Lula Ano I
Emir Sader
Outro Brasil
3 de dezembro de 2003
1. Com que critério se
deve julgar o governo Lula no seu primeiro ano? Duas questões se
colocam inicialmente: com que critério comparativo se deve julgar o
governo do PT? E como julgar o primeiro ano de um governo com esse caráter?
2. Os governos com que
seria possível comparar o governo do PT se deram em outro período
histórico: seja os governos da Frente Popular – na Espanha, na França,
no Chile ou nas teses de Dimitrov no VII Congresso da Internacional
Comunista, nos anos 30 -, ou o da Unidade Popular no Chile, nos anos
70. No caso dos primeiros, depois de a Internacional Comunista
constatar – prinicipalmente a partir das vitórias de Hitler na
Alemanha e de Mussolini na Itália – a virada negativa da relação
de forças no plano internacional, propunha-se uma frente ampla, de
caráter defensivo, com todas as forças anti- fascistas – democráticas
– na luta de resistência, que se materializou nos três governos
mencionados de Frente Popular. Os partidos comunistas renunciavam à
sua pretensão de ser hegemônicos nas alianças, com o objetivo de
deter a ofensiva de extrema direita, no que foi caracterizado como uma
contrarrevolução de massas. Vivia-se um período de defensiva –
talvez comparável com o atual -, mas com adversários muito distintos
– o fascismo em todas suas variantes -, que exigiam formas distintas
de luta. O governo de Salvador Allende, fundado na aliança entre os
partidos socialista e comunista, pretendia, ao contrário, a
transformação do capitalismo chileno no socialismo.
O governo de Lula surge
num marco geral bastante diferente, já não no cenário internacional
da bipolaridade entre blocos capitalista e socialista, mas naquele
marcado pela hegemonia norte-americana do ponto de vista político e
do neoliberalismo, como ideologia e política econômica predominante.
No lugar dos objetivos anticapitalistas e antimperialistas, coloca-se
o objetivo da luta contra o neoliberalismo. É neste marco que se
insere o governo do PT, no desafio de sair do modelo neoliberal, que
devastou o Brasil – junto com a quase totalidade do continente
latinoamericano.
Nesse sentido, se trata
de um governo com novas características, que tem que ser julgado
nessa ótica: em que medida logra sair do modelo neoliberal?
3. Nessa ótica o
primeiro ano do governo Lula tem que ser julgado negativamente. A política
econômica herdada do governo anterior foi mantida e aprofundada, com
a intensificação do ajuste fiscal, que congelou recursos em função
da obtenção de superávits fiscais superiores aos solicitados pelo
FMI, com o objetivo anunciado de diminuir a fragilidade externa da
economia.
No entanto, as taxas de
juros mantidas elevadas aumentaram o endividamento, levaram o governo
a renovar os acordos com o FMI e assim elevaram a fragilidade da
economia.
4. O preço pago por
essa orientação foi que o objetivo central do governo Lula – a
prioridade do social – não foi obtida. Ao contrário, enquanto os
índices financeiros em geral melhoraram, todos os índices sociais
pioraram. Pode-se sintetizar essa trajetória, dizendo que
literalmente o governo assumiu a administração da crise herdada, sem
avançar para sua superação positiva mas, ao contrário, dando
seguimento às orientações do governo anterior, cuja política
seguiu fielmente as diretrizes do FMI.
5. Assim, no seu
primeiro ano o governo Lula se revelou fortemente conservador:
conservador na política econômica, conservador nas duas reformas –
a previdenciária e a tributária -, nos moldes recomendados pelo
Banco Mundial na sua segunda geração de reformas e conservador nos
discursos de Lula – desmobilizadores, críticos dos movimentos
sociais, sem menção do capital financeiro e do neoliberalismo.
6. Como foi possível
que o PT, partido nascido do sindicalismo de base, dos movimentos
sociais, da luta contra o neoliberalismo, possa assumir esse papel? As
“explicações” sobre o caráter de perversão que o poder
operaria sobre todos que chegam até ele são uma explicação
totalmente insuficiente, até porque essas viradas, em partidos de
bases populares, não se dão da noite para o dia, mas são o
resultado de um processo – muitas vezes longo no tempo – de
transformações sociais, políticas e ideológicas. Foi certamente o
caso do PT e de Lula.
Especialmente desde
1994, o PT passou por um processo sistemático de transformação, com
alteração de sua composição interna, de sua relação com os
movimentos sociais, com a institucionalidade e com temas centrais para
a definição estratégica do partido. Foi o balanço feito pela direção
do partido da derrota contra FHC, ue tomou o tema do ajuste fiscal
como central, contra a prioridade das políticas sociais pregada pelo
PT. A derrota foi traumática não apenas porque Lula era amplo
favorito no início da campanha e teve que amargar uma grande virada
contra ele, como ela se deu em torno de um tema subestimado pelo
partido e em relação ao qual o PT nunca conseguiu um acerto de
contas. O tema, expulso artificialmente pela porta – porque
desconhecido -, retornou pela janela, até que, ainda privilegiando o
social na campanha eleitoral, o primeiro ano do governo retomou a
prioridade do ajuste fiscal como central em oposição ao social.
Mas o principal foi a
reinserção do PT na institucionalidade, com esta ganhando relevância
como o cenário privilegiado de atuação do partido, em detrimento de
sua relação com os movimentos sociais. Paralelamente Lula centrou
sua atuação no Instituto da Cidadania, distanciando-se até mesmo da
vida interna do PT. O partido, enquanto isso, alterava sua composição
interna: os dados do último Congresso Nacional do PT, realizado em
dezembro de 2001 em Recife, apresentaram uma participação dos
delegados em que cerca de ¾ deles não estavam vinculados a
movimentos de base, mas estavam integrados em cargos institucionais:
bancadas de parlamentares, prefeituras, governos estaduais, estruturas
partidárias, etc.. A média de idade apresentava um significativo
aumento e os setores médios predominavam.
Os setores populares
– jovens pobres da periferia das grandes cidades, sem terra,
movimento negro, entre outros – passaram a ter protagonismo secundário
ou mesmo irrisório na vida do partido.
7. Mas a principal
transformação política e ideológica se deu no transcorrer da
campanha presidencial de 2002. No início, a aliança com setores do
grande empresariado – representado pela escolha do vice-presidente
da chapa – revelava o papel protagônico que teria o empresariado
produtivo, ainda mais aquele voltado para o mercado interno, como era
o caso de José Alencar – empresário têxtil. Uma leitura mais
favorável poderia inclusive supor que se tratava de privilegiar um
dos setores que mais emprega mão-deobra e que tem no mercado interno
de massas um setor fundamental como destino de sua produção.
Fosse assim ou não,
projetava-se no programa original do Instituto da Cidadania uma –
ainda que tênue – oposição entre capital produtivo – incluindo
o grande capital – e o capital especulativo, com um tom que
recordava os programas desenvolvimentistas de períodos anteriores.
Ao longo da campanha,
conforme se deu um forte ataque especulativo, vinculado diretamente às
possibilidades de vitória de Lula, enquanto este não conseguia
superar de forma clara o patamar histórico do PT de cerca de 30% dos
votos e ficava claro que o consenso era favorável a uma mudança, com
prioridade do social, mas que não afetasse a estabilidade monetária
– expressa mais claramente na candidatura de Ciro Gomes, que chegou
a liderar as pesquisas -, a candidatura de Lula se somou a ela. Isto
se deu sob duas formas: a Carta aos Brasileiros, em que se afirmava o
respeito aos compromissos assumidos pelo governo FHC, incluindo a
aceitação dos termos do novo acordo com o FMI, e a linha de
“Lulinha, paz e amor”, em que se tratava de aplainar as arestas da
imagem conflitiva – e combativa – de Lula.
Naquele momento mudou o
caráter da candidatura de Lula, com uma aliança explícita com o
capital financeiro e os organismos internacionais que zelam pelos
interesses desse capital, seguindo os termos daquela Carta, sob cuja
orientação se deu o primeiro ano do governo Lula, em que a equipe
econômica – ministros da fazenda, do comércio exterior e do
desenvolvimento agrária, mais presidente do Banco Central – ocupa o
centro estratégico do governo, desempenha o papel de formulador
estratégico, com poder de veto sobre as decisões fundamentais do
governo.
8. Esse perfil fez com
que o governo Lula prometesse retomada do desenvolvimento e prioridade
para o social, mas visse esses dois objetivos inviabilizados pelos
critérios da equipe econômica de manter superávit primário
superior ao exigido pelo FMI e administrar de forma conservadora e
gradualista a baixa da taxa de juros – a ponto que esta diminua de
25 a 17,5% - apenas 30% - em meio a uma brutal recessão. O governo
Lula enfrenta o desafio da quadratura da roda: retomar o
desenvolvimento, redistribuir renda, criar empregos e enfrentar os
graves problemas sociais brasileiros, sem sair do modelo neoliberal.
Conseguirá triunfar onde fracassaram De la Rua, Toledo, Fox, Battle e
o próprio FHC?
Nada garante isso, nem
parece que o governo se proponha a mudar o modelo, fazendo apenas
adequações micro econômicas, no mesmo marco da política herdada e
aprofundada pela equipe econômica.
9. Que perspectivas se
pode prever para o governo Lula em base a esse primeiro ano? A
perspectiva de projeção da política atual, com leves alterações,
conforme o desempenha produtivo seja menos medíocre que aquele próximo
de zero – 0,4%, menos 1,5% da expansão demográfica, portanto,
negativo em renda per cápita em mais de 1% -, daria uma configuração
definitiva ao governo Lula como administrador da hegemonia do capital
financeiro e o levaria ao fracasso, tanto como governo de esquerda,
assim como continuador das políticas – esgotadas – do governo FHC.
O balanço esboçado pelo governo leva a esta direção e permite um
diagnóstico definitivamente negativo do mandato do PT na presidência
da república.
O governo, esquizofrênico
na sua composição, não foi polarizado internamente pelos ministros
da área social, fracos para poder promover um debate contra uma política
econômico-financeira que inviabilizou suas pastas. Ocupados por
ministros do PT – vários deles enfraquecidos por derrotas
eleitorais - , em lugar de ser garantia da luta pela sua predominância
dentro do governo, foram instrumentos da exigência de solidariedade
com as orientações centrais do governo – definidas nos marcos do
duro ajuste fiscal, que promete persistir em 2004.
A alternativa de
polarização nessas condições, terminou se dando por uma via menos
esperada – a política externa. A polarização entre a prioridade
da Alca ou do Mercosul, frente às pressões norte-americanas e ao
vazio de liderança dos EUA na região, com o esgotamento do modelo
neoliberal e com a nova política belicista e mais abertamente
protecionista do governo Bush, permitiram a projeção externa de uma
política de soberania no plano internacional. O sucesso da política
de reorganização e ampliação do Mercosul, ancorada na aliança
estratégica com o governo argentino e o lançamento do Grupo dos 20,
que conseguiu frear os planos norteamericanos e europeu na OMC, revela
o potencial de liderança externa do Brasil tanto na América Latina
quanto no Sul do mundo.
Inicialmente a equipe
econômica, diante do endurecimento das posições dos países
centrais do capitalismo, em Cancun, teve que se somar às posições
do Itamaraty, mas logo participou ativamente na maior campanha feita
até agora na imprensa contra o governo, apoiada no governo
norte-americano e nos setores de imprensa que se identificam com as
políticas de Washington, do FMI, da OMC e do Banco Mundial, com um
papel bem caracterizado na imprensa como de “quinta colunas” das
posições internacionais do governo brasileiro.
A diferença entre a
prioridade do Mercosul e da Alca é a que tem atualmente o potencial
mais claro de polarização política e ideológica dentro do governo,
podendo levar a definições mais claras no transcurso do próximo
ano. Considerando que o governo Bush não fará nenhuma concessão
significativa até as eleições presidências de novembro de 2004 –
ao contrário, tendendo a aumentar o protecionismo, com objetivos
eleitorais, como se evidencia nas medidas contra as exportações
chinesas par ao mercado norte-americano e na aceitação por enquanto
da tese brasileira da Alca light -, o tema voltará com força no início
de 2005, quem quer que triunfe nas eleições norte-americanas.
Até
lá o Itamaraty e todos os setores interessados numa inserção
internacional soberana do Brasil, consciente que esta é uma condição
de uma política econômica centrada no mercado interno, voltada
prioritariamente para a integração regional, terão a possibilidade
de avançar na reorganização e ampliação do Mercosul. Chegará
assim um momento da verdade decisivo par ao governo brasileiro: a
manutenção da atual política econômica significa a necessidade
absoluta da Alca, nos termos que os EUA proponham, porque o papel do
comércio exterior – especialmente do agrobusiness – não permite
que se dispense qualquer fatia do maior mercado consumidor do mundo,
ainda mais com a perspectiva de prolongamento da recessão interna e
sem esperanças da distribuição de renda que possibilitasse uma
reanimação do consumo interno. A prioridade do Mercosul, ao contrário,
pode significar a indução para o interior do país da política de
privilégio dos mercados internos, com distribuição de renda, geração
de empregos, prioridade das políticas sociais. Desse dilema depende
hoje a possibilidade que o segundo ano do governo Lula não consolide
seu caminho conservador e projete uma alternativa de superação do
neoliberalismo, sobrevivente e central no primeiro ano do governo
Lula.
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