Raça
e classe
A
racialização do Brasil
Por
Mário Maestri ,
Julho 2006
A
apresentação do Brasil como sociedade regida desde as origens pelas
oposições raciais e não sociais exige violentação grosseira dos
dados históricos, econômicos, demográficos, etc. A racialização
da sociedade brasileira é operação ideológica arbitrária de
profundas conseqüências sociais e políticos.
A
própria ordem escravista foi regida por determinações sociais,
ainda que a descriminação racial tenha desempenhado importante
papel, parindo racismo antinegro que se mantém mais de cem anos após
1888. Após a escravidão inicial de nativos, africanos e
afro-descendentes constituíram essencialmente o braço feitorizado.
Então, brancos e negros defrontaram-se em oposição, explícita ou
implícita, apesar das reconstruções historiográficas sobre
escravidão regida pela colaboração e concordância entre
escravizadores e escravizados.
Durante
o longo e doloroso período escravista, branco e negro
foram essencialmente categorias sociais. Na escravidão, o branco
era o proprietário escravizador e o negro o produtor
escravizado. Mesmo se o branco possuísse eventualmente uma
mais forte afro-descendência do que o seu negro. No Brasil,
ainda que minoritariamente, o escravista podia ser um africano ou um
afro-descendente que se comportava com seu negro como
qualquer outro branco.
Raça
e classe
O
que não quer dizer que a cor da pele não tivesse importância
central. Os cativos claros eram ocupados privilegiadamente nos mais
leves trabalhos domésticos e não raro alcançavam mais facilmente a
difícil alforria. Porém, podiam também ser açoitados
preventivamente para que as marcas de castigo impedissem que
desaparecessem facilmente entre a população livre mestiça.
Apesar
de esforços historiográficos revisionistas, jamais houve
solidariedade racial sólida por sobre as determinações de classe.
Feitores e capitães-do-mato eram comumente africanos ou
afro-descendentes. Os Terços dos Henriques, de oficiais, sub-oficiais
e soldados negros, reprimiam quilombolas. A discriminação do cativo
por negros e mulatos livres pobres foi essencial à manutenção da
escravidão.
As
classes dominantes jamais trataram com deferência a escassa população
branca que, tratada de chusma, vulgo, ralé, vegetou
na miséria. Brancos pobres viveram à margem das vexações do
cativeiro e conheceram condições de alimentação, vestuário, etc.
inferiores às dos limitados segmentos superiores das classes
escravizadas.
Não
raro, os brancos pobres amalgamaram-se social e racialmente à população
livre de origem nativa e africana, enquanto africanos e
afro-descendentes ricos se dissolveram entre os euro-descendentes, em
restabelecimento permanente da correlação tendencial entre classe
social e raça. O que não significa que negros não fossem
penalizados e brancos privilegiados quanto à escassa mobilidade
social da sociedade de classes do Brasil.
Brancos
e negros explorados
A
redução do Brasil a mundo de brancos ricos e privilegiados e negros
pobres e discriminados exige igualmente a reconstrução arbitrária
da história dos europeus imigrados, apresentada como categoria social
mimada pelas classes dominantes. A imensa maioria dos imigrados chegou
ao Brasil após a Lei de Terras (1850), sendo portanto obrigada a
pagar ao governo e a privados por terra nua desprovida de qualquer
valor.
A
economia colonial-camponesa apoiou-se no trabalhado familiar, não
explorou ninguém e foi duramente explorada, sobretudo pelo capital
comercial. A proposta do colono enriquecido no trabalho colonial é
apologia classista e racista dos ideólogos. A família
colonial-camponesa trabalhou duramente sobretudo para manter-se.
Nas
beiras das estradas e acampamentos dos sem-terra do sul e do oeste do
Brasil confundem-se cabeças loiras e negras em depoimento incontestável
de situação social que não exclui ninguém, ainda que privilegie
negativamente os afro-descendentes, sobrecarregados por fardos
herdados da escravidão – fragilidade familiar, baixa escolaridade,
baixa instrução, racismo, etc.
A
industrialização do Brasil apoiou-se também na exploração do operário
de origem européia, que conheceu a repressão política e social e
salários miseráveis. Essa população foi e continua sendo
explorada, jamais tendo explorado alguém. A superexploração do
operariado negro é estratégia do capital para obter compressão
geral do salário que golpeia toda a classe operária.
Zumbi
como herói do trabalho
A
racialização reinventa arbitrariamente o Brasil como aglomerado de
comunidades étnicas, solidárias internamente por cima das diferenças
sociais, vivendo uma ao lado da outra, sem interesses intergrupais,
negociando através de suas lideranças igualdade relativa de
privilegiados e explorados. Ela propõe o culto de valores étnicos
exclusivos, em geral produtos de verdadeira “invenção da tradição”.
A
proposta etnicista do ensino da “cultura e da história negra” nas
escolas abre lugar para que as diversas etnias nacionais – nativos,
alemães, italianos, poloneses, etc. – exijam igualmente o ensino de
suas culturas, histórias, tradições singulares, em dissolução do
princípio de sociedade e cultura nacional, unitária na sua
diversidade, baseada no trabalho, instância unificadora da experiência
humana.
Tal
proposta resulta paradoxalmente no apequenamento e folclorização do
passado afro-escravista, fundamento sobre o qual se construiu a nação
brasileira. Reduz o cativo africano a mero ancestral do
afro-brasileiro, negando seu status objetivo de ancestral
sociológico de todo brasileiro que se encontro subjetiva ou
objetivamente no campo do trabalho, independente de sua origem étnica.
Não
se trata de macaquear o etnicismo estadunidense, combatendo
inutilmente o racismo com o convencimento do outro do valor
de minha cultura. Não foram a música, o carnaval, o
candomblé, etc., mas o trabalho e a luta pela liberdade, as contribuições
centrais do negro cativo ao Brasil, como já proposto por Manuel
Querino na pós-Abolição. Temos é que exigir que a cultura de
classe reconheça a escravidão negra como a grande experiência demiúrgica
da nacionalidade brasileira.
As
cores do Brasil
A
racialização do Brasil procede manipulação estatística ao propor
que quase 50% da população nacional seja negra. O Brasil possui
estados com forte população afro-descendente e outros dominados por
descendentes de nativos e europeus. Em todos eles, existe forte população
formada por intercruzamentos étnicos. Essa quase maioria é obtida
somando-se como negros todos os brasileiros com alguma ascendência
africana.
Nessa
estranha adição, um brasileiro com três avós europeus e um
afro-descendente é contado estatisticamente como negro. O que enseja
a fusão de nacionais com forte afro-descendência, objetos da violência
racista, e outros que, conforme a região e, sobretudo, a situação
social, se têm e são em geral tidos socialmente como brancos.
Essa
estranha matemática obriga os defensores da racialização do Brasil
a propor que o pertencimento a uma comunidade étnica seja
autodefinido. Kabegele Munanga propõe, nesse sentido: “Se um
garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar seus
direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como
contestar”. Proposta que, no interior da própria lógica etnicista,
descrimina os verdadeiros discriminados, de forte ascendência
africana, reais objetos do racismo.
Os
dois extremos sociais brasileiros são os muito ricos e os muito
pobres, constituídos, majoritária mas não exclusivamente, por
brancos e negros. A grande população é formada por brancos, negros,
amarelos e mestiços, de origens nacionais diversas, em geral sem
referências étnicas. Um mundo regido pelas diferenças de classe
onde um patrão branco ou negro não concede qualquer privilégio ao
trabalhador, por ser branco, ainda que o super-explore, por ser negro.
Direitos
para todos
A
proposta de racialização da sociedade fraciona o mundo do trabalho,
enfraquecendo-o diante dos exploradores, unidos ferreamente por seus
interesses. Para gáudio do grande capital, dificulta a união dos
trabalhadores na luta por reivindicações substanciais possíveis de
serem obtidas, no aqui e no agora, no Brasil de hoje.
A
defesa de identidade racial por sobre os interesses de classe propõe
como conquista dos segmentos oprimidos a promoção a privilegiados de
membros de seu grupo étnico. Idéia certamente interessante para os
promovidos mas sem sentido para os excluídos. Não se trata de
esperar que o bolo cresça, para dividi-lo, nem reparti-lo melhor
entre os poucos sentados à mesa, deixando a maioria olhando a festa
pela janela.
Por
além da retórica etnicista, dobrar o salário mínimo, punir o
trabalho informal, expandir o emprego, garantir o direito à saúde,
educação, segurança, etc., são as únicas conquistas capazes de
promover geral e substancialmente os imensos setores reduzidos a mais
dura exploração, sejam afro-descendentes ou não.
Conquistas
como salário, emprego, educação, saúde, habitação, lazer, etc,
para todos, não englobam automaticamente a necessária luta contra o
racismo, mas são a única base possível de emancipação dos grandes
setores afro-descendentes empobrecidos, que não podem prosseguir por
mais um século na marginalização, tendo como único consolo que,
entre os privilegiados, haverá agora, alguns afro-descendentes.
[1].-
Mário Maestri dedica-se, há trinta anos, à história
social da escravidão negra no Brasil.
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