Brasil

 

Submissão e Autonomia

Apontamentos sobre a gênese, formação e crise do Estado nacional no Brasil

Por Mário Maestri (*)

Primeira parte

I. GÊNESE, CONSOLIDAÇÃO E CRISE DA FORMAÇÃO SOCIAL ESCRAVISTA BRASILEIRA

O Escravismo colonial

O poder estatal lusitano implantou-se na América através de colônias [capitanias, donataria], inicialmente litorâneas, centradas na produção escravista exportadora de gêneros alimentícios e minerais que exigiu a apropriação latifundiária e alodial da terra e a feitorização de mão-de-obra, primeiro americana, a seguir, africana. A escravização de americanos permitiu a acumulação inicial necessária à expansão da produção colonial e à importação de trabalhadores africanos, após a extinção tendencial das comunidades nativas, sobretudo do litoral. A escravização de americanos prosseguiu nas regiões ligadas fragilmente à produção de mercadorias para o mercado internacional.

A inserção das colônias luso-americanas na divisão mundial do trabalho, através de modo de produção escravista colonial, determinou o extermínio, a degradação das condições de vida, a assimilação subalternizada das comunidades americanas e dos produtores africanos. O escasso desenvolvimento das forças produtivas ensejou formas rudimentares de resistência social ao escravismo. O Estado Lusitano constituiu-se de bloco político-social no qual dominavam as classes agrárias feudais, associadas, sobretudo, à burguesia mercantilista e aos plantadores escravistas. As classes escravistas das colônias americanas dependiam do Estado Lusitano para manter o fluxo da mão-de-obra escravizada, o controle dos territórios, a submissão dos produtores diretos.  A produção regional de bens exportados pelos portos regionais, por onde chegavam os manufaturados e os trabalhadores escravizados, e o imbricamento ao Estado Lusitano ensejavam colônias social e economicamente semi-autônomas.

O caráter semi-autônomo das colônias luso-americanas e os frágeis laços entre elas ensejaram inexistência de mercado interno nacional propriamente dito e de consciência brasileira por parte das classes dominantes regionais, que aceitavam - já que  necessitavam para produzir e se auto-reproduzir - a hegemonia metropolitana. Conseqüentemente, essas classes se auto-concebiam-se como lusitanas e pernambucanas, paulistas, maranhenses, etc. Duramente submetidas e mantidas à margem da comunidade civil, as classes exploradas tinham origens étnicas diversas, praticavam línguas e costumes variados. No período colonial, a administração  metropolitana das colônias americanas – centralizada ou não − pactuou sempre com os interesses escravistas regionais. O aparato administrativo colonial interpretava mais fortemente os interesses escravistas à medida que se distanciava do poder central. Durante a Colônia, não podemos falar de Estado colonial-escravista brasileiro propriamente dito.

Em inícios do século 19, quando da crise colonial, os fortes impulsos autonomistas, republicanos e liberais das classes exploradoras regionais – que se expressaram na Inconfidência Mineira, Revolta dos Alfaiates, Revolução Pernambucana, etc. – foram sufocados pelas classes crioulas regionais hegemônicas  em prol de projeto monárquico-centralista nascido sobretudo da necessidade de manter o tráfico transatlântico e a população trabalhadora escravizada na submissão. O unitarismo brasileiro foi exigido pela defesa da ordem escravista. Até a Abolição, o Estado Monárquico defendeu os interesses dos grandes escravistas, através de ordem institucional autoritária e centralizadora organizada em torno do imperador.

Estado Escravista

A transferência para o Brasil do aparato administrativo central do Estado lusitano determinou que ele defendesse crescentemente os interesses escravistas, então principal base de seu poder, fato que ensejou o movimento restaurador da burguesia mercantil lusitana, em 1820. A partir de 1822, o Estado Monárquico-Escravista prosseguiu a liberdade comercial, instituída por dom João, sob a exigência do governo inglês. A medida interpretava as exigências das classes exportadoras regionais e aniquilou a frágil produção artesanal-manufatureira provincial, consolidando a hegemonia escravista.  De 1822 a 1831, o Estado Monárquico-Escravista interpretou igualmente os interesses da burguesia comercial lusitana radicada no Brasil e da Casa dos Braganças. Devido à crise da mineração e à recessão pós-guerras napoleônicas, a economia escravista-exportadora conhecera importante recessão. Sediado no Rio de Janeiro, o Estado Monárquico-Escravista, sob o controle das facções de classes organizadas em torno da Corte, empreendeu forte exploração semi-colonial das províncias periféricas, que mantiveram a autonomia sócio-econômica relativa. Durante a Regência [1831-40], facções liberais, republicanas, federalistas, separatistas regionais questionaram fortemente o unitarismo e o centralismo político imperiais – Cabanagem, Balaiada, Farroupilha, Praieira, etc.

Mesmo após a deposição de dom Pedro, em abril de 1931, o então domínio pleno das classes escravistas sobre o Império não determinou a gênese de Estado-nação, mantendo-se a forte autonomia provincial social e econômica de fato, por um lado, e a marginalização das classes trabalhadoras dos direitos civis, por outro, fenômenos nascidos do prosseguimento da dominância do modo de produção escravista colonial. A produção latifundiária-escravista ensejou a formação de classe trabalhadora, sobretudo de origem africana e nativa, duramente explorada, de limitada esperança média de vida, de baixo nível cultural, com débeis laços familiares e frágeis vínculos com a terra e com o território, mantida à margem dos direitos cidadãos mínimos, o que ocorria, do mesmo modo, em forma apenas menos completa, com os limitados segmentos trabalhadores livres.

Nas terras imprestáveis à produção latifundiária, o Estado Monárquico-Escravista favoreceu o estabelecimento de comunidades de colonos-camponeses de origem européia, sobretudo para que fossem contraponto aos trabalhadores escravizados; gerassem braços para os exércitos; produzissem alimentos para as capitais e latifúndios. A concessão de terras, primeiro gratuita, a seguir financiada, próximas aos mercados provinciais, permitiu que as comunidades colonial-camponesas se desenvolvessem, sob a permanente expropriação da renda familiar empreendida pelo capital comercial. No contexto da posse da terra e do acesso ao mercado, a necessidade dessa produção familiar de braços determinou fortíssima expansão demográfica, absoluta e relativa.

Com a abolição do tráfico transatlântico de trabalhadores [1850], as classes dominantes escravistas preocuparam-se com a expansão do raquítico mercado livre de trabalho e com a reprodução endógena de trabalhadores livres, aprovando a Lei de Terras [1850-4] que proibiu a distribuição gratuita de propriedades fundiárias a fim de produzir-reproduzir homens livres pobres, obrigados a vender a força de trabalho a preço vil, já que incapazes de produzirem seus meios de subsistência – exército rural de reserva. A Lei de Terras possibilitava a expansão quase sem ônus dos latifúndios através do reconhecimento das posses, em geral compradas-expropriadas a caboclos posseiros, sem representação política.

II. GÊNESE, CONSOLIDAÇÃO E CRISE DO ESTADO OLIGÁRQUICO BRASILEIRO

A Revolução Abolicionista

A abolição do tráfico transatlântico, em 1850,  pôs fim à expatriação de capitais necessária à importação de trabalhadores escravizados, favorecendo maior taxa de acumulação de capitais pela cafeicultura escravista então hegemônica. A seguir, com o esgotamento das terras fluminenses, o centro da produção escravista deslocou-se para São Paulo.  A abolição do tráfico internacional e o aumento do preço do cativo promoveram a concentração da mão de obra escravizada no Centro-Sul cafeicultor. O surgimento de territórios e de classes sociais à margem da escravidão favoreceu a formação de movimento emancipacionista e, a seguir, abolicionista. A luta histórica dos cativos contra a escravidão – mais comumente individual, localizada, não-política – conquistou apoios sociais, políticos e nacionais entre a população livre.

Intérprete dos interesses escravistas hegemônicos, com destaque para os cafeicultores, o Estado imperial impediu que as províncias menos dependentes da produção escravista abolissem a instituição, criando, assim, áreas opostas política, social e economicamente à instituição, como ocorrera nos USA. A solidez do escravismo bloqueou por décadas o desenvolvimento social e produtivo de formação social brasileira profundamente regionalizada. Nos últimos anos da escravidão, as relações escravistas emperravam a própria expansão da cafeicultura dominante. Maturavam, portanto, as condições para a destruição das relações escravistas dominantes que obstaculizavam o desenvolvimento da produção livre. Desde fins de 1887, apoiados pelo abolicionismo radical, os cativos empreenderam o abandono das fazendas cafeicultoras, exigindo relações de trabalho contratuais, pondo assim derradeiro fim ao escravismo, em 1888.

A Abolição foi a única revolução social vitoriosa no Brasil. Ela destruiu o modo de produção escravista colonial que dominara, por três séculos e meio, a sociedade no Brasil, unificando social e juridicamente a classe trabalhadora,  dividida até então em trabalhadores juridicamente escravizados e trabalhadores juridicamente livres. A falta de tradição ampla de posse de exploração parcelar − individual ou familiar − da terra pelo trabalhador escravizado ensejou que ele se mobilizasse sobretudo pela liberdade e não pela divisão dos latifúndios, o que facilitou, no momento da transição, a manutenção, por um lado, do caráter agrário-latifundiário da produção da riqueza e, por outro, da essência oligárquica do exercício do poder no Brasil republicano.

A Abolição foi possível devido à expansão endógena da população livre-pobre, sobretudo mineira e nordestina, e à importação de milhões de trabalhadores europeus, sobretudo italianos, no final da escravidão. Esses processos promoveram a constituição de crescentes multidões de trabalhadores obrigados a vender a força de trabalho por preço vil − exército rural e urbano de reserva. O abolicionismo foi a primeira proposta política a se transformar em movimento político nacional de massas, formado por trabalhadores escravizados e livres, classes médias e proprietários não-escravistas dos campos e de cidades. Fenômeno que sequer a luta pela independência, socialmente excludente, materializou. O abolicionismo via o fim da escravidão como passo na modernização do país a ser obtida através de reformas político-sociais entre as quais destacava-se a distribuição de terras a ex-cativos e livres-pobres. O Partido Liberal adotou parte desse programa.

A contra-revolução republicana

A plena dominância de variadas formas de produção apoiadas em produtores juridicamente livres tornava desnecessárias e anacrônicas as instituições centralizadoras imperiais criadas para defender a escravidão. Novas classes e novas formas de produção mais complexas exigiam formas de dominação mais refinadas. O movimento republicano, de 15 de novembro de 1889, foi promovido sobretudo pelo Partido Conservador, apenas derrotado no pleito eleitoral, e por ex-conservadores, em geral grandes proprietários de terras convertidos ao republicanismo. A República foi golpe federalista e oligárquico, de caráter antidemocrático preventivo. Ela entregou o poder político às oligarquias agrárias regionais, já detentoras do poder econômico, e pôs fim ao movimento nacional-reformista parido pelo abolicionista. A República não foi uma revolução burguesa, ainda que tenha aplainado o terreno para o desenvolvimento da produção capitalista, que iniciara seu percurso no Brasil muito antes de 1888. A República ensejou a conformação de Estado Republicano, Federal e Oligárquico constituído sobretudo pela associação de classes agrário-latifundiárias mercantis regionais que tinham o fundamental de seus ganhos apoiado na renda da terra [pré-capitalista] e em relações de produção não-capitalistas. As classes industrialistas regionais integraram em situação claramente subordinada o bloco político-social oligárquico-republicano.

Na direção de seus estados, as oligárquicas rurais regionais em crise aprofundaram a opressão das classes exploradas, motivando movimentos populares insurgentes – Canudos, Contestado,  etc. –  de cunho social e libertário, apesar da expressão messiânica de alguns deles nascida dos limites objetivos da consciência popular, sobretudo rural. Na República Velha, elevados formalmente à cidadania, os trabalhadores foram mantidos na submissão política e social através de meios coercitivos [exército, polícia, jagunços, etc.], legais [voto aberto limitado aos alfabetizados, etc.] e ideológicos [racismo, monocracia positivista, etc.] As elites republicanas regionais herdaram dos escravistas a visão consensual da necessidade de manter as classes populares à margem dos direitos políticos e sociais de fato.

A entrega pelo Estado Republicano Oligárquico de grande parte do poder político às classes dominantes regionais, sobretudo agro-exportadoras, aprofundou a autonomia política, econômica e identitária dos agora estados. Sem conformar de fato uma nação, o Estado Republicano, Federal e Oligárquico constituía-se de superestrutura jurídico-política de classes dominantes regionais, sobretudo latifundiárias e exportadoras, dominada pelos estados de maior economia e população – SP, MG, RJ, Ba, RS.  A transição republicana no Rio Grande do Sul foi exceção. A consolidação de bloco político-social intérprete da economia colonial-camponesa, da agricultura pequeno-mercantil, da agricultura capitalista, do artesanato, da manufatura e da indústria regional, etc., localizadas sobretudo no norte do Estado, deslocou do poder a oligarquia agrário-pastoril, centrada principalmente no sul, em estagnação econômica [Guerra Federalista, 1893-95]. Esse processo foi determinado em boa parte pelo crescimento demográfico, do mercado interno, da acumulação de capitais,  etc. impulsionado pela economia colonial-camponesa.

O Partido Republicano Rio-Grandense empreendeu modernização autoritária pró-capitalista e antiliberal, voltada à autonomia política, econômica e social regional, que se apoiou na ideologia antidemocrática do positivismo comtiano. O PRR interveio na economia em apoio do desenvolvimento dos interesses mercantis e capitalistas dominantes, financiando a educação, os meios de comunicação, encampando sistemas de transporte em mãos estrangeiras, etc. Na República Velha, sobretudo no RJ, SP, RS, Ba e Pe, desenvolveu-se produção e reprodução do capital, em pequenas, médias e grandes unidades produtoras de mercadorias – tecidos, alimentos, móveis, etc. –, para os mercados locais e regionais, sobretudo. Essa produção-reprodução de capitais apoiou-se exclusivamente em acumulação originária endógena, ensejada pela economia escravista e colonial-camponesa, sobretudo.

República Federal-Oligárquica

Apesar do capital fabril em desenvolvimento, as oligarquias agrárias mantinham o domínio político inconteste em todos os estados, à exceção do Rio Grande do Sul. Em 1910, dos 23 milhões de trabalhadores, apenas 160 mil eram operários manufatureiros e fabris propriamente ditos, dispersados através e nos Estados mais industrializados, sobretudo RJ, SP e RS. Ainda em 1920, setenta por cento da população nacional vivia e trabalhava no campo, sobretudo em atividades direta ou indiretamente exportadoras – café, cacau, borracha, algodão, fumo, couro, etc. Era imensa a dispersão geográfica, étnica e social da classe trabalhadora rural – imigrados e descendentes de imigrados; ex-cativos e descendentes de ex-cativos; caboclos; etc.; trabalhadores assalariados; meeiros; moradores; pequenos proprietários, etc.

Na República Velha, a renda exportadora apoiou a formação de mercado interno, de cunho essencialmente regional, apenas em parte abastecido pela produção artesanal, manufatureira e fabril regional. A classe trabalhadora artesanal, manufatureira e fabril conhecia exploração apoiada sobretudo na produção de mais valia absoluta. Descentralizada pela produção-realização local e regional das mercadorias, sua vanguarda buscou coordenação regional e nacional política correspondente à centralização federal política das classes proprietárias. Em 1906, no Rio de Janeiro, realizou-se o 1° Congresso Operário Brasileiro, com a representação de sindicatos e associações de chapeleiros, marmoristas, carpinteiros, pedreiros, ladrilheiros, pintores, sapateiros, etc. Nesse momento, diante da quase inexistente integração nacional da produção e do consumo, podia-se falar sobretudo de classe operária no Brasil e não de classe operária brasileira.

Opostos à intervenção na vida política oligárquica, os setores anarco-sindicalistas dominaram as minúsculas vanguardas operárias locais e regionais. Ideologicamente, o anarquismo e, sobretudo, o anarco-sindicalismo expressavam a forma de produção artesanal e pequeno-manufatureira de grande parte da classe trabalhadora da época. Com o impacto da revolução de 1917, a vanguarda política operária foi conquistada para o PCB que, fundado em 1922, desenvolveu-se sob a hegemonia do autoritarismo e colaboracionismo stalinista. No contexto de sociedade agro-exportadora, escassamente industrializada, com classe operária jovem e heterogênea, a adesão ao comunismo foi essencialmente ideológica, sendo mínimos o conhecimento do marxismo e seu uso na interpretação da formação social brasileira. Na República Velha, as frágeis classes médias regionais – militares, funcionários, professores, liberais, etc. –, em estagnação econômico-social, iniciaram ativismo político que se centralizou e se expressou em forma mais forte no Exército – Tenentismo. Forças Armadas e Igreja eram as duas únicas grandes instituições nacionais. As classes médias viam com antipatia-receio a organização-promoção das classes populares e trabalhadoras, sobretudo afro-descendentes. A seguir, segmentos das classes médias radicalizadas expressaram-se fortemente através das organizações operárias.

Durante a I Guerra Mundial, a militarização das indústrias européia e estadunidense promoveu fortalecimento da produção manufatureira e industrial regional do Brasil, através do processo de substituição de importações. Esse movimento foi apoiado pelo desenvolvimento das exportações do Brasil no período bélico. A crise dos anos 1920 e as transformações estruturais da produção capitalista determinaram a queda do preço do café e dos produtos primários, levando a que sobretudo as classes cafeicultoras paulistas, nacionalmente dominantes, aplicassem os recursos e o poder federal na defesa de sua renda, comprometendo a taxa de lucro das oligarquias regionais periféricas – algodão, açúcar, arroz, cacau, charque, etc. Ensejando inflação, a política de defesa do café deprimia consumo popular já baixo, aprofundando a crise social, muito forte entre os setores médio, populares e operários.

III. GÊNESE, CONSOLIDAÇÃO E CRISE DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO BURGUÊS AUTÔNOMO

Domínio e consolidação burguesas

Em 1929, as oligarquias agrárias periféricas apresentaram candidatura contra o prosseguimento do controle da presidência por representante direto da cafeicultura paulista. A Aliança Liberal possuía programa liberal, oligárquico e agro-exportador, sem qualquer sensibilidade industrialista. Getúlio Vargas, candidato do bloco das oligarquias periféricas, ex-governador do Rio Grande do Sul, era membro de destaque do Partido Republicano Rio-Grandense que realizara reunificação momentânea dos republicanos situacionistas e da oposição liberal-pastoril, que escovava sua produção em boa parte para os outros estados da federação. Em 1930, a derrota eleitoral da Aliança Liberal determinou movimento militar que perseguia essencialmente a restauração do equilíbrio inter-oligárquico.

A segunda crise mundial do capitalismo depreciou o valor das exportações primárias, debilitando, por um lado, as oligarquias agro-exportadoras regionais, em geral, e cafeicultoras, em especial, e, por outro, deprimindo a capacidade importadora do Brasil, o que interrompeu relativamente a importação de manufaturados, fundamental para o abastecimento do mercado interno.  Em 1930, a produção industrial do Brasil, em expansão, superava a rural-exportadora, em depressão.

Na direção do governo provisório, Vargas iniciou intervenção na economia e na sociedade que apontou para o desmonte da autonomia federalista-oligárquica da República Velha, motivando a Revolução Constitucionalista, em 1932, empreendida pela oligarquia paulista e apoiada por Borges de Medeiro, principal intérprete no PRR do autonomismo rio-grandense. Como chefe do governo provisório [1930]; como presidente constitucional [1934]; como ditador [1937], Vargas interpretou os interesses das classes industriais burguesas, sobretudo dos segmentos dominantes paulistas e cariocas, sendo por eles apoiado, repetindo, em forma potenciada, para o Brasil, o programa de desenvolvimento mercantil-capitalista autonômico do PRR, para o Rio Grande do Sul.

A crise capitalista mundial – 1929-1933 – deprimiu o mercado mundial de capitais, o valor dos produtos primários, o consumo internacional, determinando que o desenvolvimento da indústria no Brasil devesse necessariamente se dar com capitais internos e voltado ao mercado interno, de dimensão relativa e abastecida em grande parte pela produção internacional. De 1939-45, a militarização da produção industrial estadunidense e européia favoreceu o prosseguimento do processo de industrialização por substituição de exportações, já política oficial do getulismo. O Estado Burguês Nacional-Desenvolvimentista Autônomo se serviu de medidas fiscais, tributárias, aduaneiras, etc., para apoiar-financiar a industrialização através da transferência de renda do setor primário e das classes populares. A industrialização efetuou-se através da substituição de importações, inicialmente com a plena utilização da capacidade industrial instalada e, a seguir, com a expansão do parque produtivo. Esse processo deu-se no contexto de significativa ampliação do consumo interno, destino quase essencial da produção industrial do Brasil.

Opressão regional e social

O mercado interno, necessário à reprodução ampliada do capital industrial, invertia a equação produção interna e realização externa dominante na Colônia, Império e República Velha. A destruição do federalismo garantiu mais livre circulação nacional de capitais, trabalhadores, matérias-primas e mercadorias, etc., em proveito do capital industrial do Centro-Sul, sobretudo. Esse padrão de acumulação ensejou que os estados periféricos conhecessem exploração semi-colonial em proveito dos Estados centrais. Desde 1930, empreendeu-se a invenção da brasilidade  através da construção de cultura, gosto, identidade, etc. nacionais necessários à conformação de mercado interno nacional e do projeto nacional-desenvolvimentista, burguês, centralizador, autoritário, autonomista. A produção industrial e o mercado nacional foram os agentes da construção do Estado-nação brasileiro burguês, permeado por profundas e crescentes diversidades regionais e sociais.  Ele materializou, consolidou e ampliou o domínio das classes burguesas nacionais − sobretudo de SP, RJ, RS    sobre o Brasil, em associação com os grandes proprietários rurais subalternizados, sobretudo dos setores interessados na ampliação do mercado interno.

Através de controle ditatorial e populista da nação, o Estado Burguês Nacional-Desenvolvimentista Autônomo implementou a política industrialista voltada para o mercado interno que garantiu alta extração de mais-valia ao produtor direto, através de salário médio próximo ao mínimo necessário à subsistência, e aprofundou a exploração absoluta e relativa das demais regiões, sobretudo pela burguesia de SP, RJ, RS. As regiões periféricas do Brasil − Norte, Nordeste, etc. − foram reduzidas, por um lado, a situação de produtoras de matérias-primas e de mão-de-obra, remuneradas – uma e outra – abaixo de seu valor e, por outro, a consumidoras de manufaturados vendidos a preço superior aos do mercado mundial.

Em proveito sobretudo do desenvolvimento das regiões onde se realizava a concentração e centralização do capital industrial, o Estado Burguês Nacional-Desenvolvimentista Autônomo assumiu a construção, propriedade e gestão das empresas que, pela dimensão dos investimentos requeridos ou pela demora da retribuição dos capitais empregados, estavam além da possibilidade-interesse do capital privado nacional – transporte, eletricidade, metalurgia, etc.  

A área de propriedade pública ensejou a expansão de segmento trabalhador industrial de maior poder aquisitivo e melhor organizado que, sobretudo após o fim do Estado Novo, transformou-se no eixo dinâmico do movimento sindical. Esse segmento manteve-se sob a direção populista, do trabalhismo, e colaboracionista, do PCB. O getulismo reconheceu ao núcleo central da classe industrial –  mantido na submissão, política, ideológica e policial – os direitos trabalhistas necessários ao funcionamento harmônico da ordem industrial; à obtenção de consenso popular mínimo para o projeto em curso; à expansão de mercado interno, etc. – oito horas, férias, salário mínimo, etc.

Colaboracionismo e independência

O ingresso da classe operária no cenário político-social, através de suas vanguardas, não se deu sob o signo da independência, mas do colaboracionismo. Em momento algum, a vanguarda do proletariado brasileiro propôs projeto autônomo, dirigido aos segmentos trabalhadores e médios da cidade e do campo. A expansão industrial promoveu a incorporação ininterrupta à produção de trabalhadores, rurais e urbanos, com experiência cidadã profundamente limitada, chegados de espaços sócio-produtivos pré-capitalistas, para os quais a exploração capitalista sob relações contratuais significava avanço econômico, político e social. Esses setores dificultavam e deprimiam em forma tendencial a maturação-acumulação de consciência-organização operária.

O PCB apoiou o industrialismo, impulsionado pelo burocracia soviética – coexistência pacífica – e pela hegemonia nas suas filas dos interesses favoráveis à burguesia nacional industrialismo. Mesmo quando se opôs ao getulismo, o PCB não disputou a hegemonia operária através de programa e de prática classistas, mantendo a dependência à burguesia nacional-industrialista.

Nos estados periféricos, as oligarquias agrárias mantiveram-se no poder regional, submetidas ao poder federal. Sobretudo os proprietários rurais interessados na expansão do mercado interno participaram em forma subordinada no Estado Burguês Nacional-Desenvolvimentista Autônomo que garantiu para todos os terratenentes a propriedade latifundiária e a não organização dos trabalhadores rurais. As classes dirigentes dos estados atrasados foram remuneradas política e economicamente pela gestão autoritária e paternalista das classes trabalhadoras urbanas e rurais regionais, tanto pelas classes dominantes regionais como pelo Estado nacional. 

A deposição de Vargas [1945] expressou também  a hegemonia mundial do capital imperialista estadunidense, consolidada na II Guerra, interessado na liberalização da economia nacional para a exportação de capitais, insumos, tecnologia, indústrias, etc. O bloco contrário ao industrialista autônomo foi formado pelo imperialismo, pelo ainda frágil capital bancário nacional e pelo latifúndio, sobretudo exportador – [UDN]. Esse bloco político-social optou pelo golpismo ao compreender que não imporia, através do voto, sua política de metamorfose do Estado e da nação. O projeto nacional-desenvolvimentista burguês foi reapresentado em 1950, 1955, 1961, sob contexto democrático, se apoiando, portanto, para tal, em forma mais substancial nos segmentos sociais operários e médios. Nesse momento, o processo de acumulação de capitais através do nacional-desenvolvimentismo burguês autônomo conhecia já importantes barreiras objetivas, que nasciam da insuficiência de capitais, dos limites do mercado interno, da dependência tecnológica, etc.

Crise do desenvolvimentismo burguês autônomo

Para superar o impasse, impunha-se rompimento radical com o imperialismo −  controle do envio de lucro, dividendos, royalties;  maior centralização estatal da produção, devido à crescente composição orgânica internacional do capital − CSN, Eletrobrás, Petrobrás, sobretudo, FNM;  expansão e generalização dos bancos públicos – BNDE, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste;  expropriação sem pagamento do latifúndio; extensão da renda e do direito de organização dos trabalhadores da cidade e, sobretudo, do campo; desenvolvimento de ciência e da tecnologia nacional estatal.

Imprescindíveis à continuação do processo de industrialização autônoma do país, essas iniciativas promoveriam a conseqüente queda da massa de capitais e de lucros do capital privado nacional, devido ao crescimento das empresas estatais, da moderna classe trabalhadora, ao aumento dos salários, etc. A destruição do latifúndio, sem indenização, exigia quebra radical do pacto existente entre a burguesia industrial e o latifúndio, com o conseqüente fortalecimento da classe trabalhadora rural.

A burguesia industrial nacional negou-se terminantemente a implementar medidas que questionavam, já a curto e médio prazo, sua hegemonia sobre o processo. Dirigentes máximos do desenvolvimentismo burguês autônomo, Getúlio Vargas e Jango Goulart preferiram, respectivamente, o suicídio, em 1954, e o exílio, em 1961, a lançar mão à mobilização popular que ameaçasse as classes que representavam. Diante do impasse, a burguesia industrial nacional rompeu com o projeto desenvolvimentista autônomo, procurando saída na associação-submissão ao capital imperialista e na repressão aos trabalhadores. O rompimento acelerou-se quando os trabalhadores passaram a reivindicar, com maior ou menor consciência, em forma parcial, algumas das medidas necessárias à superação classista e nacional do impasse. Como na Colônia, as classes dominantes brasileiras vergavam-se às classes dominantes metropolitanas, esperando, dessas, proteção contra às classes exploradas e participação, mesmo subordinada, no processo de acumulação.

Apenas programa que propusesse o prosseguimento do industrialismo, no contexto das necessidades das diversas regiões e das populações das cidades e dos campos, apresentado e dirigido pelo proletariado industrial, era capaz de solucionar o impasse em que se encontrava o processo de produção e reprodução do capital. Para isso, era necessário que o proletariado, dirigido sobretudo pelos trabalhadores das grandes estatais, superasse as propostas colaboracionistas defendidas por segmentos sociais,  interessados no industrialismo e com divergência com o imperialismo e com o latifúndio, mas opostos à superação da sociedade de classes, representados sobretudo pelo PTB e pelo PCB − segmentos médios, aristocracia operária, etc.

O caminho do meio

Em 1956-60, Juscelino Kubistchek tentou superação parcial das contradições objetivas vividas pelo industrialismo burguês autônomo através de rompimento com o FMI [1959], abertura controlada do mercado ao capital imperialista [montadoras]; financiamento da expansão econômica com a renda popular [política inflacionária]. O caminho intermediário aumentou o endividamento do país, inicio o processo de internacionalização da indústria nacional, redistribuiu a renda em favor das classes proprietárias, aprofundando a crise social e política, o que colocou com maior premência a necessidade imperiosa da solução da contradição do processo de produção e reprodução das riquezas pelo mundo do capital ou pelo mundo do trabalho.

Em 1959, a eleição de Jânio Quadros, liberal-populista independente, com o apoio da UDN e do imperialismo, registrou o impasse político do industrialismo burguês autônomo. Jânio Quadros tentou empreender desmonte liberal do nacional-desenvolvimentismo autônomo, primeiro nos marcos legais, a seguir, através de golpe gaullista. O comando das forças armadas procurou servir-se de sua renúncia para pôr sob controle direto a presidência da República, sendo impedido pela mobilização popular dirigida por Leonel Brizola, governador do RS  [Legalidade]. A derrota do imperialismo e da direita civil e militar não foi aprofundada com a dissolução do Congresso, envolvido no golpe, proposta por Leonel Brizola e apoiada pela população mobilizada, por decisão de Goulart, para não pôr sob ameaça o domínio burguês. Goulart preferiu assumir o governo com poderes presidenciais restringidos, restabelecidos plenamente em janeiro de 1963 [período parlamentarista].

Após tentar inutilmente estabilização econômica de caráter liberal e, a seguir, governo centrista com apoio militar [4-7 de outubro de 1963], Goulart relançou o nacional-desenvolvimentismo burguês autônomo, sem propor as medidas político-econômicas necessárias a sua consecução e, sobretudo, sem mobilizar-organizar as classes populares contra o golpe e pela conquista da hegemonia nacional. Para o trabalhismo e para o PCB, o desarmamento político, ideológico, organizacional e militar da classe operária era pressuposto necessário à participação da burguesia nacional-progressista, que já aderira plenamente ao golpismo,  no projeto desenvolvimentista − [PTB e PSD].

O PCB mantinha hegemonia sobre o movimento operário e social que pequenas organizações socialistas-revolucionárias –  Polop, grupos trotskistas, etc. – jamais alcançaram a questionar, mesmo parcialmente. Em 1964, as duas únicas soluções para restabelecimento do processo de expansão  econômica eram o aprofundamento social da industrialização autônoma,  sob a hegemonia das classes trabalhadoras, ou o prosseguimento do processo de acumulação de capitais, em associação-inserção ao capital internacional. Revolução e contra-revolução eram os dois únicos caminhos que se apresentavam objetivamente à sociedade brasileira.

IV. GÊNESE, CONSOLIDAÇÃO E CRISE DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO BURGUÊS  ASSOCIADO

Primeiro governo liberal

A vitória do golpe de 1964 constituiu dolorosa negação da proposta de entregar a direção do desenvolvimento autônomo às classes burguesas brasileiras. O golpe foi apoiado pelo imperialismo; pelo capital financeiro; pelo latifúndio; por parte das classes médias; pela Igreja; pelo capital bancário nacional e praticamente por toda a burguesia industrial brasileiro, com destaque para sua vanguarda paulista. O governo ditatorial despediu, prendeu, torturou, expatriou, executou políticos, sindicalistas, militantes, etc.; interveio nos sindicatos, nos partidos, etc.; fechou jornais, editoras, etc.; expurgou parlamentares, oficiais, soldados, marinheiros, etc., tudo para criar as condições para a imposição de novo padrão de acumulação do capital apoiado na super-exploração dos trabalhadores e confisco de conquistas sociais históricas – valor do salário mínimo; duração da jornada real do trabalho; estabilidade do emprego, etc.− aumentando, assim, a taxa de acumulação de mais valia, sobretudo absoluta.

Desorganizado por sua vanguarda política, o movimento operário e social não opôs a necessária resistência de massa e armada ao golpe de 1964. Tal fato constituiu derrota histórica que desequilibrou a correlação de forças em favor do capital e em detrimento do trabalho, determinando profundamente a vida política, econômica, social, ideológica do Brasil desde então. O golpe de 1964 influenciou significativamente o processo de contra-revolução latino-americana e mundial, que obteve vitória em fins dos anos 1980 – Queda do Muro de Berlim. Após disputa entre as facções das classes dominantes nacionais, que se expressaram nas diversas candidaturas do alto mando militar, o primeiro governo ditatorial representou sobretudo o imperialismo e o então frágil capital bancário nacional [UDN], obrigados a concessões ao setores industriais brasileiros. No contexto da nova ordem ditatorial, retomava-se e expandia-se o projeto empreendido confusamente por Jânio Quadros.

O governo Castelo Branco implementou, gradualmente, medidas liberais, recessivas e antiinflacionárias. A liberação das remeças de capitais; indenização régia do capital expropriado; corte de despesas e investimentos; diminuição dos subsídios; restrição do crédito; arrocho salarial; desvalorização cambial, etc. ensejaram recessão, inflação, desemprego, queda do poder aquisitivo. Em 1965, o crescimento do PIB foi igual a zero. A política recessiva fortaleceu oposição social crescente ao regime ditatorial, primeiro, dos segmentos médios [eleições de 1964; revolta estudantil, em 1967]

e, finalmente, da classe trabalhadora [greves operárias de 1968]. A recessão obrigou, em vez das exigidas privatizações das empresas públicas, investimentos no setor público, para limitar o processo econômico depressivo.

O prestígio da Revolução Cubana [1961], da Revolução Cultural Chinesa [1966], da Revolução Vietnamita e o desprestígio do colaboracionismo nacional-reformista ensejaram que o PCB perdesse sua hegemonia e enorme parte de seus quadros, dando lugar a pequenas organizações militaristas formadas sobretudo por estudantes das classes médias e praças nacionalista-revolucionários, que empreenderam ataque militar incondicional ao Estado, a partir de fins de 1967. Em geral, as organizações que se lançaram à conquista armada do poder mantiveram os programas nacional-colaboracionistas – Libertação Nacional. Apoiado no Brasil e na América Latina pelo Secretariado Unificado da IV Internacional, o militarismo constituía também clara rejeição do caráter hegemônico das classes operárias industriais no processo de emancipação social.

Nacional-desenvolvimentismo burguês associado

A oposição sobretudo da poderosa burguesia industrial paulista e a crise social determinada pela política liberal-recessiva determinaram que o segundo governo militar [15.3.1967] retomasse o nacional-desenvolvimentista burguês,  em associação com o capital internacional, através de medidas autoritárias. Expressão das necessidades da grande burguesia industrial brasileira, em geral, e paulista, em especial, o novo padrão de acumulação foi financiado por empréstimos mundiais; pela renda do trabalho [arrocho salarial]; pela renda nacional [cortes de investimento sociais]; pela renda regional [expropriação-centralização federal das rendas dos estados e municípios]. O recurso ao capital internacional; a crescente liberalização da circulação de capitais; o pagamento incondicional da dívida; a adesão política ao anticomunismo, etc. determinaram a consolidação da aliança relativa do bloco nacional-burguês ao imperialismo, mesmo após a reorientação em detrimento do projeto castelista, apoiado pelo capital financeiro internacional.

A retoma econômica deu-se com o fortalecimento da área pública [PETOBRÁS, Banco do Brasil, etc.]; com a criação de novas estatais [EMBRAER, TELEBRÁS, NUCLEBÁS, etc.]; com a modernização do parque industrial; com o desenvolvimento da tecnologia e da ciência nacional [qualificação da universidade pública]; com a modernização capitalista do campo, etc. Ela privilegiou as regiões industrializadas – SP sobretudo, RJ, MG, Rio RS, secundariamente –, aprofundando a exploração das regiões periféricas, principalmente o Norte e o Nordeste. O novo padrão de acumulação expressava a dominância da grande burguesia industrial em parceria com o capital bancário, principalmente paulistas, sobre o país, em associação com os proprietários rurais e o imperialismo.

O limite do mercado interno, um dos motivos do impasse do período anterior, foi superado, sobretudo, com a expansão das exportações de produtos primários e secundários –  mais de 20% ao ano – e com a expansão do consumo de bens duráveis e semiduráveis para segmentos médios e altos da população, grupos sociais fortalecidos pela crescente concentração da renda. A associação da produção interna – financiada com incentivos e pelo arrocho salarial –, à realização externa, permitiu desenvolvimento da taxa de acumulação do capital nacional. Ainda que em crescimento, o mercado interno decaia relativamente como espaço de realização da produção interna, retomando tendencialmente a realidade conhecida na Colônia, no Império e na República Velha.

O novo regime impulsionou a concentração, a centralização e a liberalização do sistema bancário e financeiro nacional, para que apoiasse o desenvolvimento industrial e agrário capitalista do país. O fim do financiamento dos gastos públicos com a desvalorização da moeda era exigência do capital financeiro internacional. A intermediação da interiorização de capitais; o crescimento do volume e das formas de crédito; o lançamento de títulos da dívida pública como meio de financiamento estatal, etc., promoveram forte impulso da acumulação do capital bancário nacional, que conheceu taxas de crescimento sempre superiores ao do capital produtivo. A manutenção de reservas de mercado para a indústria nacional foi estendida ao capital bancário e financeiro nacional, através da restrição ao estabelecimento de bancos estrangeiros no país.

Uma nação grande

O projeto nacional-desenvolvimentista autoritário e associado propunha a promoção do Brasil no contexto internacional, ensejando alguns fortes atritos com a administração USA. O governo militar retomou a proposta getulista de controle da energia atômica e, conseqüentemente, da bomba nuclear, através de acordo com a Alemanha [1975] e apoiou o desenvolvimento de indústria nacional de armamentos – ENGESA − e informática. Na política externa, para construir-se área de influência internacional, apoiou a independência dos Estados africanos de língua portuguesa, em oposição ao imperialismo estadunidense e europeu. No estágio virtuoso do ciclo, o nacional-desenvolvimentismo associado e autoritário ensejou crescimento da produção, do mercado e da renda interna, que já sofriam a pressão da crescente exportação de capitais, devido às trocas desiguais de valores e à expatriação incessante de capitais, sob a forma de royalties, lucros e dividendos. Como no período anterior, o Estado Burguês Nacional-Desenvolvimentita Associado expressou sobretudo a burguesia industrial, com destaque para a paulista, agora em associação com o capital bancário e financeiro nacional, crescentemente fortalecido. Com a penetração capitalista no campo, o latifúndio pré-capitalista perdeu crescentemente força no Estado. O crescimento da força econômica direta e indireta do capital imperialista no país expressava-se em forma indireta no Estado.

Apesar de ser acompanhado de endividamento financeiro, público e privado, nacional e internacional, e de internacionalização tendencial da produção, no que se refere ao controle da produção [controle acionário das empresas] e a sua realização [orientação exportadora], o novo padrão de acumulação ensejou um elevado nível de crescimento do PIB –  dez por cento anuais –, determinando o fim da fratura dos diversos setores das classes proprietárias; o apoio substancial das classes médias à ditadura; a mais fácil neutralização da classe operária; o isolamento sobretudo da esquerda militarista, que prosseguiu o ataque militar incondicional ao Estado, mesmo quando o ciclo econômico expansivo já se instalara plenamente.

Despreocupados com o estágio de organização e da consciência dos trabalhadores, que propunham dinamizar através de atos armados excelentes, os grupos militaristas foram destruídos política e fisicamente, movimento repressivo que se expandiu à esquerda reformista e classista. [Nov. 1969, morte de Marighella; maio 1970, desbundados na TV]. Derrotados politicamente, desbaratados organicamente, isolados socialmente,  milhares de militantes partiram para o exílio, dispersaram-se, abandonaram a luta, foram presos ou mortos, dissolvendo-se as principais organizações – ALN, VAR, VPR, etc. –, para sempre, sem jamais realizar-se balanço sistemático efetivo sobre as raízes profundas da aventura militarista empreendida em nome das classes trabalhadoras.

Em meados dos anos 1970, a terceira crise cíclica do capitalismo elevou a taxa de juros,  retraiu o mercado, deprimiu o consumo mundial, determinando que explodissem a dívida pública e privada brasileira, enquanto os preços e o volume das exportações nacionais recuavam. Durante o ciclo expansivo, o capital bancário e financeiro conheceu taxa de lucro sempre superior ao do capital produtivo. Durante o ciclo virtuoso, o capital financeiro abocanhava parte do lucro do capital produtivo. O capital bancário e financeiro manteve a expansão no ciclo depressivo, apropriando-se de parte crescente da taxa de lucro decrescente do capital produtivo nacional e, muito logo, de parte do próprio capital industrial nacional.

O renascimento do movimento sindical

O governo Geisel retardou a crise de acumulação através de promoção de ambicioso plano de desenvolvimento de indústrias de base, Porém, rendendo-se ao ultimato do capital financeiro, já no fim do governo Geisel e durante o governo Figueiredo [1979-85], para garantir o pagamento incondicional da dívida, a administração federal promoveu as medidas liberais exigidas pelo capital internacional para promover as exportações, produzir excedentes comerciais, obter superávits orçamentários, etc. Os cortes de investimentos, as restrições dos gastos sociais, a apropriação inflacionária da renda do trabalho, etc. determinaram recessão, retração do consumo, crise do mercado de trabalho.

No final da ditadura, ainda sob a hegemonia de Estado que representava os interesses industrialistas nacionais, sobretudo paulistas, instaurou-se a exploração plena pelo capital financeiro e bancário nacional e internacional da produção e da sociedade brasileira. Em 1980-86, o Brasil transferiu aos USA, como renda líquida, mais de 64 bilhões de dólares, 56 bilhões dos quais apenas como juros. Os grandes grupos produtivos nacionais procuraram contornar essa realidade participando da expropriação financeira, ao fundarem bancos e entes financeiros próprios.

A recessão, inflação e arrocho salarial promoveram o renascimento da luta sindical, a partir de 1977, liderada pelo setor metal-mecânico paulista e bancário nacional, fortalecidos durante o Milagre Econômico. Em 1979, o Brasil conheceu verdadeiro Ano Vermelho, através de poderoso ciclo grevista sobretudo por reposição salarial – metalúrgicos, bancários, professores, construção, motoristas, etc.  Apesar da derrota parcial das reivindicações econômicas, a força do movimento social permitiu vitória política materializada na fundação do PT, em 1980, e da CUT, em 1984. Em 1979, no norte do RS, com o apoio da Igreja progressista, colonos de origem alemã, italiana, polonesa, etc., expulsos de reservas indígenas, ocuparam a Fazenda Anoni, antes de 1964, centro da luta no RS contra o latifúndio, dando origem, mais tarde, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

O PT e a CUT foram fundados por sindicalistas classistas, católicos progressistas, marxistas organizados, ex-militaristas dispersos, intelectuais de esquerda, etc. O PT e a CUT nasceram classistas e tendencialmente anti-capitalistas, ainda que tal orientação geral não se expressasse em forma clara no programa partidário. Lula da Silva, que se encontrava à frente do poderoso sindicato metal-mecânico paulista quando do ciclo grevista, assumiu a direção do processo de fundação do PT e da CUT.

Diretas, Já!

Em 1984, o movimento social conheceu importante derrota. A luta pelas Diretas já! efetuou-se sob a direção das facções das classes proprietárias e médias, com contradição com a ditadura, mas interessadas em manter a sociedade de classe. A derrota popular materializou-se nas eleições indiretas do presidente e do vice-presidente por Colégio Eleitoral que, em janeiro de 1985, elegeu dois políticos burgueses recém-chegados das filas da Ditadura. Em nenhum momento exigiu-se o esclarecimento dos atos de corrupção e dos crimes cometidos durante o período militar, permitindo que o aparado político-militar ditatorial se metamorfoseasse, adaptando-se aos novos tempos.

Apesar dos mais de dois milhões e meio de populares mobilizados em São Paulo e no Rio de Janeiro [abril de 1984], o movimento operário e popular foi derrotado, mais uma vez sem lutar, já que sua direção foi incapaz de decretar a greve geral, discutida pela direção do PT e da CUT, e balbuciada por Lula da Silva.  Novamente, a classe operária manteve-se atrelada à direção burguesa e pequeno-burguesa democráticas.

Sobretudo após o Plano Cruzado, o governo Sarney [1985-1990] prosseguiu a subjunção da sociedade nacional ao pagamento do grande capital financeiro, através do corte de investimentos e de gastos sociais e, sobretudo, do confisco inflacionário da renda popular. No final do governo, a inflação alcançava os 80% ao mês. Em 1971-80, o PIB conhecera média anual de crescimento de 8,6%; em 1981-1990, pouco inferior aos 1,6 %. A estagnação econômica iniciou processo de fragilização objetiva das classes trabalhadoras, sobretudo industriais.

Em fins de 1989, após mais de uma década de estagnação econômica, o PT concorreu, em segundo turno, contra o candidato da totalidade das classes proprietárias, apoiado, este último, por toda a grande mídia. O programa democrático radical petista defendia a rejeição da dívida internacional; o apoio e a expansão à propriedade pública; a recuperação do salário mínimo; o crescimento dos gastos sociais; a reforma agrária. Propunha, portanto, apenas parcialmente as medidas necessárias à retomada do nacional-desenvolvimentismo autônomo. É crível que Lula da Silva tenha sido derrotado devido à desestabilização emocional motivada pela denúncia caluniosa e ao favorecimento de Collor de Mello, pela Globo, durante o último debate. Leonel Brizola morreu externando a opinião de que houve trapaça na totalização dos votos, cabendo a vitória a Lula da Silva.

V. A CONTRA-REVOLUÇÃO NEO-LIBERAL – ESTADO, NAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO 

Não temos ainda estudos sobre o processo de flexão da revolução mundial diante da contra-revolução, empreendida, em sua última fase, através da cruzada neoliberal de Thatcher, Reagan e Wojtyla. Certamente desempenharam papel essencial nesse processo as derrotas da Revolução Chilena, em setembro de 1973, da Revolução Portuguesa, em 1976, e o impasse da Revolução Afegã, em 1979. Em fins de 1980, isoladas, as revoluções nicaragüense e salvadorenha depuseram as armas, apesar de política e militarmente vitoriosas.

O esgotamento do dinamismo das tendências progressistas ensejadas pela expropriação da propriedade nas nações de economia planificada; o confronto sino-soviético; o esforço militar exigido pela corrida armamentista imposta pelo imperialismo foram alguns fatores determinantes na restauração capitalista. Esses fenômenos materializaram-se devido à incapacidade das classes trabalhadoras nos países de economia nacionalizada de sobreporem-se à ordem política burocrática. A maior expansão da acumulação capitalista, devido ao desenvolvimento tecnológico e à super-exploração do mundo do trabalho, permitiu que a maré conservadora se sobrepusesse ao avanço revolucionário e os países operários.

Em dezembro de 1989, o Muro de Berlim caiu sob a pressão e a atração do capitalismo triunfante e não sob a mobilização anti-capitalista, dos trabalhadores do Oeste, e anti-burocrática, das populações do Leste europeu. Soldava-se, assim, a fratura aberta, em 1917, e ampliada, após a  Segunda Guerra, pelo trabalho, no mundo do capital, com a construção dos primeiros espaços geográficos tendencialmente livres da acumulação capitalista.

Com a vitória da contra-revolução, a irracionalidade sobrepôs-se crescentemente à proposta de reorganização social baseada na solidariedade e na racionalidade. Deprimiu-se o prestígio do marxismo e do racionalismo como meios de explicação do mundo. O lucro tornou-se a pedra de toque social. Multidões de intelectuais de esquerda desenvolveram operações revisionistas, acomodando-se à nova ordem, saltaram para o outro lado da trincheira. As propostas de reforma social foram apontadas como macabros mitos ideológicos. Os sindicatos enfraqueceram-se. Partidos operários e socialistas dissolveram-se ou assumiram orientação social-liberal.

Maré conservadora

Através do mundo, o desaparecimento dos Estados operários e a maré conservadora corroeram conquistas sociais históricas e ensejaram privatizações dos bens estatais e cortes dos investimentos públicos e sociais. Sob a égide de organismos internacionais – FMI, Banco Mundial, OMC, OCDE, etc. – impuseram-se medidas fiscais e monetárias para a transferência de riquezas através do pagamento do capital financeiro.

Tendo como prova suas derrotas, decretou-se o caráter ontologicamente reformista da classe trabalhadora, a morte do socialismo, a impertinência do marxismo. Propôs-se nova fase da História onde o progresso e a felicidade seriam garantidos pelo desenvolvimento incessante da economia de mercado, livre de qualquer estatismo [Fim da História]. Doravante, o mundo seria mero desenvolvimento ininterrupto e pacífico da organização social capitalista e de mercado.

A dissolução do chamado Bloco Socialista promoveu forte aceleração e reorientação  do processo de globalização e internacionalização da produção capitalista. A bipolarização e o equilíbrio relativo entre os dois blocos e as duas potências hegemônicas, que refletia, ainda que em forma distorcida, o confronto entre o mundo do trabalho e do capital, foram substituídos.

pela dominância do  grande capital  e  do bloco capitalista, sob a hegemonia político-militar estadunidense.

No novo contexto, o grande capital aprofundou o processo de reorganização tendencial do mundo segundo suas necessidades. Movimento que se concretizou, se reorientou, se adaptou, etc. segundo a maior ou menor resistência do mundo do trabalho e das nações envolvidas. Os principais axiomas dessa reorganização mundial foram a desregulamentação das relações sócio-econômi­cas; a mundialização do mercado de trabalho,  produção e consumo;  a mercantilização das práticas sociais; o capital, a concorrência e o mercado como formas de harmonização social; a retração do papel do Estado.

Estágio senil

A solução mesmo transitória das contradições estruturais do processo de acumulação de capitais em seu estágio senil pressupõe novas formas de organização e de dominação, sociais e nacionais. A antiga organização do mundo em Estados nacionais tende a ser superada, reapresentando-se, sob conteúdo patológico, a proposta dos trabalhadores de um mundo sem fronteiras. Esse projeto tem primeira concretização tendencial nos grandes blocos supranacionais – União Européia, Nafta,  Mercosul – que tendem a determinar crescentemente as decisões sociais e econômicas essenciais, subalternizando as instâncias de decisão nacionais.

As vantagens para o grande capital da formação da União Européia é bom exemplo desse processo. Com a unificação monetário-financeira, desaparece a pluricentenária conversão e especulação monetária; se estabelece a transparência de preços, salários, taxas e impostos, etc. São também claros os sentidos políticos da iniciativa. O processo de unificação iniciou-se em 1948, quando da Guerra Fria, para criar aliança supranacional que se opusesse, no Continente, à URSS, como segunda potência mundial,  após a derrota e divisão da Alemanha. A unificação monetário-financeira européia conheceu salto de qualidade em cenário distinto, sob a crescente hegemonia alemã e com a nova Rússia capitalista mergulhada em crise sistêmica, tornando-se o euro moeda internacional de refúgio, sobretudo em relação ao dólar imperial. 

A unificação européia tem-se efetuado na esfera da circulação das mercadorias, da mão-de-obra, dos capitais, da desregulamentação das relações de trabalho, etc. e muito pouco no que se refere à unificação, uniformização e generalização da legislação social e trabalhista. Nesse sentido, a União Européia e a moeda única facilitaram a migração das indústrias para as regiões de legislação mais atrasada, agravando a degradação social e ambiental e ensejando super-lucros para os capitais atuantes nesse novo espaço de 25 nações.

Com sede em Strasbourg, na França, e em Bruxelas, na Bélgica, o Parlamento Europeu cumpre função sobretudo simbólica, já que detém escassos poderes reais. O poder real concentra-se no novo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, na Alemanha, responsável pela política monetária geral, e em outros organismos burocrático-administrativos comunitários, o que permite que o grande capital dialogue através dos euroburocratas, dispensando as mediações dos políticos nacionais.

A gestão das decisões estratégicas pelos órgãos supranacionais e a naturalização das alternativas sociais e econômicas tornam a democracia representativa encenação crescentemente formal. Nesse sentido, a rejeição da população francesa e holandesa, quando do plebiscito para a ratificação da Constituição européia, expressou a crescente resistência da população do Velho Mundo à constituição do espaço europeu como pátria do grande capital, em geral, e europeu, em especial, através da destruição da autonomia e das conquistas sociais nacionais.

Formações supranacionais

A internacionalização e a globalização em curso sugeririam a superação dos Estados nacionais, por formações supranacionais, e, a seguir, um processo de mundializaç­ão das relações humanas. O domínio dos grandes blocos internacionais por potências nacionais, expressões do grande capital imperialista, assinala o caráter fantasmagórico da dissolução dos Estados nacionais, no que se refere às nações hegemônicas que, ao contrário de flexibilizarem suas fronteiras, reforçaram sua unidade nacional – USA, Alemanha, Inglaterra, França, etc.

Sob essas novas determinações, expressam-se fortes tendências neo-separatistas de regiões enriquecidas que almejam romper laços com territórios nacionais marginais ou periféricos. No passado recente, as regiões hegemônicas e ricas dos Estados nacionais defenderam ferreamente a unidade territorial, questionada pelas regiões periféricas, objeto de semi-colonialismo interno – Inglaterra-Irlanda-Escócia; Norte-Sul dos USA; Castela-Catalunha-País-Basco; Norte-Sul da Itália; Sudeste-Sul e Nordeste do Brasil; Buenos Aires- provinciais.

No século 17 e 18, a unidade nacional surgiu da necessidade da produção industrial nascente de mercados cativos. Em forma geral, interesses econômicos regionais promoveram, por diversos caminhos e com diversas justificativas, a gênese de Estados nacionais que originaram Estados-nações.  Em meados do século 19, extravasando a capacidade de consumo nacional, a produção capitalista européia ensejou a partição imperialista do mundo. No século 20, a doutrina da autodeterminação nacional foi apoiada pelo capitalismo estadunidense interessado no fim dos exclusivismos e na internacionalização da circulação das matérias-primas, mercadorias e capitais.  Hoje, vive-se inversão da orientação de incorporação dos territórios pobres pelos ricos, com os territórios nacionais desenvolvidos procurando separar-se dos atrasados.

Novas realidades econômicas hegemônicas exigem novas formas de organização sócio-espacial. A globalização do capital exige novas formas de reorganização nacional. A grande produção industrial necessita que regiões do mundo conheçam formas reduzidas-inexistentes de independência nacional, para que a circulação livre de capitais, força de trabalho, mercadorias, matérias-primas e tecnologias desenvolva-se segundo as suas necessidades. O grande capital almeja reorganização territorial das riquezas e das populações.

Estado neoliberal

Territórios de Estados-nações, que funcionaram no passado como reserva de mercado e fornecedores de matérias-primas e de mão-de-obra, tendem a ser crescentemente descartados por regiões industrializadas ou ricas em recursos, que realizam suas produções, mais e mais internacionalizadas, no mercado mundial. A formação de micro-nações, providas de Estados formais, separadas de territórios densamente povoados, enseja a exploração intensiva das matérias-primas, segundo as necessidades do capital, em contexto de autonomia apenas formal. Há décadas, tal receita é utilizada nos ‘protetorados’ petrolíferos do Oriente Médio.

Na Europa, essas orientações já se materializam, como realidade ou tendência. Na Itália, as ligas nortistas tentam dominar politicamente o norte da península e propõem o rompimento dos laços nacionais com o Sul atrasado, monopolizando as riquezas regionais drenadas, em boa parte, dessa região, durante décadas de verdadeira ditadura unitarista. A unificação européia facilita enormemente esse processo de autonomia regional.

A violenta balcanização da Iugoslávia, sob  a ação política e militar da OTAN, querida e incentivada sobretudo pelos Estados alemão, italiano e pontifical, concretizou e sintetizou essas tendências. A independência da Eslovênia, que iniciou a guerra fratricida, pariu micro-Estado de dois milhões de habitantes que se incorporou à Europa, como semi-protetorado da Alemanha. O Kosovo tem pouco mais de um milhão e duzentos mil habitantes.

A própria dissolução da ex-URSS, apoiada pelos USA e pela OTAN, foi animada, internamente, pela miragem de crescimento nacional russo baseado no fim da anterior solidariedade entre as regiões européias e asiáticas, menos desenvolvidas, nascida da revolução de 1917. No Iraque, a política de separação das regiões ricas das amplas populações nacionais não foi implementada plenamente pelos anglo-estadunidenses apenas devido ao veto turco a Estado curdo e ao perigo da unificação do sul xiita ao Irã.

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