Lula:
Aposta perdida
Reinaldo
Gonçalves
Professor
titular de Economia da UFRJ.
Trabalho a ser publicado em Praia Vermelha, ESS/UFRJ
dezembro
2003
Introdução
Em
junho de 2001 houve um debate sobre o tema "Globalização e
socialismo" no Diretório Nacional do PT, com a presença de
Antonio Cândido, Francisco de Oliveira, Luis Inácio Lula da Silva e
outras personalidades do Partido dos Trabalhadores. A minha exposição
concentrou-se nos fundamentos de um projeto de orientação socialista
para o Brasil na perspectiva de vitória do PT nas eleições
presidenciais de 2002. Após um debate bastante agitado, concluí a
minha intervenção da seguinte forma:
"Desconcentraremos
radicalmente a riqueza ou ficaremos, quem sabe, sem fazer nada. Vai
ficar um "projetozinho" de um Brasil vulnerável, débil e
africanizado. E depois, no futuro, quando o pt
for governo, alguém virá criticar o núcleo duro dos economistas do pt,
que serão acusados de serem os responsáveis pelos resultados medíocres.
,,,, Então, o pessoal dirá: “O núcleo duro dos economistas do pt
não quer brigar com o sistema financeiro nacional e internacional, não
consegue romper com o fmi”."
"É
lamentável, mas é uma opção. De repente, nada será feito em
termos de transformação e ruptura. Vale ressaltar que não é um
problema técnico vinculado a núcleos “duros” ou “moles” de
economistas. É uma escolha política. Na minha avaliação, a estratégia
de nada fazer, nada mudar, significa deixar o Brasil vulnerável, débil,
nessa trajetória de africanização, o que é uma estratégia de alto
risco. Para não mudar, é melhor deixar a social-democracia ou os
liberais no poder."
"Estou
convencido de que qualquer estratégia, marcada pela pusilanimidade e
pela linha de menor resistência, desembocará em um processo autofágico.
Perderemos o rumo e o prumo. Não tenho dúvidas que a história vai
cobrar, e caro, se seguirmos a linha de menor resistência." (Gonçalves
et al, 2003, p. 77-78)
Essa
conclusão baseava-se na percepção crescentemente pessimista a
respeito das perspectivas do desempenho de Lula na presidência da República.
Ao longo dos anos, fui me convencendo que parte expressiva dos
dirigentes do PT não tinha um projeto de sociedade para o Brasil. De
fato, havia quase que exclusivamente um projeto de poder. Daí, o meu
ceticismo quanto a um futuro governo Lula.
Além
dessa circunstância histórica, há um processo secular que não pode
ser negligenciado. Os céticos tomam a História do Brasil como referência
e pensam que não se deve esperar mudanças significativas durante o
governo Lula. Recupera-se, assim, a análise histórica que nos dá a
seguinte lição: "a política de conciliação, de transação,
teve como principal objetivo aplainar mais as divergências dos grupos
dominantes que conceder benefícios ao povo" (Rodrigues, 1965, p.
132). As medidas de política econômica no primeiro ano do governo
indicam que estamos entrando em mais um período de conciliação e
reforma.
Lamentavelmente,
o primeiro ano do governo Lula já mostrou que os céticos tinham razão.
Esse é o tema desse artigo. Para ilustrar o argumento, trato de
quatro temas específicos: ajuste externo, política externa, reformas
e causas dos erros. E na parte final apresenta-se uma síntese da análise.
1.
Ajuste externo duvidoso
O
governo Lula tem se comprometido com a ampliação das exportações,
não somente como um fator gerador dos dólares tão necessários ao
fechamento das contas externas, mas também como uma fonte de
crescimento da produção e do emprego. Entretanto, as restrições ao
crescimento das exportações brasileiras no curto e médio prazos são
enormes e, muito provavelmente, crescentes. Pela lado da demanda, deve-se
mencionar não somente o quadro de recessão internacional, como também
os indícios de uma nova onda protecionista no sistema mundial de comércio.
Pelo lado da oferta, deve-se chamar atenção para o fato de que a
perda de competitividade internacional dos produtos manufaturados
brasileiros ao longo dos últimos anos deve-se, em grande medida, à
ineficiência sistêmica da economia brasileira. O desmonte do sistema
nacional de inovações, a desnacionalização, as privatizações
(que encareceram o insumos e provocaram ou agravaram os gargalos), as
taxas medíocres de crescimento da renda (que reduziram os ganhos de
escala) e os níveis medíocres de investimento (baixa modernização)
provocaram a fragilização do aparelho produtivo que, por seu turno,
levou à perda de competitividade internacional.
Não
há dúvida que a capacidade de competição de produtos manufaturados
brasileiros no mercado internacional, pelo lado da oferta, é limitada
tendo em vista os problemas estruturais. Esses problemas não serão
solucionados no curto e médio prazos. Assim, dificilmente pode-se
esperar um aumento expressivo das exportações brasileiras de
manufaturados no futuro próximo. Esse argumento é ainda mais
evidente se o governo Lula resolver uma réplica do Plano Real e
procurar usar a taxa de câmbio (apreciação) como um instrumento
central de combate à inflação. Com relação às commodities,
a queda dos preços internacionais (provocada pelo excesso de oferta e
pelo reduzido dinamismo da demanda) configuram cenários desfavoráveis,
principalmente, para as commodities agrícolas. Nesse sentido,
maiores incentivos às exportações podem significar maior redução
dos preços internacionais dos produtos brasileiros e, possivelmente,
uma queda na receita de exportação em dólares. Isto é, quanto mais
inelástica for a demanda pelas exportações brasileiras, o país
exporta uma maior quantidade a preços menores de tal forma que a
receita em dólares reduz-se.
Ao
longo de 2003 algumas commodities exportadas pelo Brasil (por exemplo,
soja) tiveram aumento de preço. Esse fato reflete o comportamento
altamente volátil dos preços das commodities (principalmente, soja)
e não garante uma trajetória sustentável para as exportações
brasileiras.
A
substituição de importações, por seu turno, poderá ter um impacto
positivo sobre a balança comercial, porém, isso não é evidente. A
substituição de importações pode ocorrer, inclusive, em detrimento
do aumento das exportações via, por exemplo, aumento da inflação.
Há, ainda, enormes gargalos na estrutura produtiva brasileira que
fazem com que, no curto e médio prazos, a substituição de importações
poderá provocar efeitos negativos sobre o balanço de pagamentos (por
exemplo, maior importação de bens de capital e produtos intermediários).
A
substituição de importações terá um efeito negativo sobre o
processo inflacionário e, ademais, envolverá, uma transferência de
renda dos consumidores para os produtores (isto é, dos trabalhadores
e dos pobres para os produtores e os ricos). Deve-se notar, ainda, que
devido ao desmonte do aparelho produtivo nacional é provável que no
curto e médio prazos o processo de substituição de importações não
tenha impacto significativo sobre o investimento e a geração de
emprego. No curto e médio prazos, é improvável que haja aumentos
expressivos dos investimentos orientados para a substituição de
importações. Se ocorrerem, esses investimentos tenderão a ter
impacto sobre a renda e a produção somente no médio e longo prazos.
Ainda
com relação a substituição de importações, há duas perguntas
importantes: Até que ponto o governo Lula permitirá a transferência
de renda dos consumidores para os produtores? E, como a sociedade
reagirá ao aumento de preços e à piora na qualidade dos produtos
decorrentes da substituição de importações?
O
aumento das exportações e a substituição de importações são as
“peças de menor resistência” quando se trata de enfrentar os
problemas externos. Conforme mencionado, o crescimento dinâmico e
sustentável das exportações é algo muito duvidoso no futuro próximo,
enquanto a substituição de importantes tem importantes "trade-offs".
O ajuste externo lento, baseado no saldo da balança comercial de bens,
é a estratégia de menor resistência, mas tem impacto duvidoso.
Neste sentido, não há dúvida que em algum momento no futuro não
muito distante, Lula terá que apelar para os controles diretos,
inclusive, sobre o movimento internacional de capitais. A menos,
naturalmente, que ele opte por um crescimento econômico ainda mais
medíocre. Nesse caso, é improvável que a popularidade de Lula
permaneça em níveis elevados, mesmo que a taxa de inflação fique
em um dígito. Mais grave ainda, é a deterioração das expectativas
dos agentes econômicos e o aumento da descrença e desesperança do
povo.
2.
Política externa: paparrotadas
Há
cerca de vinte anos perguntei a um experiente embaixador indiano o que
ele pensava da diplomacia brasileira. E ele respondeu: respeito
qualificado. Para quem não entende "diplomatiquês",
essa expressão tem muitos equivalentes, inclusive, desqualificações
pesadas e impublicáveis. Esse embaixador havia participado de inúmeras
negociações internacionais ao lado de diplomatas brasileiros e a sua
desconfiança derivava de dois aspectos: a vulnerabilidade externa da
economia e o despreparo dos diplomatas do Brasil. O fato é que havia
(e continua havendo) um forte contraste entre a situação e o poder
de negociação internacional da Índia, país com baixa
vulnerabilidade externa, e o Brasil.
Naquela
ocasião, discutia-se a abertura de uma nova rodada de negociações
multilaterais no âmbito do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio),
antecessor da OMC (Organização Mundial do Comércio). O maior
conflito era a inclusão, exigida pelo governo dos Estados Unidos, dos
temas de serviços, propriedade intelectual e investimento externo
direto na nova rodada de negociações. Um grupo de países liderados
pela Índia e pelo Brasil resistia à inclusão de novos temas.
Encurtando a história, o Brasil encontrava-se mergulhado na crise da
dívida externa e a liberação de recursos de créditos do Eximbank
dos Estados Unidos amoleceram a posição inicial do governo
brasileiro. Enquanto a Índia já tinha pronto inúmeros estudos sobre
o impacto dos novos temas e se preparado para as negociações, a
diplomacia brasileira mostrava-se completamente inerte e despreparada
para as negociações. Em síntese, a Índia terminou praticamente
sozinha na liderança da resistência e foi finalmente derrotada pelo
rolo compressor dos Estados Unidos e da Europa.
A
história parece que se repete mais uma vez. Depois de toda reunião
do GATT/OMC a diplomacia brasileira retorna "arrotando"
grandes vitórias. Na realidade, não passa de lorotagem diplomática,
puro exercício de propaganda e marketing. Para aqueles que pensavam
que no governo Lula as coisas seriam diferentes, houve mais uma
frustração.
Na
reunião de Cancún o Brasil, Índia e outros países reformataram o
antigo grupo de Cairns, que representava os principais produtores agrícolas.
Rebatizado com o nome de G-20, G-21 ou G-22 ou qualquer coisa do gênero,
esse grupo de países focou sua estratégia na obtenção de maiores
compromissos quanto ao comércio mundial de produtos agrícolas. Esses
compromissos incluem temas como a concessão de incentivos e subsídios
à produção de produtos agrícolas, os estímulos à exportação e
as restrições à importação.
Vejamos,
agora, os fatos. Como, praticamente toda organização multilateral, a
OMC é uma organização cujo processo de tomada de decisão depende,
em grande medida, do consenso existente entre os Estados Unidos e a
União Européia. Isso não impede, naturalmente, que concessões
marginais sejam feitas com o intuito de cooptar outros países. O
custo de cooptação varia inversamente com a vulnerabilidade externa
de cada país. A Índia e a China, por exemplo, têm grande capacidade
de resistência a pressões, fatores desestabilizadores e choques
externos provenientes dos Estados Unidos, da Europa e do resto do
mundo. O Brasil, por outro lado, é um país extremamente frágil e,
portanto, o custo de cooptação da diplomacia brasileira é baixo.
A
vulnerabilidade externa do Brasil é hoje maior do que há vinte anos.
Atualmente, o Brasil recebe o "auxílio-funeral" do FMI que,
como todos sabem, é um instrumento de política econômica externa do
governo dos Estados Unidos. Ademais, cerca de 40% do famigerado superávit
da balança comercial do Brasil depende das compras estadunidenses, o
que envolve grande dependência bilateral da economia brasileira.
No
que se refere ao FMI, a "novidade" do governo Lula parece
ser a introdução de condicionalidades sociais ou, então, a redução
das restrições fiscais tendo em vista determinadas metas sociais.
Isso é pura lorota, por duas razões. Em primeiro lugar, as absurdas
metas de superávit (arrocho) fiscal do acordo feito por Lula com o
FMI não precisavam ser tão elevadas, como mostrou a experiência
argentina recente. A meta de superávit fiscal de Lula foi de 4,25%,
enquanto a de Kirchner foi de 3,0%. É tolice colocar um superávit
elevadíssimo, para depois ter que pedir "perdão" ou
afrouxamento para se fazer gastos sociais. Em segundo lugar, a política
de introduzir políticas sociais nos acordos do FMI é uma iniciativa
do próprio Fundo, que surgiu em 1999 após as pressões dos países
asiáticos. Essa iniciativa tem como objetivo legitimar e obter apoio
para os programas de ajuste do FMI (Carvalho, 2003). Dessa forma, por
trás de mais uma lorotagem de propaganda, Lula está fazendo o jogo
do FMI de desregulamentação e liberalização, que impedem a
retomada do desenvolvimento.
Em
Cancún, o governo Lula manteve a mesma orientação do governo FHC ao
focar no livre-cambismo agrícola ou um "nacionalismo de
fazendeiro" (Boito Jr., 2003). O fato é que essa estratégia de
negociação comercial centrada na liberalização dos produtos agrícolas
atende, em grande medida, aos interesses das empresas transnacionais
do agronegócio, que controlam parte expressiva das exportações
brasileiras. A liberalização dos transgênicos e o foco no agronegócio
exportador representam a manutenção de estruturas agrícola e agrária
retrógradas. Como disse dom Pedro Casaldáliga, "se investimos
nas monoculturas, por causa da obsessão exportadora e da dívida
externa, estamos perdidos. Em nossa região estamos ameaçados pelas
monoculturas de soja e algodão. São duas culturas deletérias, que
acabam com a terra, os rios e a saúde dos agricultores" (Casaldáliga,
2003).
E,
da mesma forma que outros países em desenvolvimento, marcados por
forte vulnerabilidade externa e que aceitaram fazer concessões
iniciais, o Brasil também se prontificou a afrouxar com relação ao
polêmico tema de compras governamentais, contrariamente à Índia.
Assim, a posição do Brasil em Cancún deve ser vista com ceticismo,
pois no contexto da realpolitik o poder de barganha de qualquer país
não depende da "garganta" mas de fatos concretos.
O
fato é que o Brasil continua acocorado na arena internacional, com
seu comércio internacional dependente de produtos agrícolas, passivo
externo altíssimo e divida enorme com o FMI. E mais, o processo de
ajuste externo (o superávit comercial) depende da boa vontade de
parceiros importantes como os Estados Unidos. Não se esqueçam jamais
que o anúncio do nome do Presidente do Banco Central do governo Lula
foi feito em Washington, após uma visita ao governo dos EUA. Isso
tudo expressa vulnerabilidade e submissão. E não me venham, mais uma
vez, com paparrotadas. No exercício do poder, o distanciamento entre
o discurso de Lula e a realidade só merece mesmo é respeito
qualificado.
3.
Reformas: conciliação uma vez mais
A
reforma da Previdência Social originalmente apresentada por Lula era
claramente concentradora de renda e riqueza, além de provocar maior
fragilização do Estado e montar um bomba de efeito retardado com os
fundos de pensão complementar. Lula será responsável por uma maior
desigualdade em decorrência da redução da renda pessoal disponível
do servidor público e seus pensionistas.
A
efetiva mudança histórica exige reformas que tenham três eixos
estruturantes: moralização, racionalização e distribuição. O
grande desafio consiste em definir o equilíbrio e o foco envolvendo
esses eixos. Há diferentes visões quanto ao foco das reformas.
Os
conservadores concentram-se no eixo da moralização. A ausência de
um projeto de transformação assentado em valores e ideais sólidos
resulta em medidas de grande efeito mediático, isto é, muita
alegoria e pouco enredo. Vale lembrar o discurso pseudo-moralista de
Collor contra os marajás do serviço público (retomado por Lula) e o
argumento de que a CPMF deve ser mantida para fins de controle. O
casamento do moralismo com um fiscalismo tosco marca ainda mais a face
conservadora desse tipo de reforma.
Os
liberais, por seu turno, focam na racionalização do sistema qualquer
que seja a reforma. No que se refere à tributação, os liberais
centram a atenção na afamada desoneração da produção. Por trás
de um pseudo discurso tecnocrático esconde-se a manutenção de
estruturas marcadas por desigualdade e injustiça. Defende-se, dessa
forma, os interesses da elite econômica por meio da manutenção de
sistemas que precisam ser "aperfeiçoados". As propostas de
reforma tributária provenientes de órgãos representativos do
empresariado têm esse viés. Por exemplo, quando CNI, IEDI, FIESP et
caterva discutem a questão tributária, os empresários estão,
de fato, querendo redução da carga tributária e menor
progressividade.
Há,
por fim, aqueles que estão profundamente engajados em mudanças e
rupturas históricas. Esses são os verdadeiros reformadores. Para
eles a ênfase das reformas deve ser o da distribuição de riqueza,
renda, poder e projeção social. Governantes engajados em mudanças
históricas também promovem reformas tributárias com foco na
distribuição de riqueza e renda. O fundamental, nesse caso, é o
princípio da progressividade acoplado ao princípio de que os
rendimentos do trabalho tenham tributação inferior ao do capital. E
mais, é necessário uma firme implementação de impostos sobre o
estoque de riqueza. Para isso, não basta mudanças na legislação
que não são acompanhadas pelo fortalecimento do aparelho
fiscalizador e repressor do Estado. A "lorota" tributária
do ITR é um bom exemplo. No Brasil não é possível uma tributação
séria sobre grandes fortunas se continuar o desmonte do aparelho
fiscalizador.
A
reforma tributária focada na distribuição também define mecanismos
automáticos de correção da tabela do IRPF. O aumento da
progressividade do IRPF e do IRPJ deve ser peça fundamental de uma
verdadeira reforma tributária. O mecanismo de juro sobre capital próprio
(o famigerado "juros pela TJLP") deveria ser eliminado, pois
reduz significativamente a carga tributária do capitalista.
A
história das reformas no Brasil tem sido a eterna luta entre
conservadores, liberais e reformistas. Conservadores focam na moralização,
liberais na racionalização e reformadores na distribuição.
Infelizmente, o processo histórico brasileiro tem sido marcado pela
conciliação entre conservadores e liberais por meio de reforminhas
que tangenciam a questão fulcral da distribuição de riqueza, renda
e poder. Lula está propondo uma reforminha na área tributária.
As
reformas de Lula interessam à elite econômica brasileira e,
principalmente, aos grandes bancos. A proposta de reforma previdenciária
de Lula cria extraordinárias oportunidades de negócios para os
bancos via fundos de pensão complementar. A proposta de reforma
tributária está focada na racionalização, principalmente, quanto
ao pagamento do ICMS. Ela é pífia quanto ao seu efeito distributivo.
Por essas razões, o Congresso Nacional não é um fator impeditivo da
aprovação das reformas. Não se esqueçam, ainda, que Lula foi
esperto ao comprometer os governadores com as reformas
(principalmente, a tributária), o que garante um apoio importante.
4.
Os erros de Lula: causas
A
pesquisa CNI/Ibope mostrou que entre março e junho o governo sofreu
significativa perda de aprovação e confiança. Isto é grave. Há
determinantes concretos e imediatos como o aumento do desemprego e a
queda da renda real do trabalhador. Há também outros motivos como
aqueles refletidos na expressão "o medo venceu a esperança".
Em
março, para cada brasileiro que desaprovava o governo havia 5,8 que
aprovavam. Em junho essa proporção baixou para 3,9. Para cada cidadão
que não tinha confiança em Lula em março, havia 5 que tinham
confiança no novo presidente. Em junho essa relação caiu para 4. E,
para cada indivíduo que considerava o governo de Lula ruim/péssimo
em março, havia 7,3 que o consideravam ótimo/bom. Em junho, essa
relação diminuiu para 3,9. As quedas de aprovação, confiança e
avaliação foram de 33%, 20% e 47%, respectivamente. Essas quedas
relativas são muitos significativas pois ocorreram em curto período
e logo no início do governo. Não há como subestimá-las.
Há
fatos que justificam essa deterioração rápida. Comecemos pela
inconsistência macroeconômica. O governo persiste com uma taxa de
juros estratosférica quando as finanças públicas estão
completamente quebradas. O financiamento do passivo externo está
sendo feito, em grande medida, por capitais de curto prazo numa
economia marcada por enorme vulnerabilidade externa; bem como pelo
aprofundamento da recessão, num país com gravíssimos problemas
sociais. O fato é que os indicadores estão se deteriorando ou, então,
mostram uma melhora temporária, que não parece ser sustentável por
muito tempo. Ademais, Lula apresentou uma proposta de reforma
previdenciária que deverá aumentar a concentração de renda, pois,
afinal trata-se de tirar renda do servidor público para transferir
para os rentistas. A proposta de Lula é uma bomba de efeito retardado
na medida em que é previsível a quebra de fundos de pensão no
futuro não muito distante. Como se não bastasse, a proposta implicará
na maior fragilização do Estado brasileiro por meio da piora da
situação do servidor público. A timidez e pobreza da reforma tributária,
por seu turno, expressam o foco estreito da racionalização em
detrimento da distribuição de riqueza e renda. E, por fim, a área
social do governo não tem mostrado resultados, pois ao lado de pouco
enredo o que se observa é muita alegoria e autoridades reclamando de
falta de recursos.
A
pergunta, então, é a seguinte: Por que Lula erra? Há cinco hipóteses.
A primeira tem a ver diretamente com a pessoa do presidente. É a hipótese
"despreparado versus gênio político". Antes das
eleições, boa parte do bloco de poder considerava Lula despreparado
para o exercício da presidência da república. Depois de eleito,
muitos mudaram radicalmente de posição e já consideram Lula um gênio
político. Essa visão de banqueiros radicais e dos canalhocratas (aqueles
que apoiam sempre qualquer governo) não parece muito inteligente.
Muito provavelmente, da mesma forma que a grande maioria dos
presidentes brasileiros, Lula nem é despreparado, nem um gênio político.
Isso significa que, por um lado Lula não está errando por ignorância;
por outro, não há indícios de que ele tenha qualquer plano genial
de transição da continuidade plena para a ruptura histórica.
A
segunda hipótese trata da chamada "teoria do corner". O
argumento é que FHC teria deixado um conjunto de "bombas"
armadas que explodiriam já no início do governo Lula. Dentre essas
bombas estão o nível das reservas internacionais, a inflação, o
acordo com o FMI e o rombo das contas públicas. Esses problemas já
existiam (e, ainda existem) e Lula está fazendo mais do mesmo, que
fracassou. A política macroeconômica de Lula não soluciona os
problemas e, sim, provoca o agravamento da situação econômica e
social brasileira.
A
terceira hipótese refere-se ao problema da "correlação de forças".
O argumento é que existe um "centrão" (que na verdade, é
a direita organizada) no Congresso Nacional, que impediria propostas
de mudanças históricas. Isso, na realidade, é uma meia-verdade. Da
mesma forma que Lula arrastou os governadores para protocolar suas
propostas de reforminhas no Congresso, ele poderia ter feito uma
extraordinária mobilização popular para apresentar e aprovar
projetos de reformas históricas. Cabe lembrar que o capital-político
do presidente tende a ser mais elevado no início do mandato.
A
quarta hipótese trata dos "acordos" que teriam sido feitos
antes, durante e depois da campanha presidencial. A campanha foi cara
e, certamente, houve inúmeros acordos políticos - antigos adversários
transformaram-se em "neocompanheiros". No contexto da herança
trágica e da inabilidade de FHC na gestão da candidatura oficial,
bem como da mediocridade dos outros candidatos à presidência, Lula
foi o "atrator estranho", isto é, aquela variável que não
faz parte do sistema mas que exerce atração. Como resultado, é provável
que o custo da atração tenha sido muito alto.
As
perguntas que ficam são as seguintes: Quanto vale a entrada do
capital estrangeiro nos meios de comunicação quebrados
financeiramente? Quanto vale a reforma previdenciária que força os
servidores públicos a aderirem aos fundos de pensão complementar?
Quanto vale a ausência de controles sobre os fluxos internacionais de
capital? Quanto vale uma reforminha tributária que negligencia a
distribuição de renda e riqueza? Quanto valem as indicações de próceres
da República e seus apadrinhados para cargos públicos? Quanto vale a
aprovação do plantio de soja transgênica?
A
quinta e última hipótese é o "húbris" presidencial.
Voltamos aqui à pessoa do presidente da República. Excesso de
orgulho e autoconfiança seriam partes da subjetividade. No que se
refere à objetividade, o argumento é que, tendo em vista a ânsia de
poder, a função-objetivo de Lula teria uma única variável:
governabilidade. É o poder pelo poder. Lula não seria o primeiro e
nem o último. Muito pelo contrário, para se manter no poder a
qualquer custo ele seguiria a trajetória histórica brasileira de
conciliação e reforminhas.
Como
dizem os cientistas, não há evidência empírica conclusiva a
respeito de qualquer uma dessas hipóteses. Pode ocorrer, inclusive,
que a explicação final deriva de uma combinação (não
necessariamente linear e digna) dessas hipóteses.
5.
Conclusão
A
avaliação do primeiro ano do governo Lula é negativa. Por um lado,
a área social mostra ausência de coordenação e, excluindo o
programa Fome Zero, parece sem iniciativa. A área econômica está
entre o lamentável e o ridículo. Os "canalhocratas" de
sempre (que passaram anos elogiando o Fernando Henrique) têm elogiado
o governo Lula, mas os indicadores usados (preço de ações na bolsa,
risco-país e cotação do dólar) são muito frágeis e não
convincentes. Não há evidência de tendência sustentável de
melhoria da economia brasileira. Muito pelo contrário. O governo não
tem feito nada de significativo, por exemplo, para reduzir a
vulnerabilidade externa e o desemprego. A dívida pública continua
fora de controle em decorrência dos elevados juros e do seu
componente dolarizado. A política fiscal é autofágica com o atual nível
de juros.
É
erro técnico imaginar que oscilações abruptas no curto prazo de
indicadores como taxa de câmbio, preço de títulos públicos no
mercado internacional e índice de bolsa de valores representem uma
firme tendência de melhora. Os fundamentos da economia brasileira
continuam muito frágeis. Não houve uma mudança significativa no
contexto internacional e nas condições internas da economia
brasileira nos últimos seis meses. Isso significa que o Brasil
continua na trajetória de instabilidade e crise. Há forte evidência
de aprofundamento do quadro recessivo e de aumento do desemprego. A
vulnerabilidade externa da economia brasileira não se alterou na sua
essência. O ajuste das contas externas está focado na expansão das
exportações de produtos agrícolas e na recessão e, como conseqüência,
temos o superávit da balança comercial. Esse superávit não é uma
solução e, sim, um problema. Ele só se sustenta numa situação
recessiva tendo em vista a conjuntura internacional desfavorável e o
desmonte do aparelho produtivo nacional.
A
conta de capital, por seu turno, está se beneficiando de capitais de
curto prazo atraídos por juros altos. Enquanto isso, o passivo
externo continua sendo a nossa principal fonte de desequilíbrios. As
contas públicas continuam muito fragilizadas na medida em que o
governo mantém os juros altos. A proposta pífia de reforma tributária
dificulta ainda mais o ajuste nas finanças públicas. Em síntese, a
próxima crise cambial é só uma questão de tempo.
Os
economistas brasileiros reunidos, em Brasília, entre os dias 10 e 13
de setembro de 2003, no XV Congresso Brasileiro de Economistas,
aprovaram a “Carta de Brasília”, com a posição dos
profissionais sobre os rumos de uma política econômica. Essa Carta
apresenta uma síntese objetiva das críticas existentes e vale a pena
reproduzir seus principais trechos:
1.
Estabilizar primeiro e aumentar o emprego depois parece ser a orientação
do governo Lula nos seus primeiros meses. Entretanto, juro alto,
arrocho fiscal e apreciação cambial não garantem a queda sustentável
da inflação. Essas políticas, certamente, reduzem a taxa de
crescimento econômico, aumentam o desemprego e a exclusão social.
Assim, o Governo comete um erro estratégico ao condicionar a retomada
do desenvolvimento à prévia consecução dos equilíbrios, cambial,
fiscal e monetário, dado que estes só poderão ser obtidos, de forma
segura e permanente, no contexto do crescimento acelerado da economia.
2.
A mudança do comando político e econômico do país trouxe grandes
esperanças que, contudo, não se estão realizando. O novo Governo
absorveu a visão curtoprazista do seu antecessor, priorizando os
equilíbrios cambial, fiscal e monetário em detrimento da imediata
retomada do desenvolvimento, sem perceber que esses desequilíbrios só
serão definitivamente eliminados por meio do crescimento acelerado do
PIB, com seus corolários de criação de capacidade exportadora,
substituição competitiva de importações, aumento da receita
fiscal, redução do déficit público e da taxa de juro. Nossos gravíssimos
problemas atuais só serão eliminados quando o neoliberalismo, que
vitimou o Brasil, for substituído pela visão desenvolvimentista.
3.
O governo mobilizou sua capacidade de comando político para garantir
as reformas tributária e previdenciária que, levadas adiante em
conjuntura econômica e política desfavorável, não deverão
corrigir os erros e introduzir aperfeiçoamentos de que o País
necessita. E mesmo que as reformas tributária e previdenciária
obedecessem rigorosamente às características desejáveis, elas pouco
contribuíram para o atendimento da grande aspiração nacional de
pronta retomada do desenvolvimento econômico e social. Portanto,
novamente aqui, as prioridades não foram corretamente definidas
4.
Não é possível continuar iludindo-se com indicadores
circunstanciais e esconder, por mais tempo, a gravidade da situação
política, econômica e social do Brasil. Admitindo a situação o
novo Governo terá dado o primeiro passo para abandonar o
neoliberalismo dos seus antecessores e ingressar em uma trajetória de
desenvolvimento que o País deseja e de acordo com os compromissos
assumidos com seu eleitorado. Urge, portanto, a retomada do
desenvolvimento econômico. Torna-se imprescindível recolocar o país
nos trilhos do desenvolvimento.
O
Brasil continua um "vagão descarrilhado" e a política
macroeconômica e as reformas de Lula indicam que é crescente a
probabilidade de fracasso. A herança de Lula pode ser ainda pior do
que a de FHC (Gonçalves, 2003). Devemos nos preocupar com a fragilização
do movimento social (via cooptação), a fragmentação do movimento
sindical (via neopeleguismo), a descrença ainda maior quanto à
viabilidade do Brasil como nação e com o avanço insuportável do
desemprego, que poderá provocar uma crise social. Será que somente a
eclosão da crise social, precedida de grave crise cambial, provocará
um giro de 180 graus na direção das políticas governamentais?
Deve-se
notar que uma taxa de crescimento econômico da ordem de 0,5-1,0%
significa que Lula é responsável pelo seguinte fato: mais de 1 milhão
de pessoas no contingente de desempregados em 2003. Na sua estratégia
de conciliação e reforma e de um projeto de "poder pelo
poder", juntamente com seus "neocompanheiros" do
agronegócio e da banca internacional, Lula dirige um governo sem rumo
e sem prumo!
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