Brasil bajo Lula

 

Economia brasileira e política econômica

César Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
Outro Brasil, 02 de setembro de 2003, www.outrobrasil.net

1. Depois de mais de dez anos de experimento neoliberal, a economia brasileira carrega do período anterior o peso de enormes dificuldades. Entre elas, destacam-se um desequilíbrio estrutural nas contas externas, com permanente tendência a déficit, e o desmonte da capacidade do Estado realizar, induzir e coordenar investimentos. Ambos convergem para um padrão de crescimento irregular no curto prazo (chamado pelos economistas de stop and go), no qual se intercalam períodos de estagnação (ou recessão) e miniciclos de crescimento, logo abortados. A resultante é uma reiterada tendência ao baixo crescimento quando se observam séries mais longas.

Denunciado há muito tempo pelas forças de oposição, esse contexto não podia ser considerado surpreendente quando Luís Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República em janeiro. Desde então, no plano do discurso, o novo governo adotou três abordagens diferentes – e simultâneas – para referir-se a este passado recente. A primeira, para muitos a mais inesperada, não poupava elogios à gestão anterior da economia brasileira e garantia aos conservadores que prevaleceria a opção por uma continuidade virtuosa. Esta abordagem foi expressa com muita ênfase na posse do novo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e na sabatina de Henrique Meirelles no Senado Federal, quando de sua indicação para a presidência do Banco Central.

O segundo discurso, dirigido especialmente à militância do próprio PT e às demais forças do campo progressista, era inteiramente oposto. Enfatizava a “herança maldita”: tendo sido empossado em uma situação de quase-descontrole na economia nacional, restava ao novo governo a alternativa de evitar um confronto com o grande capital em condições desfavoráveis. Era necessário ganhar tempo para impedir uma rápida desestabilização, cujas sementes estavam plantadas, principalmente, na possibilidade de escalada inflacionária e de fuga desordenada de capitais. Reafirmava-se nesse caso o compromisso com mudanças estruturais, remetendo-as no entanto a uma fase posterior da ação governamental.

Para lidar com a evidente contradição entre esses dois discursos, coube ao próprio presidente Lula enfatizar uma terceira abordagem: esqueçamos o passado, pensemos no futuro. Assim, alicerçado em grandes esperanças que ultrapassavam as fronteiras nacionais, constituiu-se um governo cuja marca inicial foi a ambigüidade. Compreender seu desdobramento no tempo, até aqui, é a nossa tarefa.

2. O projeto neoliberal pode ser desagregado em dois conjuntos de políticas. O primeiro são as chamadas “reformas estruturais”, basicamente de três tipos, conforme os objetivos que perseguem: (a) as que visam ao desmonte de mecanismos extra-mercado de regulação da vida social (sistemas de previdência, legislação trabalhista, etc.); (b) as que visam ao enfraquecimento direto do Estado (privatizações, desmoralização do funcionalismo, etc.); (c) as que visam ao aumento do grau de exposição da economia nacional aos movimentos do capital internacional (desregulamentação de fluxos comerciais e financeiros, etc.). No segundo conjunto estão as políticas macroeconômicas stricto sensu, que comandam o dia-a-dia da administração (fixação dos juros, política de câmbio, gestão orçamentária, etc.).

Aplicadas simultaneamente, essas reformas e políticas criam um novo ambiente econômico, social, institucional e até cultural que favorece a transformação de tudo em mercadoria, ampliando assim o espaço da acumulação de capital. O problema das forças progressistas, no mundo atual, é construir caminhos que conduzam à superação dessa herança, lidando com economias e sociedades muito fragilizadas.

3. Não importa discutir aqui se houve sabedoria, rendição ou que outro nome se queira dar ao caminho escolhido nos primeiros sete meses de governo Lula. Isso o tempo dirá. Para que possamos iniciar um debate o futuro do Brasil, devemos apenas reconhecer que, tendo como pano de fundo as três referências acima explicitadas – o posicionamento diante da herança recebida, das “reformas estruturais” e da condução macroeconômica, que juntas formam a essência do projeto neoliberal –, o novo governo adotou uma direção coerente: (a) Optou por legitimar e considerar intocável a herança, ou seja, o “ambiente” criado pelo neoliberalismo. Não tomou nenhuma iniciativa, nem de ordem política nem de ordem legal, para modificar acordos e contratos feitos no período anterior. Aceitou mover-se dentro dos marcos estruturais previamente fixados. Na relação com a sociedade, exerceu um papel desmobilizador. Para não criar áreas de atrito com os chamados investidores internacionais, foi muito tímido até mesmo ao tropeçar em casos explícitos de ações criminosas, como as evidências de fraudes nas privatizações (denunciadas pelo próprio PT), o rompimento de contratos por parte de empresas multinacionais (por exemplo, com o BNDES) e a remessa ilegal de bilhões de dólares para fora do país.

(b) Deu continuidade às chamadas “reformas estruturais”, com a privatização de bancos públicos e a reforma da Previdência. Além disso, tem reiterado que estão sendo preparadas a concessão da autonomia para o Banco Central e a revisão da legislação trabalhista, o que representará a abertura de uma nova geração de “reformas” que apontam no mesmo sentido das anteriores, talvez com maior gravidade.

(c) Radicalizou a aplicação da mesma política macroeconômica em todas as frentes, sem nenhuma exceção.

Esse conjunto de políticas não será sustentável pelo governo Lula, a menos que ele rompa claramente com a base social e política que o elegeu.

4. Do ponto de vista econômico e social, o resultado dessas políticas, neste momento, pode ser assim resumido.

(4a) A inflação foi contida, dando lugar a um período de deflação. Partindo-se de uma taxa anualizada de quase 30% em dezembro de 2002, pôde-se afirmar, com credibilidade, a busca pelo Banco Central de uma taxa de 8,5% em 2003. Este tem sido apresentado como o principal trunfo da política macroeconômica. Sua interpretação está sujeita a controvérsias, pois a taxa constatada em dezembro de 2002 decorria da combinação de dois choques: a desvalorização cambial ocorrida em 2001 e 2002 (com repasse interno do aumento dos preços de insumos, bens e serviços cotados em dólar) e a elevação dos preços internacionais de commodities que o Brasil produz (nesses casos, os preços internos acompanham automaticamente os preços internacionais, pois os produtos podem ser vendidos em ambos os mercados). Se isso é verdade, então a política econômica fortemente recessiva do primeiro semestre do governo Lula apenas apressou a queda da inflação, pois a acomodação dos preços, absorvidos os efeitos dos dois choques externos, já era uma tendência inscrita na dinâmica econômica em curso. Note-se ainda que, ao contrário do que pensam os leigos em economia, a deflação (queda generalizada de preços) não é uma notícia auspiciosa, pois expressa o colapso das atividades econômicas.

(4b) Não houve fuga anormal de capitais, registrando-se um saldo positivo de US$ 3,5 bilhões em investimentos estrangeiros no primeiro semestre (muito inferior aos US$ 9,6 bilhões do primeiro semestre de 2002). Toda a dívida externa que venceu no primeiro semestre de 2003 foi rolada. A projeção oficial – provavelmente otimista, pois está havendo uma reversão de fluxos neste momento, por motivos que nada têm a ver com o Brasil – é de que o ingresso líquido de capitais atinja US$ 10 bilhões no ano, mas devem ser descontados cerca de 25% desse valor, devidos às chamadas “operações de conversão”, que não representam entrada efetiva de dólares. Parece realista falar-se hoje em um ingresso de US$ 8 bilhões em 2003, cerca da metade de 2002. Não é possível dizer quanto desse montante se destinará a criar capacidade nova e quanto será usado na compra de ativos já existentes (ou outras operações inócuas do ponto de vista do investimento), como foi a regra geral na década de 1990.

(4c) O saldo comercial manteve sua trajetória ascendente, iniciada nos anos anteriores, com previsão de chegar a US$ 17 bilhões em 2003 (contra US$ 13 bilhões em 2002). Esse desempenho decorreu basicamente de três fatores: a desvalorização cambial de 2001 e 2002 (que pressiona a inflação para cima, mas melhora o desempenho comercial do país), o aumento dos preços internacionais de produtos básicos exportados pelo Brasil (idem) e a contração de quase 20% nas importações (associada ao baixo crescimento). A trajetória positiva do saldo comercial inspira cuidados e apresenta limitações. Com exceção dos aviões da Embraer, o Brasil vem confirmando sua condição de exportador das chamadas commodities – produtos primários e alguns intermediários, homogêneos, de baixo valor, baseados sobretudo em trabalho e em dotações de recursos naturais, dirigidos a mercados pouco dinâmicos –, enquanto sua pauta de importações se move na direção de produtos intensivos em conhecimento e tecnologia. Nesse contexto, desvalorizações cambiais e contenção do crescimento interno tendem a tornar-se recorrentes para preservar saldos que não resultam da conquista de mercados dinâmicos, mas da ampliação da nossa participação em mercados fortemente concorrenciais e relativamente saturados. Quanto às limitações, é preciso destacar que tais saldos melhoram, mas não resolvem, o problema das contas externas. O déficit estrutural na conta de serviços, a volatilidade da conta de capitais (cuja trajetória errática é determinada por fatores externos) e o baixo nível das reservas internacionais mantêm alta a vulnerabilidade do país, que no curto prazo se traduz em enorme incerteza sobre o comportamento das taxas de câmbio.

(4d) Em 2003, a produção industrial caiu em dezessete de dezenove setores estudados, em muitos casos de forma expressiva: caiu até 5% em quatro setores, entre 5% e 10% em três setores, entre 10% e 15% em três setores, entre 15% e 20% em dois setores, e mais de 25% em cinco setores. No comércio, a queda de vendas atingiu até mesmo produtos de consumo básico, como alimentos, vestuário e bebidas. Deve-se ressaltar, no entanto, que tamanha queda na produção e nas vendas não vem necessariamente acompanhada de queda na lucratividade – esta, na verdade, aumentou em quase todos os setores –, pois permanece aberta às empresas a alternativa de obter elevados ganhos financeiros, aplicando seus recursos sobrantes em títulos da dívida pública. Mesmo assim, a taxa média de crescimento da economia vem sendo sucessivamente revista para baixo, situando-se hoje (fins de agosto) entre 1,0% e 1,5%, sendo a primeira menor e a segunda apenas equivalente à taxa de aumento populacional. Ou seja, o país empobrecerá. Em termos de crescimento econômico, tem-se como certo que 2003 será um ano perdido (o IBGE acaba de anunciar a queda de 1,6% do PIB no segundo trimestre). Isso reforça a hipótese de que – tendo em vista os desempenhos medíocres observados nos anos anteriores – estejamos iniciando a terceira década perdida, em seqüência, da economia nacional. Haverá nova queda na formação bruta de capital fixo em 2003, o que significará mais um ano sem criação de capacidade produtiva nova.

(4e) Este contexto de baixo crescimento geral da economia brasileira tem duas exceções relevantes. Os bancos tiveram lucros recordes nos primeiros seis meses do ano.

Também foi excepcional o desempenho do agronegócio, baseado em monoculturas de exportação altamente mecanizadas, com destaque para a soja e o milho. Este foi praticamente o único setor produtivo a apresentar crescimento expressivo (24%) na safra 2002-2003, quase toda destinada à exportação. Como a área plantada aumentou apenas 8%, percebe-se que houve significativo ganho de produtividade. Porém, é baixo o efeito multiplicador das monoculturas de exportação sobre a renda e o emprego, de modo que a ampliação das exportações de commodities agrícolas não é capaz de compensar a queda dos demais setores.

O impulso exportador já encontra forte gargalo nas condições da infra-estrutura do país (principalmente estradas e portos), notoriamente defasadas.

(4f) O desemprego, medido pelo Dieese e a Fundação Seade, atingiu 20,3% em junho de 2003, a maior taxa para esse mês desde 1985, quando a pesquisa começou a ser realizada.

Houve também um aumento no ritmo de precarização do trabalho, com a geração de proporções maiores de empregos sem carteira e, principalmente, de autônomos (que correspondem a 85% dos postos de trabalho gerados). Nesses estratos se concentram contingentes de trabalhadores que têm menor capacidade de repor perdas de poder aquisitivo causadas pela inflação. Dado surpreendente: o IBGE constatou que 270 mil dos quase 500 mil novos desempregados de 2003 têm pelo menos onze anos de escolaridade. De forma coerente com essas tendências do mercado de trabalho, a renda média dos trabalhadores continuou a trajetória de queda iniciada em 1998. Os rendimentos do trabalho caíram 27% de janeiro de 1999 a maio de 2003, sendo quase 13% somente nos últimos doze meses. Houve um aumento de 54% no número de trabalhadores que ganham menos de um salário mínimo.

A queda da massa salarial levou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a registrar, no primeiro semestre, o maior déficit de sua história (R$ 9,6 bilhões), por causa da queda na arrecadação.

5. Quanto à situação da máquina pública, estamos diante de um caso provavelmente inédito no mundo: nos primeiros meses do governo do PT, o capital financeiro capturou para si e conseguiu paralisar quase completamente um Estado nacional de grande porte, o Estado brasileiro. Até o ex-ministro Delfim Netto criticou o “desejo extravagante de credibilidade por parte do Banco Central junto ao sistema financeiro internacional, que produziu um aperto demasiado”.

Não há exagero nisso. Quando observamos os números referentes aos investimentos previstos no orçamento do ano corrente, podemos perceber que o Estado brasileiro foi reduzido à vida vegetativa, na qual se limita a pagar salários, alguns gastos de custeio e, sobretudo, juros. Nos seis primeiros meses, o governo havia executado apenas 2,5% do orçamento de investimentos previsto para todo o ano. Áreas como agricultura, defesa, segurança pública, assistência social, cultura, meio ambiente, transportes, reforma agrária e ciência e tecnologia foram afetadas de forma dramática, realizando investimentos irrisórios (entre 0,01% e 2,26% do total orçado); outras, como habitação e saneamento, foram literalmente paralisadas, com investimento zero. A saúde investiu 3,5% do previsto; a educação, 5,5%. O Estado brasileiro, neste momento, existe muito mais no mundo do espetáculo mediático – o mundo das entrevistas, das declarações, dos anúncios, das movimentações políticas, das solenidades – do que na vida real. É duvidoso que esse nível de paralisia possa manter-se por muito mais tempo sem que se multipliquem conflitos e sinais de colapso (como a crise aguda no Instituto Nacional do Câncer, a suspensão de serviços em milhares de prefeituras, os protestos dos trabalhadores rurais sem terra, a desmobilização de recrutas das forças armadas, etc.).

Em 6 de agosto, o Valor Econômico registrava a inutilidade desses sacrifícios: “Embora o governo venha conseguindo obter um superávit primário vigoroso, acima até do compromisso recorde que se auto-impôs, a dívida líquida vem crescendo. Saltou de R$ 839 bilhões em abril para R$ 856 bilhões em junho (...). Uma das explicações para esse comportamento é a extravagante conta de juros que o governo pagou. Ela mais que engoliu o duro esforço de contenção de despesas praticado pela atual administração. (...) Apenas no primeiro semestre do ano, a conta de juros pagos pelo setor público atingiu R$ 74,2 bilhões, quase o dobro da economia de R$ 40 bilhões obtida [com o contingenciamento dos gastos dos ministérios]. As projeções para 2003 indicam que o governo poderá obter R$ 68 bilhões de superávit primário, absolutamente insuficientes para cobrir pagamentos de juros estimados em R$ 150 bilhões, cerca de 8% do PIB.”

Um terço do estoque de papéis da dívida interna brasileira vence em até um ano. Cerca de 51% da dívida mobiliária pública são reajustados pela taxa Selic (a taxa de juros básica do Banco Central, agora fixada em 22%) e outros 31% contam ainda com correção cambial. O crescimento da dívida pública, portanto, é puxado pela política macroeconômica – especialmente pelas taxas de juros e de câmbio – e não por gastos em investimento e custeio.

Vivemos em uma situação paradoxal: o Estado arrecada cada vez mais, gasta cada vez menos e, mesmo assim, suas contas tornam-se cada vez mais desequilibradas. Incapaz de compensar o déficit financeiro crescente, o corte de gastos sempre aparece como insuficiente, recolocando a necessidade de novos cortes mais adiante. As conseqüências disso sobre a trajetória de uma sociedade periférica e desigual, como a nossa, não podem ser exageradas.

Os povos sem Estado, como dizia um famoso pensador do século XIX, são facilmente expulsos da História.

Na execução orçamentária do primeiro ano do governo Lula repete-se o que ocorreu em 2002, último ano de Fernando Henrique Cardoso, quando 36% dos recursos da União foram usados com encargos, juros e amortização de dívidas financeiras, restando menos de 3% para investimentos. Uma das conseqüências pouco percebidas dessa situação é o aumento irracional da dívida externa brasileira, pois as pouquíssimas obras em curso, como a duplicação das rodovias Fernão Dias e Régis Bittencourt, acabam sendo realizadas com financiamento do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento, já que o Estado brasileiro está proibido de financiá-las (os recursos para isso existem, mas ficam esterilizados no superávit primário do governo federal). Assim, nos endividamos em dólar, no exterior, para fazer obras que não exigem nenhuma importação de bens e serviços e que, portanto, poderiam ser completamente financiadas em moeda nacional.

6. Examinemos agora uma questão decisiva para o julgamento da política econômica em curso. Trata-se do compromisso de distribuir a renda nacional, problema histórico do Brasil.

Estamos caminhando em sentido contrário. Não pode haver distribuição de renda consistente em um ambiente macroeconômico marcado pelo aumento do desemprego, o baixo crescimento e a manutenção de elevadas taxas de juros. (Os programas assistenciais e compensatórios anunciados pelo governo, como o Fome Zero, devem ser vistos como são: assistenciais e compensatórios, sem nenhuma capacidade de reverter as tendências gerais.) É falso confundir, como tem sido proposto, política antiinflacionária com política de distribuição de renda. Embora a inflação seja um mecanismo concentrador de renda, a atual política antiinflacionária, paradoxalmente, age no mesmo sentido. Vejamos por quê. Numa economia frágil e aberta, como a nossa, a instabilidade cambial transmite-se com muita força aos preços internos (a volatilidade do câmbio é a principal via de contágio da economia real a partir dos movimentos do capital especulativo), de modo que as pressões inflacionárias não desaparecem, mesmo quando estamos em estagnação ou recessão. Nesse contexto, o regime de metas inflacionárias, adotado pelo Banco Central, exige políticas monetárias especialmente restritivas. Porém, uma parte expressiva do sistema de preços (a parte dolarizada e administrada) responde fracamente a essas políticas. Apenas sete itens, cujos preços são fixados por contratos ou administrados pelo governo (transportes públicos, energia elétrica, telefonia, remédios, mensalidades escolares, combustíveis e taxas de água e esgoto), foram responsáveis por quase a metade da inflação registrada no primeiro semestre de 2003.

Por causa da inflexibilidade desse subconjunto de preços que independe das condições do mercado, o Banco Central, para atingir as metas de inflação desejadas, precisa produzir recessão, contendo fortemente a demanda, de modo que os preços dos setores concorrenciais caiam o suficiente para puxar a média para baixo. Combina-se assim, paradoxalmente, um regime de baixa inflação com um enorme processo de concentração de renda em grandes empresas, por meio de alterações dos preços relativos de bens e serviços. A taxa de inflação expressa apenas a média dos movimentos dos preços, mas não mostra os deslocamentos de renda que têm ocorrido por causa dessa brutal alteração dos preços relativos.

Com o fim da âncora cambial que funcionou durante a vigência do Plano Real, a “âncora salarial” – ou seja, a compressão pura e simples do preço da força de trabalho, que é a renda dos trabalhadores – ganha cada vez mais importância como mecanismo de controle da inflação. Tornou-se política oficial no governo do PT. Em comunicado emitido em maio de 2003, o Banco Central justificou sua opção recessiva afirmando que ela era necessária para evitar que os trabalhadores obtivessem reajustes salariais capazes de compensar a inflação passada. Ou seja, agiu explicitamente para agravar as condições desfavoráveis do mercado de trabalho, tendo em vista impedir que os trabalhadores conseguissem repor suas perdas. Sancionou assim mais uma rodada de concentração da renda nacional.

7. A política macroeconômica que combina restrições fiscais rigorosas (com sucessivos aumentos de impostos e contração dos gastos do Estado), taxas de juros elevadas, metas de inflação e câmbio livre mostra evidentes sinais de esgotamento, seja do ponto de vista do acúmulo de frustrações e tensões sociais que atingem especialmente a base de apoio mais tradicional do PT, seja do ponto de vista dos resultados obtidos. O desemprego, a queda generalizada na renda dos trabalhadores, a rearticulação de movimentos sociais e a frustração do funcionalismo público são expressões do primeiro grupo de problemas.

Quanto aos resultados pretendidos, vimos que o controle da inflação foi provisoriamente obtido, com alto custo, mas a queda na relação dívida / PIB – reiteradamente anunciada pelo ministro Palocci como sua outra meta principal – frustrou-se. Essa relação era de 52,57% em dezembro de 2001, passou a 56,53% em dezembro de 2002 e oscilou na margem para 55,39% em junho de 2003 (algumas projeções indicam que a relação voltará a subir, podendo atingir 60% no fim do ano). A recessão, por sua vez, compromete o próprio esforço arrecadatório do governo. No primeiro semestre de 2003 as receitas federais com impostos diretamente relacionados com a atividade econômica apresentaram expressiva queda (equivalente a 1% do PIB), e entre maio e junho, quando a recessão se acelerou, houve queda de 8% no total de impostos arrecadados pela Receita Federal.

8. Não é possível identificar com clareza qual seria o motor da retomada do crescimento no segundo semestre deste ano, prometida pelo presidente Lula em seus pronunciamentos. O investimento público, como vimos, está em colapso, por força de uma gerência macroeconômica cuja continuidade vem sendo reafirmada pelo próprio governo. A taxa real de juros continua muitíssimo alta, abrindo alternativas atraentes de ganho financeiro para os detentores de riqueza líquida, que assim não têm por que investir na atividade produtiva. A taxa de câmbio permanece volátil, inibindo o cálculo econômico de longo prazo, essencial à decisão de investimento privado. A massa salarial está em queda livre, levando para o fundo do poço a capacidade de consumo da sociedade. O nível de crédito ofertado à economia é o mais baixo da história (24% do PIB), confirmando uma tendência de queda que se mantém constante desde 2001. Por motivos sazonais e de mercado, o ritmo das exportações cairá significativamente nos próximos meses: dos US$ 17 bilhões de saldo comercial projetado para 2003, US$ 11,4 bilhões já foram obtidos no primeiro semestre. Em agosto, o comércio internacional do Brasil como um todo – considerado como a soma de exportações e importações – começou a declinar, atingindo os menores valores desde janeiro.

O governo acena com seis alternativas: (a) a queda gradual da taxa nominal de juros (que passou de 26,5% para 22%) e do depósito compulsório dos bancos junto ao Banco Central (que passou de 60% para 45%), o que estimularia a expansão do crédito; (b) a abertura de uma linha de microcrédito para pessoas pobres (R$ 500,00) e pequenos empreendedores (R$ 1.000,00), com taxas de juros de 2% ao mês e prazos de até 120 meses, até um montante estimado em R$ 1,1 bilhão (público-alvo de 2 milhões de pessoas); (c) a proposta de parceria público-privado (PPP), que visa a atrair recursos empresariais para projetos tradicionalmente realizados pelo Estado, especialmente nas áreas de infra-estrutura; (d) o aumento dos gastos públicos, seja por um relaxamento relativo do contingenciamento realizado pelo Ministério da Fazenda, seja pelo maior domínio do próprio governo sobre a máquina administrativa (mesmo com recursos muito apertados, os ministérios não conseguiram gastar R$ 2 bilhões liberados pela Fazenda, por incapacidade operacional); (e) o recurso aos fundos de pensão para alavancar investimentos em infra-estrutura a partir de 2004; (f) em caso de renovação do acordo com o FMI, a realização de uma negociação em termos mais favoráveis, em que os investimentos de empresas públicas seriam liberados, pelo menos parcialmente, do draconiano contingenciamento hoje em vigor.

Os resultados dessas medidas são muito incertos – para dizer o mínimo –, e em nenhuma hipótese elas terão efeito em 2003. Em termos de crescimento econômico, o ano já se perdeu. Quanto aos próximos anos, o desempenho dependerá, em parte, da opção do governo brasileiro de renovar ou não – e, se renovar, em que bases – o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

9. Criado no contexto dos Acordos de Bretton Woods, no fim da Segunda Guerra Mundial, o FMI é o emprestador de última instância do sistema internacional, uma espécie de unidade de terapia intensiva (UTI) à qual os países recorrem apenas em casos de desequilíbrio agudo na conta-corrente do balanço de pagamentos. Na definição das políticas do Fundo, o voto de cada país é proporcional ao número de cotas que cada um detém, o que confere ampla preponderância aos Estados Unidos. No mundo inteiro, em qualquer época, o recurso ao Fundo sempre foi considerado uma situação excepcional, como mostra a própria trajetória brasileira: nosso país nunca precisou fechar acordos com o Fundo até a crise da dívida externa na década de 1980. Depois, alguns acordos foram fechados e quase sempre descumpridos. Nos últimos cinco anos, porém, começa a ganhar ares de normalidade a nossa permanência na “UTI do sistema internacional”, pois só graças a ela temos conseguido evitar que se explicite a crise cambial latente a que fomos conduzidos pelo experimento neoliberal da década de 1990.

O acordo assinado em 2002 previa um aporte de US$ 32 bilhões do FMI ao Brasil, em seis parcelas, das quais falta apenas uma, a ser sacada em novembro. Os recursos já foram gastos em grande parte, o que nos transforma nos maiores devedores mundiais do Fundo.

Precisaremos pagar US$ 25 bilhões em prestações que se estendem até 2007, o que constituirá mais um foco de pressão sobre as contas externas brasileiras. A boa vontade do Fundo depende da boa vontade do governo dos Estados Unidos, dono da maioria das cotas, o que impõe evidentes limites ao exercício da nossa soberania.

Tais limites já estão presentes hoje, com grande força, pois os países que recorrem ao Fundo ficam sujeitos às chamadas “condicionalidades” definidas por ele, que combinam as chamadas “reformas estruturais” (como a da Previdência, explicitamente exigida pelo FMI no último acordo) com as políticas macroeconômicas neoliberais. Durante a vigência dos acordos, o Fundo ganha o direito de impor decisões que afetam aspectos cruciais da nossa política interna, cabendo-lhe ainda inspecionar periodicamente o cumprimento das metas traçadas. Em 29 de junho de 2003, Celso Furtado voltou a advertir para a gravidade dessa trajetória: “A estratégia do FMI é prolongar a recessão até que aceitemos o currency board [que equivale a uma eliminação do Banco Central, tal como ele existe hoje] ou a dolarização da economia, o que é tremendamente perigoso para a manutenção da soberania nacional.”

Também Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial e Prêmio Nobel de Economia, foi enfático: “É melhor ficar sem o dinheiro do FMI do que aceitar um novo acordo que estrangule a economia do país.”

Será uma decisão difícil. Obcecado pelo controle da inflação e agindo em nome de uma política de defesa do câmbio livre – política que praticamente não tem paralelo no mundo e é incompatível com a realidade de um balanço de pagamentos estruturalmente deficitário –, o Banco Central reduziu muito sua intervenção no mercado do dólar no primeiro semestre do governo Lula, quando o movimento de entrada de capitais era ascendente. Cometeu assim dois erros gêmeos: não recompôs as reservas internacionais e deixou o real valorizar-se demais. Esses erros podem ter conseqüências futuras seriíssimas, pois comprometem a continuidade do saldo comercial, nos fragilizam diante de choques externos e desde já enfraquecem a posição do Brasil em uma eventual nova rodada de negociações com o FMI.

10. Apesar do aumento do saldo comercial, o front externo não permite tranqüilidade. As projeções do Banco Central indicam a necessidade de US$ 39 bilhões para fechar as contas externas em 2004 (US$ 5 bilhões para cobrir o déficit em conta-corrente e US$ 34 bilhões em amortizações de dívidas). As reservas internacionais líquidas brasileiras mantêm-se em torno de US$ 14 bilhões (um pouco inferiores ao patamar do final de 2002), suficientes para sustentar as necessidades de importação do país durante apenas três meses. Com este nível de reservas e mantendo aberta a conta de capital do balanço de pagamentos, permanecemos expostos a ataques especulativos fulminantes, que podem comprometer, em poucas semanas, a coerência de qualquer política econômica.

O cenário internacional é preocupante. Parece estar havendo um encurtamento dos ciclos de abundância e escassez no mercado internacional de capitais, com exacerbação da volatilidade. Exemplo disso foi o movimento brusco de valorização dos principais títulos brasileiros negociados no exterior (os C-bonds) nos primeiros meses de 2003, antes de iniciarem em julho um novo movimento de recuo, apesar da inesgotável busca por credibilidade e a manutenção dos chamados “bons fundamentos” da política econômica pelo novo governo. O colunista Luís Nassif captou as causas disso, ao escrever em 2 de agosto: “Só o supino amadorismo das autoridades monetárias para não aprender uma lição que vem sendo repetida há anos: o tal do ‘mercado’ não analisa os países sob a ótica de que os fundamentos estão bons ou maus, mas se o país está caro ou barato. Seja qual for a situação do país, se ele depender do capital especulativo, chega o momento em que bate no limite de alta. Quando bate, não há milagre que faça o capital permanecer no país, porque seu ambiente de lucro é a volatilidade – é comprar ativos na baixa e vender na alta.”

Por isso é que, mesmo tendo realizado todo o chamado “dever de casa” e tendo sido elogiada durante anos pelo sistema financeiro internacional, a Argentina quebrou. Tal como o Estado argentino da época de Menem, o Estado brasileiro, como vimos, vem perseguindo os “bons fundamentos” definidos pelo sistema: aprofunda a recessão e a dependência, e concentra renda nos segmentos rentistas, detentores de riqueza líquida, sempre dispostos a abandonar o país no momento oportuno. Não sairemos dessa armadilha enquanto mantivermos aberta a conta de capital (herança nefasta do governo Collor), expostos a um câmbio volátil combinado com o regime de metas de inflação.

11. A nação paga alto preço para sustentar a atual política econômica, cujos efeitos são frustrantes e cujas dificuldades são crescentes. O governo, no entanto, não se mostra disposto a alterar seus fundamentos, à espera de sinais de reaquecimento que, se vierem, terão vida breve, como ocorreu em todos os miniciclos de crescimento dos últimos anos. Diante do agravamento da crise, com as conseqüências sociais e políticas a ela associadas, é provável que estejamos iniciando uma nova fase na ação governamental, mais errática. Nela, a (perversa) coerência anterior não poderá mais ser sustentada plenamente, por causa do agravamento da crise social, mas tampouco o governo adotará uma política fundamentalmente diferente. A administração Lula não dá nenhuma demonstração de que tenha, ou de que possa vir a ter, capacidade de alterar o modelo neoliberal. Na tentativa de gerenciar o modelo, tem sido levada a aprofundar suas características mais importantes.

Nesse contexto, menos do que questões tópicas de política econômica, poderão entrar na agenda nacional certas concessões estratégicas de grande alcance, como a independência do Banco Central e a adesão à Área de Livre Comércio das Américas. Nesse caso, que ainda pertence ao terreno das hipóteses, o governo Lula, para surpresa da grande maioria, terá cumprido o papel de desarticular a oposição ao neoliberalismo e desarmar as resistências da sociedade brasileira a um desmonte das derradeiras instituições decisivas para a soberania nacional e a justiça social.

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