Brasil bajo Lula

 

Ponencia presentada al Encuentro de Revistas Marxistas de América Latina,

Montevideo, septiembre 2000

 

A luta pela terra no Brasil

Rubim Santos Leão de Aquino

1.A terra ficou nas mãos de poucos

Desde a conquista portuguesa no século XVI o modelo econômico imposto foi o de concentração da terra em benefício de uma minoria e excludente da maioria.

Com efeito, a adoção do sistema de sesmaria, embora limitasse a extensão da terra doada a uma légua de frente por três de fundos, jamais foi respeitado pelo colonizador.

O sesmeiro deveria professar a religião católica e dispor de capital suficiente para colocar a terra para produzir em um prazo de dois a cinco anos.

Findo esse prazo, a terra seria considerada devoluta e doada a quem a requeresse.

Entretanto, a grande propriedade rural continuou como uma das características básicas da economia brasileira, seja durante a fase do escravismo ou nas etapas capitalistas do Brasil.

A grande propriedade rural consolidou-se mais ainda com a Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850, que inviabilizou o acesso à propriedade da terra aos que não pertencessem às oligarquias rurais brasileiras.

A legislação então aprovada estabelecia que a posse de uma terra deixava de constituir uma base legal para o reconhecimento do direito de propriedade. Era necessário que somente um documento assinado por um juiz poderia fundamentar qualquer direito ao reconhecimento do direito de propriedade.

Desse modo nem os indígenas localizados em terras, que habitavam antes mesmo da chegada dos brancos, teriam qualquer direito se não houvessem feito petição ao juiz reivindicando direitos sobre as terras. Também afastava-se, do ponto de vista legal, a possibilidade dos imigrantes se tornarem proprietários. Somente após três anos de permanência no país e mediante requerimento à autoridade competente, teriam direitos à pequena propriedade rural em que viviam.

“Seguindo uma tradição exportadora de produtos primários, a economia brasileira optou mais uma vez pela monocultura, o que, no entanto, não pode ser entendido de forma absoluta. Sendo assim, o latifúndio não só dominou a paisagem rural do país, como teve, por necessidade, a proteção governamental para a sua expansão. Era de fundamental importância, portanto, a existência de mecanismos que viabilizassem a aquisição de empréstimos para o plantio, obtido tanto pela demarcação da propriedade fundiária pela Lei de Terra, quanto a partir da lei de hipoteca rural, que deu as devidas garantias para os financiadores.

Ao mesmo tempo, o modelo econômico que se estruturava no Brasil constituía um forte vínculo com o capital internacional. Diante da divisão internacional do trabalho, os países cuja estrutura interna se encontrava ainda arraigada às relações de produção de tipo colonial constituíam-se como fornecedores de matéria-prima, bem como consumidores de produtos industrializados. Essa última característica permitiu a penetração do capital estrangeiro no país através, principalmente, da importação de bens de capital para a lavoura cafeeira.

(...)A Lei de Terras foi um fator importante para a transformação da propriedade da terra segundo critérios capitalistas. Quando por exigência legal, então a partir de 1850, as terras não mais poderiam ser ocupadas como ocorria no regime de posse, ou doadas quando no sistema de sesmarias, mudava a forma de se adquirir uma propriedade no meio rural, bem como o seu caráter.

Foi introduzido, então, nas transações de aquisição de uma propriedade rural o valor monetário, ou seja, a terra passava a ser uma mercadoria, pois a utilização da moeda circulante para que se pudesse adquiri-la constituía um pressuposto básico: a terra tornava-se um meio comerciável, portanto, exigia-se a sua compra e não mais a doação ou posse.

Com essa transformação mudava também a mentalidade do proprietário rural. Quando a sua propriedade passou a representar um valor comerciável, alterou-se igualmente o símbolo de poder. Não era mais apenas a extensão da propriedade que representava a riqueza ou seu valor puro e simples, mas, entre outras coisas, a sua potencialidade comercial e produtiva.

Com a lei hipotecária de 24 de setembro de 1864, completava-se a inserção da terra no cenário comercial, pois dava aos grandes proprietários a condição necessária para aquisição de empréstimos para a expansão de suas lavouras e para tornar a sua terra produtiva, além de garantir os interesses dos seus financiadores.

A propriedade rural passava a ter não somente essa caraterística, mas, também, a de facilitar a aquisição de mão-de-obra, o que levou grandes fazendeiros a ficarem em profunda dependência dos traficantes de escravos. Assim, na segunda metade do século XIX, muitas dessas propriedades passaram para as mãos desses comerciantes, já que com o não pagamento das dívidas a hipoteca dava-lhes a aquisição daqueles bens fundiários.

Dessa forma, o latifúndio cafeeiro foi se organizando em bases capitalistas e por isso se fortalecendo dentro da estrutura econômica do país, pois viu a influência política desses latifundiários aumentar. Era, então, necessário ampliar essas bases, o que muitas vezes não ocorria conscientemente. Portanto, a ampliação dessas bases contribuiu mais adiante para a tentativa de superação de uma estrutura socioeconômica que tinha os seus dias contados. O desejo dos cafeicultores em aumentar os seus lucros levou-os a encontrar alternativas que superaram as que o modo de produção escravista brasileiro poderia fornecer, contudo, sem condições ainda de substituí-lo.” (AQUINO, RUBIM SANTOS LEÃO DE et alii, Sociedade Brasileira: uma História através dos movimentos sociais, Rio de Janeiro, Record, 1999, págs. 550 a 552).

Ainda que a Lei de Terras tivesse fixado serem as terras devolutas monopólio do Estado, a primeira Constituição Republicana, aprovada em 1891, determinou fossem as mesmas transferidas para o controle dos Estados. Com efeito, o Artigo 64 preceituava que as terras devolutas situadas em seus respectivos territórios pertenciam aos Estados. Desse modo, saíam do controle do Estado Nacional e ficavam nas mãos das oligarquias estaduais. Como estas dominavam os governos estaduais, muitas das terras devolutas foram incorporadas aos domínios dessas oligarquias e de poderosas empresas de colonização.

2.As fronteiras agrícolas pioneiras na década de 40

A partir de 1940 ocorreu uma visível expansão de fronteiras agrícolas pioneiras em terras virgens do Paraná, Mato Grosso, Goiás, Pará, onde a atividade econômica predominante tanto podia estar voltada para o cultivo da terra em pequena escala ou para a criação do gado em grande escala.

As novas diretrizes governamentais estavam ligadas à necessidade de incrementar processos produtivos necessários às mudanças sócio-econômicas, sobretudo nas regiões sudestes do país. Nelas, o incentivo à industrialização, paralelamente ao crescimento demográfico, particularmente nos centros urbanos, exigia novo padrão de desenvolvimento econômico. Em conseqüência, terras virgens precisavam ser ocupadas por fronteiras agrícolas produzindo para o mercado interno.

Essas fronteiras agrícolas atraíram forte fluxo migratório que se voltou para dinâmica produção agrícola. A abertura dessas regiões, rapidamente valorizadas, despertou a cobiça de grande empresas colonizadoras e de poderosos empresários rurais.

A violência rapidamente surgiu como caraterística marcante da luta de classes.

“Os camponeses reivindicam a terra com base em seu trabalho e na ocupação, sendo suas reclamações, entretanto, quase sempre contestadas pelos proprietários locais, pelos chefes políticos regionais, ou por empresários mais ou menos distantes. Os grandes proprietários e grandes companhias afirmam seus direitos sobre a terra contra as reivindicações dos camponeses, e tentam apropriar-se das terras por estes já ocupadas. É significativo que os direitos dos política e economicamente poderosos não impedirão, muito provavelmente, os camponeses de ocuparem a terra, mas irão por fim facilitar o processo de sua expulsão. Isto quer dizer, por exemplo, que um futuro pecuarista poderá se aproveitar do trabalho de limpeza do solo feito pelo camponês, para aí plantar pastos e criar rebanhos onde trabalhavam pessoas. Em geral, não é somente da terra que se apropriam, mas também do valor criado pelo trabalho do camponês no processo de ocupação.” (FOWERAKES, JOE, A luta pela terra, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pág. 43).

Esses camponeses das fronteiras agrícolas, em geral, eram posseiros, ou seja, indivíduos que trabalhavam e produziam em uma terra que não lhes pertenciam. Ou eram terras devolutas ou terras arrendadas.

Neste caso, o proprietário alugava a sua propriedade por um período de tempo relativamente curto. As condições contratuais variavam. Por vezes, havia a obrigatoriedade do posseiro entregar parte da produção. Havia casos de ficar obrigado a intercalar as áreas de cultivo de algodão ou milho com o plantio de capim para o gado do proprietário das terras, pois as terras seriam posteriormente utilizadas apenas pela pecuária.

No caso das terras devolutas a questão também eram complicadas do ponto de vista legal: desde a Lei de Terras, ficara estabelecido que a aquisição de terras somente poderia ser feita mediante compra.

Contra uns e outros, atuaram proprietários locais e grandes empresas econômicas que, associados ao capital nacional ou internacional, contando com a conivência de políticos, juizes, polícia e autoridades estaduais e federais. Recorrendo a jagunços e até mesmo às polícias militares, além do apoio de juizes e tabeliães corruptos, praticavam todo tipo de violência contra os posseiros e arrendatários; assassinatos, agressões físicas, estupros, destruição de colheitas, prisões, tornaram-se uma constante na vida desses trabalhadores do campo.

A propósito, a palavra jagunço embora variando no tempo e no espaço, pode ser entendida como sinônimo de capanga, valentão, brigão, bandido.

3. As lutas dos posseiros e arrendatários entre 1950 e 1964

Entre 1950 e 1964, ocorreu em diversos Estados do Brasil terrível conflito armado em que se defrontaram posseiros e proprietários de terras em um fenômeno pouco conhecido da sociedade brasileira.

Nesse contexto foi destacada a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCB), claramente influenciada pela vitória da Revolução Chinesa, em 1949.

É importante assinalar que o PCB fora colocado fora da lei desde 1947 e seus militantes, em geral, levavam uma vida clandestina.

Um pouco antes da conquista do poder pelo Partido Comunista Chinês, em outubro de 1949, na revista Problemas, de maio de 1949, Luís Carlos Prestes, Secretário Geral do PCB, escrevera um estudo sobre o caráter do caminho revolucionário no Brasil. Defendia a tese de que a luta deveria ser basicamente contra os Estados Unidos, em uma revolução democrático-burguesa, antilatifundiária e antiimperialista.

“A luta de nosso povo contra a exploração e a opressão crescentes, pelo progresso e a democracia é, antes de tudo, a luta pela independência nacional, contra o jogo colonizador do imperialismo americano. Mas é igualmente, a luta contra os restos feudais, contra as formas pré-capitalistas de exploração em que se baseia o imperialismo, adaptando-se aos seus interesses para colonizar o país e submeter nosso povo a uma exploração crescente e a uma opressão política cada dia mais vexatória e insuportável.”

Embasado nessas diretrizes revolucionárias, o PCB divulgou o Manifesto de Agosto de 1950 defendendo a criação da Frente Democrática de Libertação Nacional e a luta armada contra o Estado Burguês como o caminho a seguir:

“É o povo que luta porque não está disposto a ser reduzido à condição de escravo. Diante da violência dos dominadores, a violência das massas é inevitável e necessária, é um direito sagrado e o dever iniludível de todos os patriotas. É o caminho da luta e da ação, o caminho da revolução.”

“Para realizar essa tarefa histórica, saibamos organizar e unir nossas forças em ampla Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN), organização de luta e de ação em defesa do povo, com raízes nas fábricas e nas fazendas, nas escolas e repartições públicas, nos quartéis e nos navios, em todos os locais de trabalho, enfim, nos bairros das grandes cidades e nas aldeias e povoados para a luta.” in FALCÃO, JOÃO - O Partido Comunista que eu conheci (20 anos de clandestinidade), Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1980, pág. 388).

Em função das novas palavras de ordem, militantes foram deslocados para o campo, em áreas de conflitos já iniciados ou em vias de começar: Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Em alguns desses Estados, a militância comunista local recebeu orientação para se engajar em tarefas de organização dos movimentos de rebelião no campo visando assegurar a posse da terra, direitos sociais e até mesmo a reforma agrária.

Nesse sentido, elementos comunistas procuraram orientar a formação de sindicatos rurais e/ou associações rurais. No primeiro caso, os sindicatos rurais tinham sua atuação voltada para a filiação de trabalhadores rurais. Já as associações rurais reuniam meeiros, trabalhadores rurais, pequenos proprietários, posseiros em geral.

A luta armada processou-se de maneira desigual e quase sempre as autoridades foram coniventes ou se mostraram omissas diante da violência dos poderosos, ainda que, na verdade, a maioria lutasse pelo cumprimento de um direito constitucional. Com efeito, o Artigo 147 da Constituição de 1946 estabelecia que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá (...) promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”

Entretanto, o Artigo 145 da mesma Constituição rezava que “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.

Parágrafo único. A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.”

Entretanto, a divulgação das decisões do XX Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas da União Soviética, reunido em fevereiro de 1956, marcou verdadeira reviravolta no comunismo mundial, abalado por cisões nos partidos comunistas e por dissidências entre as sociedades comunistas. Além da condenação dos crimes cometidos sob o governo de Stalin (1928-1953) e de críticas ao culto da personalidade por constituir um desvio ideológico, proclamou-se a coexistência pacífica e a renúncia à luta armada como única via para os comunistas chegarem ao poder.

O PCB igualmente foi abalado pela invasão da Hungria por tropas soviéticas em outubro de 1956.

Devido a esses fatos, houve uma reformulação da linha política do PCB nos movimentos de luta armada no campo.

A reorientação das diretrizes pecebistas foram explicitadas na Declaração de Março de 1958. “Se o documento reconheceu o atraso da organização e das lutas camponesas naquela conjuntura, acabou propondo reivindicações ‘imediatas e viáveis’, evitando palavras de ordem mais radicais. Não levou em consideração que a falta de uma pregação de conteúdo mais avançado era, também, causa do atraso do movimento camponês. Além disso, a reforma agrária não aparecia nas ‘reivindicações viáveis’ e, mesmo quando a Declaração falou dela, na plataforma da frente, foi de forma genérica (‘entrega de títulos de propriedade’) sem tocar nem nas formas cooperativas e nem nos financiamentos dessas novas propriedades. E mais: ‘facilitar o acesso à terra (...) junto aos centros urbanos e vias de comunicação’ era não enfrentar o problema do latifúndio, diluindo o problema central da questão agrária no Brasil (...)” (FALCÃO, FREDERICO JOSÉ, Ilusões da Estratégia: o PCB do Apogeu à Crise do Stalinismo (1942-1961), Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1996, mimeografado págs. 119 e 120).

A reformulação das diretrizes a serem seguidas pelo PCB tiveram profunda influência sobre a luta que ocorreu no campo. Muitos militantes acataram a nova postura do Comitê Central e se retiraram dos movimentos onde estavam inseridos. Alguns romperam com o Partido e continuaram engajados nas lutas contra os empresários capitalistas. Uns poucos permaneceram na área, mas, com posições bastante moderadas.

É bem verdade que o impacto de Revolução Cubana reanimou a luta pela terra, inclusive com a radicalização defendida pelas Ligas Camponesas, fundadas em 1955, no Estado de Pernambuco.

Foi no Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, que se organizou a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco. Contudo, “a imprensa reacionária passou a apelidar a ‘Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores e Pecuarista de Pernambuco de Liga Camponesa, com o intuito de queimá-la, vinculando-a àquelas extintas organizações fundadas em 1945. O apelido, no entanto, pegou como visgo.” (JULIÃO, FRANCISCO, Que São as Ligas Camponesas?, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, vol.1, 1962, pág. 29).

A reunião de congressos e o incentivo à organização de novas ligas em outros municípios pernambucanos e outros Estados, foram etapas preliminares da fundação das Ligas Camponesas do Brasil. Adotando como lema Reforma Agrária na Lei ou na Marra, a entidade sofria nítida influência da Revolução Cubana.

Seu rápido crescimento atemorizou as classes dominantes, inclusive quando ouviam o Hino do Camponês, composto por Francisco Julião, importante líder das Ligas.

“Companheiros, irmãos de sofrimentos,

Nosso canto de dor sobre a terra

É a semente fecunda que o vento

Espalha pelo campo e pela serra.

 

Coro

A bandeira que adoramos

Não pode ser manchada

Com o sangue de uma raça

Presa ao cabo da enxada.

 

Não queremos viver na escravidão

Nem deixar o campo onde nascemos

Pela terra, pela paz e pelo pão:

Companheiros, unidos venceremos.

 

Hoje somos milhões de oprimidos

Sob o peso terrível do cambão

Lutando seremos redimidos

A Reforma Agrária é a solução.”

Além do mais, a dinamização da Igreja Católica, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), estimulou movimentos sociais e a ida de militantes católicos do Movimento de Educação de Base (MEB) para o campo.

A divisão do movimento de luta pela terra e a violenta repressão desencadeada com o golpe de 1964, contribuíram para o refluxo do movimento dos posseiros.

4. Movimentos milenaristas e messiânicos também ocorreram no campo

Nos séculos XIX e XX, seja quando o Brasil ainda vivia sob domínio português, seja no Império e mesmo na República, a sociedade brasileira conheceu movimentos rurais milenaristas e messiânicos.

Por movimento milenarista entendemos ser aquele de cunho social e religioso integrado por pessoas que acreditam no retorno de Cristo à Terra para garantir a todos um reino de prosperidade e paz. Influenciados pelo Apocalípse bíblico. O Milenarismo esteve presente no imaginário dos sertanejos, e, com ele, a concepção de que os bens individuais deveriam pertencer a todos os membros da comunidade. Além do mais, a rigidez das estruturas sociais, a marginalização econômica dominante, a insensibilidade ou repressão das autoridades, despertavam em muitos a esperança de construir no presente uma comunidade baseada na igualdade, na paz e na felicidade antecedendo o futuro reino celestial junto a Deus.

Messianismo é o movimento social e religioso fundamentado na crença da chegada de um enviado de Deus - o Messias - cuja orientação assegura a justiça e a paz entre os homens, bem como a salvação de todos após a morte. Em geral, o Messianismo ocorre em sociedades em que o nível de vida é bastante precário e o descontentamento apresenta-se com muita força ante as péssimas condições. Em conseqüência, os indivíduos tornam-se receptivos a projetos de construção de uma comunidade diferente da predominante, o que provoca a violenta reação das classes dominantes temerosas de que o projeto se alastre e se consolide. No Messianismo, aquele que é considerado o enviado de Deus, apresenta-se como guia, ou conselheiro, por vezes sendo considerado santo.

Dentre os numerosos movimentos milenaristas e messiânicos, podemos destacar:

a Cidade do Paraiso Terrestre, em Pernambuco (1817-1820);

o Reino Encantado, também em Pernambuco (1836-1838);

os Mucker, ou Santarrões, no Rio Grande do Sul (1872-1898);

Canudos, nome pelo qual se tornou conhecida a comunidade de Belo Monte, na Bahia; fundada por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, em 1893; chegou a reunir cerca de 30 mil excluídos; na localidade havia duas escolas, todos trabalhavam para todos, não havia prostíbulos, nem tavernas, nem bebidas alcóolicas; em meio a mais de cinco mil casas, construiu-se a Igreja Velha e a Igreja Nova; destruído o núcleo após quatro expedições militares, com massacre de população, degola de prisioneiros e envio de mulheres para prostíbulos de Recife; o cadáver do Conselheiro foi desenterrado, sua cabeça cortada e enviada a Salvador;

Guerra do Contestado, assim chamada porque ocorreu em território disputado pelos Estados do Paraná e Santa Catarina, entre 1912 e 1916; sob a liderança dos chamdos monges, criaram-se a Irmandade do Quadro Santo e as cidades santas, formadas por sertanejos obrigados a cortar curto o cabelo e proibidos de ter barba, daí o nome de Pelados; nessas cidades-santas havia o igualitarismo e os velhos se tornariam moços; massacre, incluindo fuzilamentos, prisioneiros queimados vivos, degola e bombardeio de cidades-santas por aviões e canhões;

Revolta dos Anjos que se deu em Goiás entre 1923 e 1925; também conhecida como Movimento de

Santa Dica, pois era o apelido de Benedita Cipriano Gomes que afirmava conversar com os anjos;

Caldeirão, ou Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, organizado no Ceará, entre 1926 e 1937 sob a liderança de José Lourenço Gomes; destruído duas vezes;

Pau-de-Colher, assim chamado porque se localizou em uma fazenda com tal nome na Bahia (1937-1938);

Massacre do Fundão, pondo fim à Comunidade dos Barbudos, em 1938, no Rio Grande do Sul.

Aliás, todas essas comunidades, fundamentadas em princípios contrários à ordem estabelecida, foram destruídas mediante verdadeiros banhos de sangue!

Afinal, em uma sociedade concentradora de riquezas nas mãos de poucos, é inadmissível a existência de comunidades baseadas em princípios coletivistas, inclusive com práticas de democratização da terra.

5. Novas lutas no campo

Desde a década de 1980, em plena crise da ditadura militar, organizou-se um movimento de luta pela terra cuja orientação e ação provocam crescente temor às classes dirigentes.

Em 21 de janeiro de 1984, em Cascavel, no Estado do Paraná, fundou-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na reunião estavam presentes representantes de onze Estados do Brasil.

A nova entidade de luta tem se fortalecido, em parte, devido aos problemas criados pelo aceleramento do capitalismo no campo, onde se procura estimular e ampliar grandes propriedades rurais, segundo o chamado modelo norte-americano. Neste, adotam-se modernas técnicas, de produção, incentiva-se o aumento da produtividade, emprega-se maquinaria agrícola ultra-moderna. Propriedades seguidoras desse modelo receberam do governo FHC cerca de 20 bilhões de reais para a produção, especialmente de grãos para exportação. Esse programa envolve ainda a melhoria dos portos de São Luís e Itacoatira, no norte do país, e duas ferrovias: a Norte e a Centro-Norte.

Os governantes “partem da tese de que, no mundo moderno capitalista, só as grandes empresas são capazes de abastecer o mercado. Então tem de ter uma empresa com capacidade de abastecer o supermercado de Chapecó, de Porto Velho e de Fortaleza ao mesmo tempo. Com a agravante de que esses complexos agro-industriais são todos multinacionais, então houve também um estímulo à desnacionalização. Abro, como exemplo, o último segmento, o de temperos, até esse já foi desnacionalizado com a compra agora, por uma fast-food americana, da Arisco. Nem o tempero os brasileiros estão controlando. São três multinacionais: a Maggi, a Knorr e essa fast não sei do quê (RMB Ltda.) O terceiro pilar da política deles é não acreditar na agricultura familiar. Eles dizem em off, para nós, que é mais barato para o governo aposentar o pequeno agricultor do que criar um programa de subsídio, sabendo que no mundo inteiro a agricultura é subsidiada, inclusive nos Estados Unidos, na Europa, no Japão.” (Entrevista de João Pedro Stedile, in Caros Amigos, São Paulo, Editora Casa Amarela, nº 39, ano IV, junho 2000, pág. 31).

Na entrevista, Stedile denuncia ainda que atualmente a tecnologia agrícola passou do controle da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) para as mãos das multinacionais que, em conseqüência, dominam a biotecnologia. Stedile alerta, também, para o crescente empobrecimento da agricultura no país. Segundo Stedile, estudos do próprio governo apontam que “nenhuma propriedade no Brasil com menos de 50 hectares está conseguindo renda equivalente a um salário mínimo. E nesse mesmo estudo eles alertam: se não mudar a política agrícola, há uma bomba migratória instalada; nos próximos anos, de 8 a 13 milhões de pessoas que vivem no meio rural, sobretudo no Nordeste, irão para as cidades. Podem não ir para o Rio, para São Paulo, que é longe, mas irão para Salvador, Recife, Fortaleza. Que solução para uma pessoa semi-analfabeta, com 3º ano primário!”

Apesar dos efeitos nefastos da política neoliberal, que vem empobrecendo a sociedade brasileira e contribuindo para aumentar os índices de miserabilidade de amplos segmentos da população, o MST continua a lutar para assegurar a propriedade da terra para quem nela trabalha, pela democratização da terra mediante a reforma agrária, pela montagem de acampamentos para a ocupação de terras vizinhas a fazendas e pela organização de assentamentos para centenas de posseiros, de rendeiros, de meeiros, de arrendatários, de trabalhadores rurais diaristas e mensalistas, de pequenos proprietários, não importa como classificá-los.

Nos assentamentos existem poços d’água, postos de saúde, escolas.

O MST dedica especial cuidado à educação dos assentados, mesmo porque através dela pode se fortalecer a consciência de classe e da cidadania. Além da escolaridade de crianças e adultos, a educação também é voltada para a formação técnica de homens e mulheres assentados. Por suas escolas passaram centenas de estudantes, não poucos chegando a completar cursos universitários. Existem cerca de 1500 professores empenhados em educar segundo o método Paulo Freire e a Teologia da Libertação.

“Agora vamos ouvir

É a voz da maioria

É o povo explorado

Pela tal da burguesia

São donos do capital

Que juntou com a mais-valia

Às custas do sofrimento

De várias categorias

Tem gente passando fome

Tem gente que nem tem nome

Outros comem bóia-fria

Perguntaram quanto somos, ei

Gritamos somos milhões, ei, ei” (Canção da Luta, de Zoel Bonomo, do MST-Espírito Santo).

O MST tem uma direção coletiva, o que se explica pelo fato de que um dirigente único tem representado uma experiência negativa pelo ocorrido em anteriores movimentos camponeses: um único presidente pode ser assassinado e até corrompido pelas classes dirigentes. Mediante eleições, são escolhidos 21 dirigentes, sendo que, para ser aprovado, o futuro dirigente, deve obrigatoriamente receber 50% mais um do total de votos por Estado.

O MST mantém ligações com a Pastoral da Terra, o Partido dos Trabalhadores, a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) e entidades internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

Essas entidades são importantes para respaldar a atuação do MST, inclusive através dos meios de comunicação. É constante a luta contra as classes dominantes que a tudo recorrem para paralizar e mesmo destruir o MST.

“As classes dominantes criam as condições que forçam nas subalternas determinados comportamentos que, uma vez adquiridos, são considerados como manifestações de inferioridade, incapacidade ou desinteresse. Tira-se o índio da mata e nada se lhe oferece a não ser escravidão e miséria. Libertam-se os negros, quando não há outro lugar para eles sem ser sob o jugo do senhor. Coloniza-se sobre as terras dos caboclos e depois se pergunta por que não a conservaram. Dá-se terra pouca e ruim aos assentados para, depois, criticá-los por não conseguirem se manter através dela. Em tudo isso, a visão negativa do povo brasileiro. A Reforma Agrária não pode ser tomada como sinônimo de distribuição de lotes. É preciso avaliar o modelo de desenvolvimento agrícola brasileiro que privilegia a grande propriedade não só não impondo restrições legais à excessiva concentração de terras, como incentivando-a com financiamentos, subsídios e incentivos fiscais. Dos assentados se exige que contribuam para a população brasileira como um todo. O que se exige das grandes empresas agrícolas com relação à população pobre? Todos sabemos o quanto são desrespeitados os direitos trabalhistas no campo, haja vista as constantes denúncias de escravidão. Vastas extensões de terra são mantidas unicamente para especulação. Os incentivos oficiais com que são agraciados os grandes produtores são de domínio público. Porém, qualquer incentivo dado à pequena produção é visto como assistencialismo. Agora que boa parte das agroindústrias (...) se consolidaram com o apoio do Estado, prega-se a livre concorrência através do mercado para os que ficaram fora do processo seletivo de modernização no campo.” (PAULILO, MARIA IGNEZ SILVEIRA, Terra à vista... e ao longe, Florianópolis, Editora da UFSC, 1998, págs. 156 e 157).

Calcula-se que existam por volta de 20 milhões de sem terra neste país, que tem 180 milhões de hectares de terras boas sem serem cultivadas, nem usadas como pastagem.

E o problema tende a se agravar na medida que tem aumentado o número de sem terra, inclusive porque a construção de barragens e usinas hidrelétricas já afetou a vida de mais de um milhão de brasileiros, segundo noticiou o Jornal do Brasil, de 15 de agosto de 1999.

De acordo com a mesma fonte, com a materialização do Plano Decenal de Expansão da ELETROBRAS (1999-2008) milhares de famílias serão expulsas das terras onde vivem.

O problema é tão grave que já resultou na criação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)!

Quanto ao MST, uma das atividades que vem empregando - a ocupação de prédios públicos, como agências do Banco do Brasil - tem sido explorada pelo governo como sendo ilegal. Na realidade, constitue uma forma de pressionar, de chamar a atenção da sociedade para a questão dos sem terra.

É bem verdade que o governo tem contado com a conivente cobertura da imprensa burguesa para desenvolver sistemática campanha contra o MST. A revista Veja tem sobressaído por seus artigos tão facciosos que até parecem ter sido escritos secretários da Presidência. Mas a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, o Jornal do Brasil, além de emissoras de rádio, como a CBN e a Eldorado, vivem martelando comentários sobre a necessidade de enquadrar o MST e restabelecer a ordem pública contra os que classifica como baderneiros e inimigos do progresso.

Ao mesmo tempo, constrói-se uma paz de cemitério face à impunidade dos responsáveis por massacres cometidos por jagunços e policiais militares contra sem terra e todos aqueles que se engajaram na luta pela democratização da terra.

Aos sem terra atribuiu-se a responsabilidade pelo massacre ocorrido em 8 de agosto de 1995, em Corumbiara, no Estado de Rondônia. Na oportunidade, a Polícia Militar atacou um acampamento dos sem terra e, durante duas horas, a partir de 4,30 da madrugada, disparou suas armas contra homens, mulheres e crianças desarmados. Morreram cerca de 30 sem terra, inclusive uma menina de sete anos, além de 143 feridos. Dentre os atacantes, houve duas mortes.

Outro massacre trágico teve como palco Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, quando dezenove trabalhadores rurais foram assassinados e quase oitenta ficaram feridos. Esse homicídio deu-se em 17 de abril de 1996 e, como no anterior e outros mais, ninguém foi punido.

Evidenciando seu caráter repressor e a serviço das classes dominantes, o governo Fernando Henrique Cardoso divulgou várias medidas legislativas contra os sem terra. Uma dessas medidas estabelecia que terra ocupada não mais seria vitoriada pelo governo para efeito de desapropriação. Declarava-se que todo aquele participante da ocupação de prédio público ficava excluído do processo de distribuição de terras pelo governo.

Tem se estimulado a Polícia Federal a utilizar-se da Lei 7170, de 1983, mais conhecida como Lei de Segurança Nacional (LSN), contra sem terra que ocupe prédio público.

Há denúncias de que telefones de dirigentes do MST estão colocados sob o controle dos chamados arapongas.

Entretanto, é preciso ousar lutar, para ousar vencer porque, ante a violência dos poderosos, é necessária a violência revolucionária dos oprimidos.

Como afirma João Pedro Stedile, a força do latifundiário vem do dinheiro que ele tem; a força do governo, vem da polícia e das Forças Armadas. Os sem terras não têm dinheiro, nem armas, por isso a sua força está na capacidade de juntar gente, do número de companheiros reunidos rumo a único objetivo.

 Autor:Rubim Santos Leão de Aquino

Professor de História do Liceu Franco-Brasileiro

Av. N.S. de Copacabana, 656 apto. 304

Copacabana – Cep: 22050-000 – Rio de Janeiro

Coordenador e co-autor de diversos estudos de História, destacando-se:

História das Sociedades Americanas, 7ª edição, Editora Record, 2000;

História das Sociedades: das Sociedades Modernas às Sociedades Atuais, 38ª edição, Editora Record, 2000;

Sociedade Brasileira: uma História através dos Movimentos Sociais, 2ª edição, Editora Record, 2000;

Sociedade Brasileira: uma História através dos Movimentos Sociais - da crise do escravismo ao apogeu do Neoliberalismo, Editora Record, no prelo;

O Brasil: uma História Popular, em preparo;

Um sonho de liberdade, a Conjuração de Minas, Editora Moderna, 1998.

 

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