Brasil bajo Lula

 

Lula: Aposta perdida

Reinaldo Gonçalves
Professor titular de Economia da UFRJ.
Trabalho a ser publicado em Praia Vermelha, ESS/UFRJ
dezembro 2003

Introdução

Em junho de 2001 houve um debate sobre o tema "Globalização e socialismo" no Diretório Nacional do PT, com a presença de Antonio Cândido, Francisco de Oliveira, Luis Inácio Lula da Silva e outras personalidades do Partido dos Trabalhadores. A minha exposição concentrou-se nos fundamentos de um projeto de orientação socialista para o Brasil na perspectiva de vitória do PT nas eleições presidenciais de 2002. Após um debate bastante agitado, concluí a minha intervenção da seguinte forma:

"Desconcentraremos radicalmente a riqueza ou ficaremos, quem sabe, sem fazer nada. Vai ficar um "projetozinho" de um Brasil vulnerável, débil e africanizado. E depois, no futuro, quando o pt for governo, alguém virá criticar o núcleo duro dos economistas do pt, que serão acusados de serem os responsáveis pelos resultados medíocres. ,,,, Então, o pessoal dirá: “O núcleo duro dos economistas do pt não quer brigar com o sistema financeiro nacional e internacional, não consegue romper com o fmi”."

"É lamentável, mas é uma opção. De repente, nada será feito em termos de transformação e ruptura. Vale ressaltar que não é um problema técnico vinculado a núcleos “duros” ou “moles” de economistas. É uma escolha política. Na minha avaliação, a estratégia de nada fazer, nada mudar, significa deixar o Brasil vulnerável, débil, nessa trajetória de africanização, o que é uma estratégia de alto risco. Para não mudar, é melhor deixar a social-democracia ou os liberais no poder."

"Estou convencido de que qualquer estratégia, marcada pela pusilanimidade e pela linha de menor resistência, desembocará em um processo autofágico. Perderemos o rumo e o prumo. Não tenho dúvidas que a história vai cobrar, e caro, se seguirmos a linha de menor resistência." (Gonçalves et al, 2003, p. 77-78)

Essa conclusão baseava-se na percepção crescentemente pessimista a respeito das perspectivas do desempenho de Lula na presidência da República. Ao longo dos anos, fui me convencendo que parte expressiva dos dirigentes do PT não tinha um projeto de sociedade para o Brasil. De fato, havia quase que exclusivamente um projeto de poder. Daí, o meu ceticismo quanto a um futuro governo Lula.

Além dessa circunstância histórica, há um processo secular que não pode ser negligenciado. Os céticos tomam a História do Brasil como referência e pensam que não se deve esperar mudanças significativas durante o governo Lula. Recupera-se, assim, a análise histórica que nos dá a seguinte lição: "a política de conciliação, de transação, teve como principal objetivo aplainar mais as divergências dos grupos dominantes que conceder benefícios ao povo" (Rodrigues, 1965, p. 132). As medidas de política econômica no primeiro ano do governo indicam que estamos entrando em mais um período de conciliação e reforma.

Lamentavelmente, o primeiro ano do governo Lula já mostrou que os céticos tinham razão. Esse é o tema desse artigo. Para ilustrar o argumento, trato de quatro temas específicos: ajuste externo, política externa, reformas e causas dos erros. E na parte final apresenta-se uma síntese da análise.

1. Ajuste externo duvidoso

O governo Lula tem se comprometido com a ampliação das exportações, não somente como um fator gerador dos dólares tão necessários ao fechamento das contas externas, mas também como uma fonte de crescimento da produção e do emprego. Entretanto, as restrições ao crescimento das exportações brasileiras no curto e médio prazos são enormes e, muito provavelmente, crescentes. Pela lado da demanda, deve-se mencionar não somente o quadro de recessão internacional, como também os indícios de uma nova onda protecionista no sistema mundial de comércio. Pelo lado da oferta, deve-se chamar atenção para o fato de que a perda de competitividade internacional dos produtos manufaturados brasileiros ao longo dos últimos anos deve-se, em grande medida, à ineficiência sistêmica da economia brasileira. O desmonte do sistema nacional de inovações, a desnacionalização, as privatizações (que encareceram o insumos e provocaram ou agravaram os gargalos), as taxas medíocres de crescimento da renda (que reduziram os ganhos de escala) e os níveis medíocres de investimento (baixa modernização) provocaram a fragilização do aparelho produtivo que, por seu turno, levou à perda de competitividade internacional.

Não há dúvida que a capacidade de competição de produtos manufaturados brasileiros no mercado internacional, pelo lado da oferta, é limitada tendo em vista os problemas estruturais. Esses problemas não serão solucionados no curto e médio prazos. Assim, dificilmente pode-se esperar um aumento expressivo das exportações brasileiras de manufaturados no futuro próximo. Esse argumento é ainda mais evidente se o governo Lula resolver uma réplica do Plano Real e procurar usar a taxa de câmbio (apreciação) como um instrumento central de combate à inflação. Com relação às commodities, a queda dos preços internacionais (provocada pelo excesso de oferta e pelo reduzido dinamismo da demanda) configuram cenários desfavoráveis, principalmente, para as commodities agrícolas. Nesse sentido, maiores incentivos às exportações podem significar maior redução dos preços internacionais dos produtos brasileiros e, possivelmente, uma queda na receita de exportação em dólares. Isto é, quanto mais inelástica for a demanda pelas exportações brasileiras, o país exporta uma maior quantidade a preços menores de tal forma que a receita em dólares reduz-se.

Ao longo de 2003 algumas commodities exportadas pelo Brasil (por exemplo, soja) tiveram aumento de preço. Esse fato reflete o comportamento altamente volátil dos preços das commodities (principalmente, soja) e não garante uma trajetória sustentável para as exportações brasileiras.

A substituição de importações, por seu turno, poderá ter um impacto positivo sobre a balança comercial, porém, isso não é evidente. A substituição de importações pode ocorrer, inclusive, em detrimento do aumento das exportações via, por exemplo, aumento da inflação. Há, ainda, enormes gargalos na estrutura produtiva brasileira que fazem com que, no curto e médio prazos, a substituição de importações poderá provocar efeitos negativos sobre o balanço de pagamentos (por exemplo, maior importação de bens de capital e produtos intermediários).

A substituição de importações terá um efeito negativo sobre o processo inflacionário e, ademais, envolverá, uma transferência de renda dos consumidores para os produtores (isto é, dos trabalhadores e dos pobres para os produtores e os ricos). Deve-se notar, ainda, que devido ao desmonte do aparelho produtivo nacional é provável que no curto e médio prazos o processo de substituição de importações não tenha impacto significativo sobre o investimento e a geração de emprego. No curto e médio prazos, é improvável que haja aumentos expressivos dos investimentos orientados para a substituição de importações. Se ocorrerem, esses investimentos tenderão a ter impacto sobre a renda e a produção somente no médio e longo prazos.

Ainda com relação a substituição de importações, há duas perguntas importantes: Até que ponto o governo Lula permitirá a transferência de renda dos consumidores para os produtores? E, como a sociedade reagirá ao aumento de preços e à piora na qualidade dos produtos decorrentes da substituição de importações?

O aumento das exportações e a substituição de importações são as “peças de menor resistência” quando se trata de enfrentar os problemas externos. Conforme mencionado, o crescimento dinâmico e sustentável das exportações é algo muito duvidoso no futuro próximo, enquanto a substituição de importantes tem importantes "trade-offs". O ajuste externo lento, baseado no saldo da balança comercial de bens, é a estratégia de menor resistência, mas tem impacto duvidoso. Neste sentido, não há dúvida que em algum momento no futuro não muito distante, Lula terá que apelar para os controles diretos, inclusive, sobre o movimento internacional de capitais. A menos, naturalmente, que ele opte por um crescimento econômico ainda mais medíocre. Nesse caso, é improvável que a popularidade de Lula permaneça em níveis elevados, mesmo que a taxa de inflação fique em um dígito. Mais grave ainda, é a deterioração das expectativas dos agentes econômicos e o aumento da descrença e desesperança do povo.

2. Política externa: paparrotadas

Há cerca de vinte anos perguntei a um experiente embaixador indiano o que ele pensava da diplomacia brasileira. E ele respondeu: respeito qualificado. Para quem não entende "diplomatiquês", essa expressão tem muitos equivalentes, inclusive, desqualificações pesadas e impublicáveis. Esse embaixador havia participado de inúmeras negociações internacionais ao lado de diplomatas brasileiros e a sua desconfiança derivava de dois aspectos: a vulnerabilidade externa da economia e o despreparo dos diplomatas do Brasil. O fato é que havia (e continua havendo) um forte contraste entre a situação e o poder de negociação internacional da Índia, país com baixa vulnerabilidade externa, e o Brasil.

Naquela ocasião, discutia-se a abertura de uma nova rodada de negociações multilaterais no âmbito do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), antecessor da OMC (Organização Mundial do Comércio). O maior conflito era a inclusão, exigida pelo governo dos Estados Unidos, dos temas de serviços, propriedade intelectual e investimento externo direto na nova rodada de negociações. Um grupo de países liderados pela Índia e pelo Brasil resistia à inclusão de novos temas. Encurtando a história, o Brasil encontrava-se mergulhado na crise da dívida externa e a liberação de recursos de créditos do Eximbank dos Estados Unidos amoleceram a posição inicial do governo brasileiro. Enquanto a Índia já tinha pronto inúmeros estudos sobre o impacto dos novos temas e se preparado para as negociações, a diplomacia brasileira mostrava-se completamente inerte e despreparada para as negociações. Em síntese, a Índia terminou praticamente sozinha na liderança da resistência e foi finalmente derrotada pelo rolo compressor dos Estados Unidos e da Europa.

A história parece que se repete mais uma vez. Depois de toda reunião do GATT/OMC a diplomacia brasileira retorna "arrotando" grandes vitórias. Na realidade, não passa de lorotagem diplomática, puro exercício de propaganda e marketing. Para aqueles que pensavam que no governo Lula as coisas seriam diferentes, houve mais uma frustração.

Na reunião de Cancún o Brasil, Índia e outros países reformataram o antigo grupo de Cairns, que representava os principais produtores agrícolas. Rebatizado com o nome de G-20, G-21 ou G-22 ou qualquer coisa do gênero, esse grupo de países focou sua estratégia na obtenção de maiores compromissos quanto ao comércio mundial de produtos agrícolas. Esses compromissos incluem temas como a concessão de incentivos e subsídios à produção de produtos agrícolas, os estímulos à exportação e as restrições à importação.

Vejamos, agora, os fatos. Como, praticamente toda organização multilateral, a OMC é uma organização cujo processo de tomada de decisão depende, em grande medida, do consenso existente entre os Estados Unidos e a União Européia. Isso não impede, naturalmente, que concessões marginais sejam feitas com o intuito de cooptar outros países. O custo de cooptação varia inversamente com a vulnerabilidade externa de cada país. A Índia e a China, por exemplo, têm grande capacidade de resistência a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos provenientes dos Estados Unidos, da Europa e do resto do mundo. O Brasil, por outro lado, é um país extremamente frágil e, portanto, o custo de cooptação da diplomacia brasileira é baixo.

A vulnerabilidade externa do Brasil é hoje maior do que há vinte anos. Atualmente, o Brasil recebe o "auxílio-funeral" do FMI que, como todos sabem, é um instrumento de política econômica externa do governo dos Estados Unidos. Ademais, cerca de 40% do famigerado superávit da balança comercial do Brasil depende das compras estadunidenses, o que envolve grande dependência bilateral da economia brasileira.

No que se refere ao FMI, a "novidade" do governo Lula parece ser a introdução de condicionalidades sociais ou, então, a redução das restrições fiscais tendo em vista determinadas metas sociais. Isso é pura lorota, por duas razões. Em primeiro lugar, as absurdas metas de superávit (arrocho) fiscal do acordo feito por Lula com o FMI não precisavam ser tão elevadas, como mostrou a experiência argentina recente. A meta de superávit fiscal de Lula foi de 4,25%, enquanto a de Kirchner foi de 3,0%. É tolice colocar um superávit elevadíssimo, para depois ter que pedir "perdão" ou afrouxamento para se fazer gastos sociais. Em segundo lugar, a política de introduzir políticas sociais nos acordos do FMI é uma iniciativa do próprio Fundo, que surgiu em 1999 após as pressões dos países asiáticos. Essa iniciativa tem como objetivo legitimar e obter apoio para os programas de ajuste do FMI (Carvalho, 2003). Dessa forma, por trás de mais uma lorotagem de propaganda, Lula está fazendo o jogo do FMI de desregulamentação e liberalização, que impedem a retomada do desenvolvimento.

Em Cancún, o governo Lula manteve a mesma orientação do governo FHC ao focar no livre-cambismo agrícola ou um "nacionalismo de fazendeiro" (Boito Jr., 2003). O fato é que essa estratégia de negociação comercial centrada na liberalização dos produtos agrícolas atende, em grande medida, aos interesses das empresas transnacionais do agronegócio, que controlam parte expressiva das exportações brasileiras. A liberalização dos transgênicos e o foco no agronegócio exportador representam a manutenção de estruturas agrícola e agrária retrógradas. Como disse dom Pedro Casaldáliga, "se investimos nas monoculturas, por causa da obsessão exportadora e da dívida externa, estamos perdidos. Em nossa região estamos ameaçados pelas monoculturas de soja e algodão. São duas culturas deletérias, que acabam com a terra, os rios e a saúde dos agricultores" (Casaldáliga, 2003).

E, da mesma forma que outros países em desenvolvimento, marcados por forte vulnerabilidade externa e que aceitaram fazer concessões iniciais, o Brasil também se prontificou a afrouxar com relação ao polêmico tema de compras governamentais, contrariamente à Índia. Assim, a posição do Brasil em Cancún deve ser vista com ceticismo, pois no contexto da realpolitik o poder de barganha de qualquer país não depende da "garganta" mas de fatos concretos.

O fato é que o Brasil continua acocorado na arena internacional, com seu comércio internacional dependente de produtos agrícolas, passivo externo altíssimo e divida enorme com o FMI. E mais, o processo de ajuste externo (o superávit comercial) depende da boa vontade de parceiros importantes como os Estados Unidos. Não se esqueçam jamais que o anúncio do nome do Presidente do Banco Central do governo Lula foi feito em Washington, após uma visita ao governo dos EUA. Isso tudo expressa vulnerabilidade e submissão. E não me venham, mais uma vez, com paparrotadas. No exercício do poder, o distanciamento entre o discurso de Lula e a realidade só merece mesmo é respeito qualificado.

3. Reformas: conciliação uma vez mais

A reforma da Previdência Social originalmente apresentada por Lula era claramente concentradora de renda e riqueza, além de provocar maior fragilização do Estado e montar um bomba de efeito retardado com os fundos de pensão complementar. Lula será responsável por uma maior desigualdade em decorrência da redução da renda pessoal disponível do servidor público e seus pensionistas.

A efetiva mudança histórica exige reformas que tenham três eixos estruturantes: moralização, racionalização e distribuição. O grande desafio consiste em definir o equilíbrio e o foco envolvendo esses eixos. Há diferentes visões quanto ao foco das reformas.

Os conservadores concentram-se no eixo da moralização. A ausência de um projeto de transformação assentado em valores e ideais sólidos resulta em medidas de grande efeito mediático, isto é, muita alegoria e pouco enredo. Vale lembrar o discurso pseudo-moralista de Collor contra os marajás do serviço público (retomado por Lula) e o argumento de que a CPMF deve ser mantida para fins de controle. O casamento do moralismo com um fiscalismo tosco marca ainda mais a face conservadora desse tipo de reforma.

Os liberais, por seu turno, focam na racionalização do sistema qualquer que seja a reforma. No que se refere à tributação, os liberais centram a atenção na afamada desoneração da produção. Por trás de um pseudo discurso tecnocrático esconde-se a manutenção de estruturas marcadas por desigualdade e injustiça. Defende-se, dessa forma, os interesses da elite econômica por meio da manutenção de sistemas que precisam ser "aperfeiçoados". As propostas de reforma tributária provenientes de órgãos representativos do empresariado têm esse viés. Por exemplo, quando CNI, IEDI, FIESP et caterva discutem a questão tributária, os empresários estão, de fato, querendo redução da carga tributária e menor progressividade.

Há, por fim, aqueles que estão profundamente engajados em mudanças e rupturas históricas. Esses são os verdadeiros reformadores. Para eles a ênfase das reformas deve ser o da distribuição de riqueza, renda, poder e projeção social. Governantes engajados em mudanças históricas também promovem reformas tributárias com foco na distribuição de riqueza e renda. O fundamental, nesse caso, é o princípio da progressividade acoplado ao princípio de que os rendimentos do trabalho tenham tributação inferior ao do capital. E mais, é necessário uma firme implementação de impostos sobre o estoque de riqueza. Para isso, não basta mudanças na legislação que não são acompanhadas pelo fortalecimento do aparelho fiscalizador e repressor do Estado. A "lorota" tributária do ITR é um bom exemplo. No Brasil não é possível uma tributação séria sobre grandes fortunas se continuar o desmonte do aparelho fiscalizador.

A reforma tributária focada na distribuição também define mecanismos automáticos de correção da tabela do IRPF. O aumento da progressividade do IRPF e do IRPJ deve ser peça fundamental de uma verdadeira reforma tributária. O mecanismo de juro sobre capital próprio (o famigerado "juros pela TJLP") deveria ser eliminado, pois reduz significativamente a carga tributária do capitalista.

A história das reformas no Brasil tem sido a eterna luta entre conservadores, liberais e reformistas. Conservadores focam na moralização, liberais na racionalização e reformadores na distribuição. Infelizmente, o processo histórico brasileiro tem sido marcado pela conciliação entre conservadores e liberais por meio de reforminhas que tangenciam a questão fulcral da distribuição de riqueza, renda e poder. Lula está propondo uma reforminha na área tributária.

As reformas de Lula interessam à elite econômica brasileira e, principalmente, aos grandes bancos. A proposta de reforma previdenciária de Lula cria extraordinárias oportunidades de negócios para os bancos via fundos de pensão complementar. A proposta de reforma tributária está focada na racionalização, principalmente, quanto ao pagamento do ICMS. Ela é pífia quanto ao seu efeito distributivo. Por essas razões, o Congresso Nacional não é um fator impeditivo da aprovação das reformas. Não se esqueçam, ainda, que Lula foi esperto ao comprometer os governadores com as reformas (principalmente, a tributária), o que garante um apoio importante.

4. Os erros de Lula: causas

A pesquisa CNI/Ibope mostrou que entre março e junho o governo sofreu significativa perda de aprovação e confiança. Isto é grave. Há determinantes concretos e imediatos como o aumento do desemprego e a queda da renda real do trabalhador. Há também outros motivos como aqueles refletidos na expressão "o medo venceu a esperança".

Em março, para cada brasileiro que desaprovava o governo havia 5,8 que aprovavam. Em junho essa proporção baixou para 3,9. Para cada cidadão que não tinha confiança em Lula em março, havia 5 que tinham confiança no novo presidente. Em junho essa relação caiu para 4. E, para cada indivíduo que considerava o governo de Lula ruim/péssimo em março, havia 7,3 que o consideravam ótimo/bom. Em junho, essa relação diminuiu para 3,9. As quedas de aprovação, confiança e avaliação foram de 33%, 20% e 47%, respectivamente. Essas quedas relativas são muitos significativas pois ocorreram em curto período e logo no início do governo. Não há como subestimá-las.

Há fatos que justificam essa deterioração rápida. Comecemos pela inconsistência macroeconômica. O governo persiste com uma taxa de juros estratosférica quando as finanças públicas estão completamente quebradas. O financiamento do passivo externo está sendo feito, em grande medida, por capitais de curto prazo numa economia marcada por enorme vulnerabilidade externa; bem como pelo aprofundamento da recessão, num país com gravíssimos problemas sociais. O fato é que os indicadores estão se deteriorando ou, então, mostram uma melhora temporária, que não parece ser sustentável por muito tempo. Ademais, Lula apresentou uma proposta de reforma previdenciária que deverá aumentar a concentração de renda, pois, afinal trata-se de tirar renda do servidor público para transferir para os rentistas. A proposta de Lula é uma bomba de efeito retardado na medida em que é previsível a quebra de fundos de pensão no futuro não muito distante. Como se não bastasse, a proposta implicará na maior fragilização do Estado brasileiro por meio da piora da situação do servidor público. A timidez e pobreza da reforma tributária, por seu turno, expressam o foco estreito da racionalização em detrimento da distribuição de riqueza e renda. E, por fim, a área social do governo não tem mostrado resultados, pois ao lado de pouco enredo o que se observa é muita alegoria e autoridades reclamando de falta de recursos.

A pergunta, então, é a seguinte: Por que Lula erra? Há cinco hipóteses. A primeira tem a ver diretamente com a pessoa do presidente. É a hipótese "despreparado versus gênio político". Antes das eleições, boa parte do bloco de poder considerava Lula despreparado para o exercício da presidência da república. Depois de eleito, muitos mudaram radicalmente de posição e já consideram Lula um gênio político. Essa visão de banqueiros radicais e dos canalhocratas (aqueles que apoiam sempre qualquer governo) não parece muito inteligente. Muito provavelmente, da mesma forma que a grande maioria dos presidentes brasileiros, Lula nem é despreparado, nem um gênio político. Isso significa que, por um lado Lula não está errando por ignorância; por outro, não há indícios de que ele tenha qualquer plano genial de transição da continuidade plena para a ruptura histórica.

A segunda hipótese trata da chamada "teoria do corner". O argumento é que FHC teria deixado um conjunto de "bombas" armadas que explodiriam já no início do governo Lula. Dentre essas bombas estão o nível das reservas internacionais, a inflação, o acordo com o FMI e o rombo das contas públicas. Esses problemas já existiam (e, ainda existem) e Lula está fazendo mais do mesmo, que fracassou. A política macroeconômica de Lula não soluciona os problemas e, sim, provoca o agravamento da situação econômica e social brasileira.

A terceira hipótese refere-se ao problema da "correlação de forças". O argumento é que existe um "centrão" (que na verdade, é a direita organizada) no Congresso Nacional, que impediria propostas de mudanças históricas. Isso, na realidade, é uma meia-verdade. Da mesma forma que Lula arrastou os governadores para protocolar suas propostas de reforminhas no Congresso, ele poderia ter feito uma extraordinária mobilização popular para apresentar e aprovar projetos de reformas históricas. Cabe lembrar que o capital-político do presidente tende a ser mais elevado no início do mandato.

A quarta hipótese trata dos "acordos" que teriam sido feitos antes, durante e depois da campanha presidencial. A campanha foi cara e, certamente, houve inúmeros acordos políticos - antigos adversários transformaram-se em "neocompanheiros". No contexto da herança trágica e da inabilidade de FHC na gestão da candidatura oficial, bem como da mediocridade dos outros candidatos à presidência, Lula foi o "atrator estranho", isto é, aquela variável que não faz parte do sistema mas que exerce atração. Como resultado, é provável que o custo da atração tenha sido muito alto.

As perguntas que ficam são as seguintes: Quanto vale a entrada do capital estrangeiro nos meios de comunicação quebrados financeiramente? Quanto vale a reforma previdenciária que força os servidores públicos a aderirem aos fundos de pensão complementar? Quanto vale a ausência de controles sobre os fluxos internacionais de capital? Quanto vale uma reforminha tributária que negligencia a distribuição de renda e riqueza? Quanto valem as indicações de próceres da República e seus apadrinhados para cargos públicos? Quanto vale a aprovação do plantio de soja transgênica?

A quinta e última hipótese é o "húbris" presidencial. Voltamos aqui à pessoa do presidente da República. Excesso de orgulho e autoconfiança seriam partes da subjetividade. No que se refere à objetividade, o argumento é que, tendo em vista a ânsia de poder, a função-objetivo de Lula teria uma única variável: governabilidade. É o poder pelo poder. Lula não seria o primeiro e nem o último. Muito pelo contrário, para se manter no poder a qualquer custo ele seguiria a trajetória histórica brasileira de conciliação e reforminhas.

Como dizem os cientistas, não há evidência empírica conclusiva a respeito de qualquer uma dessas hipóteses. Pode ocorrer, inclusive, que a explicação final deriva de uma combinação (não necessariamente linear e digna) dessas hipóteses.

5. Conclusão

A avaliação do primeiro ano do governo Lula é negativa. Por um lado, a área social mostra ausência de coordenação e, excluindo o programa Fome Zero, parece sem iniciativa. A área econômica está entre o lamentável e o ridículo. Os "canalhocratas" de sempre (que passaram anos elogiando o Fernando Henrique) têm elogiado o governo Lula, mas os indicadores usados (preço de ações na bolsa, risco-país e cotação do dólar) são muito frágeis e não convincentes. Não há evidência de tendência sustentável de melhoria da economia brasileira. Muito pelo contrário. O governo não tem feito nada de significativo, por exemplo, para reduzir a vulnerabilidade externa e o desemprego. A dívida pública continua fora de controle em decorrência dos elevados juros e do seu componente dolarizado. A política fiscal é autofágica com o atual nível de juros.

É erro técnico imaginar que oscilações abruptas no curto prazo de indicadores como taxa de câmbio, preço de títulos públicos no mercado internacional e índice de bolsa de valores representem uma firme tendência de melhora. Os fundamentos da economia brasileira continuam muito frágeis. Não houve uma mudança significativa no contexto internacional e nas condições internas da economia brasileira nos últimos seis meses. Isso significa que o Brasil continua na trajetória de instabilidade e crise. Há forte evidência de aprofundamento do quadro recessivo e de aumento do desemprego. A vulnerabilidade externa da economia brasileira não se alterou na sua essência. O ajuste das contas externas está focado na expansão das exportações de produtos agrícolas e na recessão e, como conseqüência, temos o superávit da balança comercial. Esse superávit não é uma solução e, sim, um problema. Ele só se sustenta numa situação recessiva tendo em vista a conjuntura internacional desfavorável e o desmonte do aparelho produtivo nacional.

A conta de capital, por seu turno, está se beneficiando de capitais de curto prazo atraídos por juros altos. Enquanto isso, o passivo externo continua sendo a nossa principal fonte de desequilíbrios. As contas públicas continuam muito fragilizadas na medida em que o governo mantém os juros altos. A proposta pífia de reforma tributária dificulta ainda mais o ajuste nas finanças públicas. Em síntese, a próxima crise cambial é só uma questão de tempo.

Os economistas brasileiros reunidos, em Brasília, entre os dias 10 e 13 de setembro de 2003, no XV Congresso Brasileiro de Economistas, aprovaram a “Carta de Brasília”, com a posição dos profissionais sobre os rumos de uma política econômica. Essa Carta apresenta uma síntese objetiva das críticas existentes e vale a pena reproduzir seus principais trechos:

1. Estabilizar primeiro e aumentar o emprego depois parece ser a orientação do governo Lula nos seus primeiros meses. Entretanto, juro alto, arrocho fiscal e apreciação cambial não garantem a queda sustentável da inflação. Essas políticas, certamente, reduzem a taxa de crescimento econômico, aumentam o desemprego e a exclusão social. Assim, o Governo comete um erro estratégico ao condicionar a retomada do desenvolvimento à prévia consecução dos equilíbrios, cambial, fiscal e monetário, dado que estes só poderão ser obtidos, de forma segura e permanente, no contexto do crescimento acelerado da economia.

2. A mudança do comando político e econômico do país trouxe grandes esperanças que, contudo, não se estão realizando. O novo Governo absorveu a visão curtoprazista do seu antecessor, priorizando os equilíbrios cambial, fiscal e monetário em detrimento da imediata retomada do desenvolvimento, sem perceber que esses desequilíbrios só serão definitivamente eliminados por meio do crescimento acelerado do PIB, com seus corolários de criação de capacidade exportadora, substituição competitiva de importações, aumento da receita fiscal, redução do déficit público e da taxa de juro. Nossos gravíssimos problemas atuais só serão eliminados quando o neoliberalismo, que vitimou o Brasil, for substituído pela visão desenvolvimentista.

3. O governo mobilizou sua capacidade de comando político para garantir as reformas tributária e previdenciária que, levadas adiante em conjuntura econômica e política desfavorável, não deverão corrigir os erros e introduzir aperfeiçoamentos de que o País necessita. E mesmo que as reformas tributária e previdenciária obedecessem rigorosamente às características desejáveis, elas pouco contribuíram para o atendimento da grande aspiração nacional de pronta retomada do desenvolvimento econômico e social. Portanto, novamente aqui, as prioridades não foram corretamente definidas

4. Não é possível continuar iludindo-se com indicadores circunstanciais e esconder, por mais tempo, a gravidade da situação política, econômica e social do Brasil. Admitindo a situação o novo Governo terá dado o primeiro passo para abandonar o neoliberalismo dos seus antecessores e ingressar em uma trajetória de desenvolvimento que o País deseja e de acordo com os compromissos assumidos com seu eleitorado. Urge, portanto, a retomada do desenvolvimento econômico. Torna-se imprescindível recolocar o país nos trilhos do desenvolvimento.

O Brasil continua um "vagão descarrilhado" e a política macroeconômica e as reformas de Lula indicam que é crescente a probabilidade de fracasso. A herança de Lula pode ser ainda pior do que a de FHC (Gonçalves, 2003). Devemos nos preocupar com a fragilização do movimento social (via cooptação), a fragmentação do movimento sindical (via neopeleguismo), a descrença ainda maior quanto à viabilidade do Brasil como nação e com o avanço insuportável do desemprego, que poderá provocar uma crise social. Será que somente a eclosão da crise social, precedida de grave crise cambial, provocará um giro de 180 graus na direção das políticas governamentais?

 Deve-se notar que uma taxa de crescimento econômico da ordem de 0,5-1,0% significa que Lula é responsável pelo seguinte fato: mais de 1 milhão de pessoas no contingente de desempregados em 2003. Na sua estratégia de conciliação e reforma e de um projeto de "poder pelo poder", juntamente com seus "neocompanheiros" do agronegócio e da banca internacional, Lula dirige um governo sem rumo e sem prumo!

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