e "indisputável" dado o elevado grau de degeneração burocrática e corrupção pelo capital da sua maioria dirigente – a CUT faz hoje o papel de dique de contenção das lutas.

Embora reconhecendo que a disputa mais importante nas bases cutistas seja hoje aquela que aponta para as lutas concretas que a direção da central quer a todo custo evitar, sendo, portanto, um equívoco transformar em prioridade zero o debate sobre sair ou não da CUT, é indispensável que todas as lideranças sindicais que ainda respeitam os princípios da autonomia, da combatividade e do classismo, disponham–se a publicamente esclarecer suas bases sobre o papel nefasto da CUT hoje e sobre a necessidade, respeitados os ritmos próprios, de ruptura com a Central e construção de novas ferramentas de unificação das lutas.

Não está no mesmo patamar a discussão sobre a UNE, não por conta de seu papel público, tão deplorável quanto o da CUT, mas por ser de outra natureza o vínculo do movimento estudantil real – dos secundaristas, dos DCEs e CAs/DAs combativos das Universidades Públicas – com a estrutura burocrática da UNE, aparelhada pelo PCdoB há muitos anos. Lutas efetivas da juventude são há muitos anos construídas por fora da UNE, que pode tentar capitalizar–se com elas ou contê–las, mas não as dirige efetivamente.

Outro deve ser o diapasão para se analisar o papel da direção do MST e não se pode apresentar análise pela esquerda com críticas ao MST do mesmo tipo das dirigidas à UNE e à CUT. Em primeiro lugar porque a direção do MST não é um corpo burocratizado distante de suas bases. Continuam a ser lutadores e lutadoras que não se venderam aos interesses de seus inimigos de classe. A história recente do movimento credenciou este movimento como força radicalmente contrária à onda política neoliberal e assim se mantém.

Além disso, a luta pela terra continua mais atual do que nunca – particularmente porque o governo Lula da Silva não apenas não fez avançar a reforma agrária, como também abriu maior espaço para o agronegócio e a sua re–atualização do latifúndio, ainda mais predatória porque destrói empregos no campo e devasta a natureza em escala industrial, mantendo e ampliando a concentração fundiária absurda do país.

No entanto, isto não significa endossar o que até aqui tem sido publicamente assumido pela direção do movimento. Se o governo Lula da Silva compromete–se com uma relativa trégua, evitando a linha da criminalização da luta pela terra e promete apoio – mas não o efetiva plenamente – aos hoje acampados e assentados, esta posição política do governo nos parece muito pouco para que a direção do MST equilibre–se na difícil posição de criticar a política econômica, sustentando como aliado o governo que a executa.

Seu argumento de que a fase atual, após tantos anos de devastação neoliberal e diante da decepção com o governo do PT, não seria propícia à ofensiva social, mas própria a um movimento mais lento e sólido de acumulação de forças (formação de novas lideranças, trabalho de base, mobilização progressiva, etc.) poderia se sustentar se o que estivéssemos assistindo fosse um posicionamento claro de construção autônoma das posições ocupadas pelo movimento na sociedade civil. Entretanto, não é de autonomia e avanço progressivo o sinal que estamos assistindo. Não é fácil vislumbrar como o movimento social pode acumular forças em fase de refluxo. Ou, no caso específico, como o MST pode acumular abrindo mão, mesmo que conjunturalmente, de priorizar seu objetivo maior – a reforma agrária, paralisada com Lula e Rosseto. Ou como acumular forças sem avançar em sua principal tática de luta: as ocupações em larga escala.

Por isso, embora com diferente inserção social, leitura distinta da realidade e objetivos diferenciados, a direção do MST, ao caminhar conjuntamente com os dirigentes da CUT e da UNE arrisca–se a tornar cada vez mais difícil o objetivo da união das lutas do campo e da cidade, visto que hoje, concretamente, CUT e UNE, conduzidas pelas suas direções, são obstáculos efetivos às lutas sociais.

Trabalhando por uma saída positiva para os trabalhadores

É a partir deste quadro que teremos que trabalhar para construir a necessária reação das forças de esquerda socialista, assim como dos movimentos sociais que preservam como seus os valores da autonomia, da combatividade e do horizonte de classe. Tal reação dependerá de uma articulação de forças, de clareza de propostas e de lutas unitárias.

O processo de reconstrução da esquerda brasileira está aberto e a crise atual apenas joga mais água num moinho que já gira há algum tempo. Neste processo, é preciso que todas as forças que assumem a necessidade da reconstrução e que já afirmaram publicamente seu reconhecimento da falência do projeto do PT apresentem a disposição de construir articulações, espaços comuns de reflexão, pautas e propostas unitárias, pois nenhuma delas sozinha poderá dar respostas suficientes na conjuntura.

São positivas, neste sentido, propostas como a apresentada pelo P–SOL, em seu encontro de fevereiro deste ano, de formação de uma frente social e política capaz de construir um verdadeiro projeto alternativo, de mudanças, característico de uma oposição de esquerda ampla, de massas, socialista e democrática.

Na mesma linha, são importantes as propostas surgidas da Assembléia Popular, reunida em São Paulo, em 9/07, com militantes de vários partidos socialistas, inclusive do PT, e de diversas organizações sociais. A assembléia conclamou os petistas que não desistiram de lutar por um Brasil Socialista a "abandonar o PT e, junto com todas as forças anti–capitalistas, construir novas instrumentos para retomar a trajetória de luta por uma sociedade livre e socialista". O mesmo encontro apontou o caminho da unidade e apresentou propostas de uma pauta mínima para construí–la. Chama–se agora, para os dias 24 e 25 de setembro em São Paulo, uma Assembléia Nacional Popular de Esquerda, que pode ser mais um passo importante deste processo de reorganização e unificação das forças de esquerda.

Quanto às propostas, não se pode arriscar hoje mais que algumas linhas gerais, até porque propostas mais amplas deverão surgir justamente da aglutinação das forças políticas socialistas que aqui é defendida. Neste sentido, é essencial que assumamos a luta pela punição e afastamento de todos os corruptos e corruptores. Não apenas os do atual governo, mas também aqueles que imperaram no processo de privatização das estatais e de aprovação da re–eleição, durante a gestão de FHC. Mas, para nós, a corrupção não é apenas um problema ético, ela é parte da lógica do sistema capitalista, começa na extração do sobre–trabalho do trabalhador pelo patrão, passa pela lógica do lucro, da acumulação e apropriação privada e desemboca na perspectiva que toma o Estado como um instrumento dos interesses privados do capital.

E desde os anos 1990, a corrupção esteve a serviço de um projeto político neoliberal, das contra–reformas que retiraram direitos dos trabalhadores, das privatizações em que praticamente o Estado pagou para entregar patrimônio público a empresas privadas. Por isso, nossas propostas devem privilegiar o combate à política econômica do governo Lula, entendendo que este é o núcleo definidor do caráter de classe – afinado aos interesses do grande capital – deste governo, que por isso, e não apenas pela corrupção, deve ser combatido.

Não nos basta denunciar a corrupção nos esquemas eleitorais, em si espúria, mas mostrar claramente que são ilegítimas e ilegais todas as votações em que parlamentares receberam "mensalão" para votar. Por isso, nossa plataforma tem que incluir a proposta da anulação de todas as votações, deste governo e do anterior, em que ocorreu a compra de votos de parlamentares.

E não podemos apostar tudo neste Congresso Nacional para resolver a crise através das CPIs, que podem assumir um papel cada vez mais importante de informação e denúncia, mas tendem a trabalhar para restringir as punições a alguns parlamentares que teriam seus mandatos cassados, dando assim uma "satisfação à opinião pública". Devemos apostar na construção de saídas que envolvam a participação direta da maioria dos cidadãos, através de consultas plebiscitárias, por exemplo.

A associação entre corrupção e política econômica pode ser concretizada a partir de elementos simples e diretos. Um exemplo mais que transparente: o governo Lula da Silva mantém e aprofunda a política de arrocho salarial e retirada de direitos do funcionalismo público, desrespeitando acordos, embromando em mesas e reprimindo o exercício do direito de greve. Por outro lado, sua política econômica, privilegiando o capital financeiro, mantém os juros em patamares estratosféricos e cria nichos de mercado seguros para os bancos, justamente sobre os funcionários públicos e aposentados, como os fundos de pensão, com a previdência complementar regulada pela contra–reforma de 2003 ou, em escala menor, os empréstimos para funcionários e aposentados com pagamento descontado em folha. O grau de envolvimento dos fundos de pensão nos esquemas escusos, desde pelo menos o momento das privatizações, já vem sendo fartamente denunciado. Agora sabemos que o BMG, que opera privilegiadamente os empréstimos para os funcionários públicos, que recorrem à ciranda dos juros pela compressão dos seus salários, é um canal privilegiado – junto com o Banco Rural – da operação do mensalão. Ou seja, saiu também da montanha de dinheiro descontada em folha dos servidores, às voltas com as dívidas e os juros, a pequena fatia (pequena para o padrão dos lucros bancários) que alimentou o esquema de Marcos Valério e dos partidos que ele representava. Por fim, cabe–nos estar nas ruas, construindo na ação coletiva organizada a unidade nas lutas. Não será através de negociações isoladas com os patrões ou com os Ministérios que os sindicatos de trabalhadores, do setor privado ou do público, conseguirão avançar em conquistas para suas bases. É preciso elevar o patamar de unificação das lutas, enfrentando sim a corrupção, mas indicando a centralidade da luta ampliada contra a política econômica, contra as contra–reformas – a universitária e a sindical continuam na pauta – e contra o governo do grande capital que as patrocina. Este deve ser o sentido dado às manifestações unitárias que estão sendo montadas. Entre elas destaca–se no horizonte próximo a marcha convocada para o dia 17 de agosto em Brasília.

Todo apoio às greves em curso e porvir, às necessárias ocupações de terra no campo, as ocupações dos sem–teto nas cidades, pois só através da ampliação do patamar de luta poderemos de fato dar resposta à crise em curso, procurando construir a saída que interessa aos trabalhadores.


(1)Basta lembrar que em meio à crise política circula como "boa notícia" a divulgação, pelo BC, do superávit primário total acumulado no primeiro semestre do ano: R$ 59,95 bilhões ou 6,43 % do Produto Interno Bruto (PIB).

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