Deixem
o homem trabalhar!
Por
Mário Maestri [1]
Via
Política, 21/11/06
Após
repetir o receituário neoliberal instaurado por FHC e as pífias
taxas de crescimento do PIB e das condições gerais de vida da população,
Lula da Silva conheceu indiscutível consagração no segundo turno
eleitoral que desorganizou a oposição da direita antiga e da
esquerda nova. No frigir dos ovos eleitorais, Lula da Silva e
seu governo terminaram sendo referendados até mesmo pelas duas
principais organizações sociais, a CUT e o MST, que se mobilizaram
pela sua reeleição, em vez de combaterem os malefícios sociais e
nacionais de seu governo.
Portanto,
para prosseguir e aprofundar as medidas de sua primeira administração,
Lula da Silva conta, em 2006, indiscutivelmente, com melhores condições
do que em 2002, pois, além de terem sido consagrados nas urnas, ele e
seu governo, defrontam-se agora com um PT definitivamente reduzido em
sua importância em relação ao presidente e, sobretudo, depurado
de raízes e influências sociais que dificultem o bom e normal
prosseguimento, nos quatro próximos anos, das políticas e
iniciativas liberais.
Nas
eleições apenas concluídas, o que valeu mesmo foi a nota preta,
como assinalam impudicamente os dados publicados pela grande imprensa.
As urnas reelegeram sem dificuldades eminências petistas acusadas de
corrupção – Antonio Palocci; João Paulo Cunha, etc. –, que
gastaram comumente mundos e fundos na campanha, e dizimaram a
social-democracia de esquerda, sem o mesmo acesso franco aos grandes
doadores – DS, Articulação de Esquerda, Força Socialista, O
Trabalho, etc. No segundo governo, como anunciado pelo próprio
presidente, o PT perderá espaço, sobretudo em favor do PMDB, e o
grande capital estenderá sua presença, sobretudo direta.
A
fera e seu domador
Ao
penalizar duramente a Frente de Esquerda – PSOL, PSTU, PCB –, o
eleitorado facilitou igualmente a vida de Lula da Silva e o
prosseguimento das suas políticas, que o presidente apresenta como
plenamente vitoriosas. As eleições não contribuíram para a
consolidação de oposição de esquerda. O PSOL enfraqueceu-se:
perdeu deputados e aprofundou nas eleições sua falta de unidade política
e programática. Apesar dos seis milhões de votos, Heloísa Helena
teve sua pregação centrada na denúncia da corrupção do governo
rejeitada no segundo turno por eleitorado que desconsiderou a questão
como elemento qualificador do governo. O PSTU alcançou votação pífia
e poucos eleitores seguiram a indicação de voto nulo, incapaz de
propor-se como meio de construção de alternativa social.
Na
segunda administração, Lula da Silva seguirá mantendo o apoio do
grande capital financeiro que, durante a campanha, jamais se
desinteressou da continuação da gestão do governo por bloco político-social
capaz de implementar mais facilmente as medidas anti-sociais,
precisamente devido ao prestígio permitido por suas raízes
populares. Qualidade diferencial importante em contexto econômico
que, no mínimo, não repetirá a excelência anterior, devido à
esperada retração da economia estadunidense e queda de ritmo da
expansão chinesa, grandes locomotivas dos anos de glória para o comércio
internacional sob os quais transcorreu o primeiro quadriênio lulista.
O
grande projeto do segundo governo Lula da Silva constitui a radicalização
das soluções antipopulares, sobretudo com o objetivo de pôr fim à
fratura atual entre o grande capital financeiro e os setores
produtivos não ligados a ele – grandes, pequenos e médios. O
projeto governamental, delineado por Delfim Netto, recebeu o
tradicional batismo no economês incapaz de ser compreendido
pela população comum. Ele chama-se “Déficit Nominal Zero” e
prevê, simplesmente, como grande estratégia de ação, o fim dos
gastos públicos superiores às receitas, sem qualquer interrupção
do pagamento da dívida, é claro.
Segundo
parece, a pífia votação de Delfim Netto, incapaz de reelegê-lo,
contribuirá para que, aos menos inicialmente, ele acompanhe a
implementação de sua proposta como consultor pessoal e não ministro
de Lula da Silva, como certamente sonhava. A participação do mais
querido economista dos generais em um governo lulo-petista garantiria-lhe,
após a ampla premiação que conheceu por seus pecados sociais,
durante e após a ditadura, uma última e magnífica consagração
moral, através do esculacho geral da memória da resistência democrática
e social ao regime militar.
Maioria
sem mensalão, se possível!
Ao
contrário, a eventual incorporação por Lula da Silva do
“companheiro” Jorge Gerdau Johannpeter, o mega-milionário rio-grandense
do aço, possivelmente como ministro da Fazenda ou do Planejamento,
com grande chance, portanto, de pôr a mão na sedutora burra do BNDES,
registraria o ingresso do grande capital industrial, em pessoa, não
por delegação, ao lado do capital financeiro, no coração em todos
sentidos duro do governo. Medida que nos fatos amaciaria o público
eleitor nacional para uma eventual próxima candidatura à presidência
de um grande empresário, ao estilo de Berlusconi, na Itália.
O
programa Déficit Nominal Zero exige reforma constitucional que
termine com as vinculações orçamentárias de gastos, ensejando um
enxugamento radical nos investimentos sociais que permita ao governo
manter a exigência do capital financeiro de superávit primário
em 4,25 do PIB – em 2007, mais de 56 bilhões de reais –, sem ser
obrigado a captar os vultosos recursos no sistema financeiro que mantém
a taxa de juros entre as mais elevadas do mundo.
Nesse
sentido, impõe-se ao próximo governo uma ampla maioria parlamentar,
preferentemente que não exija constrangedoras remunerações
extraordinárias. Uma realidade facilitada certamente pelo
fortalecimento do PDMB que, de 76 deputados eleitos, em 2002, passou
para 89, em 2006, e certamente receberá uma enxurrada de outros,
vindos principalmente dos pequenos partidos de vocação fisiológica,
ameaçados pelas novas restrições da legislação partidária.
Com
a redução radical dos gastos sociais, o governo espera retomar os
investimentos, principalmente infra-estruturais, exigidos pelos
segmentos exportadores – hoje em menos de meio por cento do PIB –
e diminuir a carga tributária, atualmente em 37% do PIB.
Preferencialmente limitada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias, a
desoneração tributária seria sobretudo para o capital produtivo,
pois o trabalhador e o assalariado devem, como sabemos, continuar
contribuindo patrioticamente para que o “bolo cresça”.
O
fim de um Brasil
A
esperada queda da taxa de juros ensejaria a igualmente a retomada de
investimento do capital privado, nacional e internacional, atualmente
abaixo dos 20% do PIB. Taxas de remuneração do capital menos
escandalosamente atraentes diminuiriam o enorme ingresso de capitais
especulativos no Brasil, que valoriza o real e desgraça a agricultura
e cada vez mais amplos setores industriais produzindo para o exterior
e para o mercado interno – calçados, têxteis, moveleiro, eletrodomésticos,
etc. Portanto, os juros baixariam, para o gáudio do capital
industrial, sem interromper o sagrado pagamento do capital financeiro.
A
retomada dos investimentos públicos-privados seria apoiada pela
radicalização da orientação exportadora, favorecida pelo
encolhimento relativo do consumo interno público e privado, pois
ninguém quer, é claro, a volta da inflação, que ficará, em 2006,
entre as menores dos chamados países emergentes. Espera-se que essa
política acresça a participação das exportações de 16 para 25%
do PIB. Devido à importância das exportações no projeto geral da
segunda administração, sequer se aceita pensar na possibilidade que
a anunciada retração da economia estadunidense se transforme em
recessão, como prevêem alguns economistas agourentos. O
prosseguimento da depressão do mercado interno e potenciação das
exportações radicalizarão modificações econômicas e sociais de
conseqüências estruturais para o próprio princípio de nação
brasileira, já em forte desenvolvimento.
Os
estrategistas duros da próxima administração sonham também com a
imposição constitucional do Déficit Nominal Zero através de Lei de
Responsabilidade Fiscal Geral que restrinja a autonomia política e
econômica do governo, naturalizando a transferência dos recursos
nacionais para o grande capital financeiro e industrial, e a penúria
dos investimentos sociais. Há consenso sobre a manutenção no
segundo governo da autonomia de fato do Banco Central e uma sua
definitiva institucionalização, se possível. Meirelles, o grande
controlador das finanças nacionais, por conta das internacionais, só
sai do governo por sua vontade, já que cumpria à risca as determinações
daqueles que o nomearam.
O
programa Déficit Nominal Zero encolherá ainda mais os serviços públicos,
aumentando a desassistência geral da população. A toda poderosa
Dilma Roussef, chefe da Casa Civil, já anunciou a decisão de
enxugamento da máquina no segundo governo. Nesse sentido, a rejeição
de Lula da Silva de novos cortes é mera ressaca da retórica
eleitoral. Mesmo golpeando ainda mais dramaticamente enormes parcelas
da população, o governo espera que, com essas medidas, possa reduzir
o desemprego, em torno a 15% na região metropolitana de São Paulo,
caso o país alcance taxas de desenvolvimento médias superiores ao
cinco por cento do PIB, como afirma que fará já em 2007, ainda que
ninguém acredite na seriedade da promessa.
Excluídos
e incluídos
A
retomada da expansão econômica ensejaria a conquista do consenso ou,
ao menos, da neutralidade, dos segmentos sociais incluídos no
mercado de trabalho, facilitando a gestão dos excluídos, total ou
parcialmente, processo que tem alcançado bons resultados em outras
regiões do mundo. Uma expectativa que explica o apoio pleno da direção
da CUT ao projeto como um todo.
A
estratégia geral de segundo administração não contempla
minimamente a reforma agrária, por absoluta falta de recursos para a
compra de terra improdutiva, no contexto dessa lógica. A necessidade
de expansão das exportações e o crescente peso do agro-negócio na
economia nacional e no governo Lula da Silva – vide apoio ao
presidente de Blairo Maggi, o rei da soja recentemente
entronizado como governador do Mato Grosso – exigem que as reservas
de terras nacionais sejam destinadas à agricultura de exportação.
Os
novos e velhos bolsões sociais urbanos e rurais vivendo
estruturalmente na miséria prosseguirão sendo geridos com políticas
sociais compensatórias, como sugerido pelo Banco Mundial, que
apresentaram excelentes resultados eleitorais. E, como há consenso
que os recursos alocados a essa política refluirão, já no próximo
ano, após os excessos eleitorais, não se descarta a possibilidade de
medidas coativas, controladas e focalizadas, caso sejam necessária.
Sobretudo
o fato de que o projeto Déficit Nominal Zero seja também defendido
pelo PSDB-PFL explica a ausência de debate político de fundo durante
as eleições presidenciais e a alegre distensão que já se abateu
sobre o mundo político, após a gritaria sobre o dinheiro do dossiê
Serra, com ameaças até mesmo de impeachment presidencial.
Goste ou não goste o Alckmin, reclame o FHC, esperneie o agora manco
Bornhausen, de todos os lados já se escuta a ordem dura dos senhores
da riqueza e do poder do país: – Tá bem, vocês tentaram, e tinham
direito. Agora, chega! Basta! Deixem o homem trabalhar!
[1].-
Mário Maestri, 58, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net
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