O Terrorismo de
Estado no Brasil
Por Mário Maestri
(*)
Enviado por el autor,
05/07/07
Há algo de novo e de
muito sinistro na vida brasileira. Em 27 de junho, depois de quase
sessenta dias de exasperante cerco, mil e duzentos policiais militares
estaduais e forças federais invadiram o coração do complexo do Alemão,
na zona norte do Rio de Janeiro, matando dezenove moradores, três
deles de 13, 14 e 16 anos. Nas semanas anteriores, tinham ocorrido
outras 29 mortes e dezenas de feridos.
Segundo moradores, os
adultos e jovens mortos foram executados a sangue frio e, alguns
deles, a facadas. Também foi denunciado que as forças
policial-militares comportaram-se como verdadeiro exército de ocupação:
depredaram imóveis; assaltaram armazéns; exigiram dinheiro;
aterrorizaram velhos, adulto e crianças.
Sobretudo nas megalópoles
brasileiras, mortandades de moradores pobres por policiais militares são
práticas normais que despertam escassa atenção da grande mídia,
sempre leniente na abordagem desses fatos, sobre os quais as
autoridades negam ou minimizam a responsabilidade e garantem que as
investigações sobre eles não levem a nada.
Elogios rasgados
Desta vez, a ação
policial-militar contra o Complexo do Alemão - mais de duzentos mil
moradores - foi defendida, justificada e aplaudida pelas autoridades
estaduais, com destaque para Sérgio Cabral Filho, governador do Rio
de Janeiro: "A imagem de uma política que está agindo é tudo
que o povo do Rio e quem vem de fora quer." Para o governador,
esse tipo de ação atrairia turistas. Falando da operação e das
mortes, propôs que não há "ação sem stress".
José Mariano
Beltrame, secretário de Segurança do Estado, elogiou a intervenção,
afirmando que todas as mortes resultariam de confrontos. No Brasil,
executar traficante é já direito policial adquirido. Porém, no dia
27, não houve policial morto ou ferido gravemente. O secretário
prometeu igualmente que as ações prosseguirão em outros grandes
centros habitacionais populares do Rio de Janeiro.
José Beltrame propôs
ser impossível "fazer um bolo sem quebrar os ovos". No caso
do Complexo do Alemão, "fazer o bolo" seria assassinar, no
ato, adultos e jovens ligados ao tráfico e, os "ovos",
"quebrados" para alimentar a festa, os populares executados
por engano ou para exemplo! Foi proibido que observadores
independentes assistissem as autópsias dos assassinados. Afirma-se
que há mortos com tiros na cabeça, indícios de execução.
A defesa da repressão
explícita não foi derrapagem das autoridades do Rio de Janeiro. Na
segunda-feira, 2 de julho, o presidente Lula da Silva solidarizou-se
com o governador Sérgio Cabral e afirmou, como o secretário de
Segurança, ser "impossível enfrentar o narcotráfico com pétalas
de rosas, jogando pó de arroz". Na ocasião, anunciou
investimentos para os bairros pobres do Rio de Janeiro, promessa feita
e jamais cumprida desde o início de sua primeira administração.
Medo de viver
A população
brasileira vive permanentemente estressada pela crescente violência
urbana e rural, sentimento potenciado fortemente pela insegurança
quanto ao trabalho, saúde, educação, aposentadoria, etc. Esse
estado de espírito alcança paroxismo nas grandes capitais
brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife,
Salvador, Porto Alegre.
A superação efetiva
de tal realidade exigiria inversão absoluta das políticas em
radicalização desde o golpe militar de 1964, com fortes
investimentos sociais e real distribuição da renda, reorientação
impugnada totalmente pelos grandes interesses econômicas nacionais e
internacionais dominantes. O Brasil é um dos países de maior desnível
social na América Latina.
A consolidação do
cenário anti-social - desemprego; salários miseráveis; assistência
médica, educacional, etc. de baixíssima qualidade, etc -, no
contexto de população de baixa consciência e de escassa capacidade
de mobilização social, enseja que crescente número de populares
encontre meio de vida, temporário ou permanente, na delinqüência,
pequena e grande, com destaque para a distribuição da droga.
Tolerância, zero!
Investimentos, zero!
Também no Brasil a
criminalização e a repressão dos pobres e trabalhadores tornaram-se
políticas propostas pelo conservadorismo e pela grande mídia como
solução para a violência pessoal. Como o Estado brasileiro nega-se
a investir em sistema judicial, policial e carcerário condizente com
essa proposta, ela tende a materializar-se em atos extremos contra
alguns delinqüentes e, sobretudo, contra a população pobre.
Apesar dos milhões
de desassistidos no Rio de Janeiro, as autoridades públicas optaram
em investir recursos bilionários na organização dos jogos
Pan-americanos, certos que produzirão retorno político e econômico
para os grupos políticos e empresariais que dominam a administração
pública regional.
Nesse contexto geral,
a repressão maciça e indiscriminada torna-se medida essencial para
sufocar e prevenir eventuais transbordamentos sociais e satisfazer as
imensas parcelas da opinião pública, não apenas das classes médias,
conquistadas pela proposta de repressão impiedosa do delinqüente. A
política do Rio de Janeiro é uma das mais mortíferas do mundo.
Uma saída política
Depois de dois meses,
e quase trinta mortos, o cerco das forças policial-militares
estaduais e federais resultara em enorme fracasso, desacreditando a
capacidade e a proposta de dura repressão estatal. A operação de 27
de julho buscava superação do impasse com a prisão do traficante
Antonio José Ferreira de Souza, Tota, de 35 anos, e de seus
principais auxiliares, encarapitados no Areal, uma das paragens mais
inacessíveis do enorme Complexo do Alemão. A seguir, o cerco poderia
ser aliviado, com menor desmoralização da proposta repressiva.
Como os talvez não
mais de cinqüenta procurados esconderam as armas, superaram cerco e
escafederam-se, o massacre serviu para reafirmar, através da imposição
do terror, a capacidade do Estado de ferir impunemente delinqüentes e
populares, onde queira, como queira, quando queira. Para que o exercício
do terror tivesse caráter exemplar, as autoridades fluminenses
reconheceram-no e propuseram sua próxima extensão à Rocinha,
Jacarezinho, Mangueira, Cidade de Deus e Complexo da Maré.
A chacina procurou
também sufocar, igualmente pelo terror, qualquer revide dos
traficantes, quando dos Jogos Pan-americanos, que se iniciam em 13 de
julho, durante os quais se esperam oitocentos mil turistas. O complexo
do Alemão é apenas uma entre as centenas de aglomerados populares da
capital fluminense, reunindo alguns milhões de habitantes. Trata-se
portanto de aposta prá lá de arriscada!
Assumindo
publicamente a responsabilidade pelo massacre do Complexo do Alemão,
o governo do Rio de Janeiro e o presidente da República sancionaram ação
terrorista, à margem da lei, como política de Estado, sob o silêncio
de praticamente todas as autoridades públicas nacionais e
internacionais, à exceção de algumas frágeis e meritórias vozes
dissidentes, com destaque para a sessão da Ordem dos Advogados do Rio
de Janeiro.
(*) Mário Maestri,
59, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net
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