Economia
brasileira e política econômica
César
Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
Outro Brasil, 02 de setembro de 2003, www.outrobrasil.net
1.
Depois de mais de dez anos de
experimento neoliberal, a economia brasileira carrega do período anterior
o peso de enormes dificuldades. Entre elas, destacam-se um desequilíbrio
estrutural nas contas externas, com permanente tendência a déficit, e o
desmonte da capacidade do Estado realizar, induzir e coordenar
investimentos. Ambos convergem para um padrão de crescimento irregular no
curto prazo (chamado pelos economistas de stop and go), no qual se
intercalam períodos de estagnação (ou recessão) e miniciclos de
crescimento, logo abortados. A resultante é uma reiterada tendência ao
baixo crescimento quando se observam séries
mais longas.
Denunciado
há muito tempo pelas forças de oposição, esse contexto não podia ser
considerado surpreendente quando Luís Inácio Lula da Silva assumiu a
Presidência da República em janeiro. Desde então, no plano do discurso,
o novo governo adotou três abordagens diferentes – e simultâneas –
para referir-se a este passado recente. A primeira, para muitos a mais
inesperada, não poupava elogios à gestão anterior da economia
brasileira e garantia aos conservadores que prevaleceria a opção por uma
continuidade virtuosa. Esta abordagem foi expressa com muita ênfase na
posse do novo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e na sabatina de
Henrique Meirelles no Senado Federal, quando de sua indicação para a
presidência do Banco Central.
O
segundo discurso, dirigido especialmente à militância do próprio PT e
às demais forças do campo progressista, era inteiramente oposto.
Enfatizava a “herança maldita”: tendo sido empossado em uma situação
de quase-descontrole na economia nacional, restava ao novo governo a
alternativa de evitar um confronto com o grande capital em condições
desfavoráveis. Era necessário ganhar tempo para impedir uma rápida
desestabilização, cujas sementes estavam plantadas, principalmente, na
possibilidade de escalada inflacionária e de fuga desordenada de capitais.
Reafirmava-se nesse caso o compromisso com mudanças estruturais,
remetendo-as no entanto a uma fase posterior da ação governamental.
Para
lidar com a evidente contradição entre esses dois discursos, coube ao próprio
presidente Lula enfatizar uma terceira abordagem: esqueçamos o passado,
pensemos no futuro. Assim, alicerçado em grandes esperanças que
ultrapassavam as fronteiras nacionais, constituiu-se um governo cuja marca
inicial foi a ambigüidade. Compreender seu desdobramento no tempo, até
aqui, é a nossa tarefa.
2.
O projeto neoliberal pode ser desagregado em
dois conjuntos de políticas. O primeiro são as chamadas “reformas
estruturais”, basicamente de três tipos, conforme os objetivos que
perseguem: (a) as que visam ao desmonte de mecanismos extra-mercado de
regulação da vida social (sistemas de previdência, legislação
trabalhista, etc.); (b) as que visam ao enfraquecimento direto do Estado (privatizações,
desmoralização do funcionalismo, etc.); (c) as que visam ao aumento do
grau de exposição da economia nacional aos movimentos do capital
internacional (desregulamentação de fluxos comerciais e financeiros,
etc.). No segundo conjunto estão as políticas macroeconômicas stricto
sensu, que comandam o dia-a-dia da administração (fixação dos
juros, política de câmbio, gestão orçamentária, etc.).
Aplicadas
simultaneamente, essas reformas e políticas criam um novo ambiente econômico,
social, institucional e até cultural que favorece a transformação de
tudo em mercadoria, ampliando assim o espaço da acumulação de capital.
O problema das forças progressistas, no mundo atual, é construir
caminhos que conduzam à superação dessa herança, lidando com economias
e sociedades muito fragilizadas.
3.
Não importa discutir aqui se
houve sabedoria, rendição ou que outro nome se queira dar ao caminho
escolhido nos primeiros sete meses de governo Lula. Isso o tempo dirá.
Para que possamos iniciar um debate o futuro do Brasil, devemos apenas
reconhecer que, tendo como pano de fundo as três referências acima
explicitadas – o posicionamento diante da herança recebida, das
“reformas estruturais” e da condução macroeconômica, que juntas
formam a essência do projeto neoliberal –, o novo governo adotou uma
direção coerente: (a) Optou por legitimar e considerar intocável a
herança, ou seja, o “ambiente” criado pelo neoliberalismo. Não tomou
nenhuma iniciativa, nem de ordem política nem de ordem legal, para
modificar acordos e contratos feitos no período anterior. Aceitou
mover-se dentro dos marcos estruturais previamente fixados. Na relação
com a sociedade, exerceu um papel desmobilizador. Para não criar áreas
de atrito com os chamados investidores internacionais, foi muito tímido
até mesmo ao tropeçar em casos explícitos de ações criminosas, como
as evidências de fraudes nas privatizações (denunciadas pelo próprio
PT), o rompimento de contratos por parte de empresas multinacionais (por
exemplo, com o BNDES) e a remessa ilegal de bilhões de dólares para fora
do país.
(b)
Deu continuidade às chamadas “reformas estruturais”, com a privatização
de bancos públicos e a reforma da Previdência. Além disso, tem
reiterado que estão sendo preparadas a concessão da autonomia para o
Banco Central e a revisão da legislação trabalhista, o que representará
a abertura de uma nova geração de “reformas” que apontam no mesmo
sentido das anteriores, talvez com maior gravidade.
(c)
Radicalizou a aplicação da mesma política macroeconômica em todas as
frentes, sem nenhuma exceção.
Esse
conjunto de políticas não será sustentável pelo governo Lula, a menos
que ele rompa claramente com a base social e política que o elegeu.
4.
Do ponto de vista econômico e social,
o resultado dessas políticas, neste momento, pode ser assim resumido.
(4a)
A inflação foi contida, dando lugar a um período de deflação.
Partindo-se de uma taxa anualizada de quase 30% em dezembro de 2002, pôde-se
afirmar, com credibilidade, a busca pelo Banco Central de uma taxa de 8,5%
em 2003. Este tem sido apresentado como o principal trunfo da política
macroeconômica. Sua interpretação está sujeita a controvérsias, pois
a taxa constatada em dezembro de 2002 decorria da combinação de dois
choques: a desvalorização cambial ocorrida em 2001 e 2002 (com repasse
interno do aumento dos preços de insumos, bens e serviços cotados em dólar)
e a elevação dos preços internacionais de commodities que o
Brasil produz (nesses casos, os preços internos acompanham
automaticamente os preços internacionais, pois os produtos podem ser
vendidos em ambos os mercados). Se isso é verdade, então a política
econômica fortemente recessiva do primeiro semestre do governo Lula
apenas apressou a queda da inflação, pois a acomodação dos preços,
absorvidos os efeitos dos dois choques externos, já era uma tendência
inscrita na dinâmica econômica em curso. Note-se ainda que, ao contrário
do que pensam os leigos em economia, a deflação (queda generalizada de
preços) não é uma notícia auspiciosa, pois expressa o colapso das
atividades econômicas.
(4b)
Não houve fuga anormal de capitais, registrando-se um saldo positivo de
US$ 3,5 bilhões em investimentos estrangeiros no primeiro semestre (muito
inferior aos US$ 9,6 bilhões do primeiro semestre de 2002). Toda a dívida
externa que venceu no primeiro semestre de 2003 foi rolada. A projeção
oficial – provavelmente otimista, pois está havendo uma reversão de
fluxos neste momento, por motivos que nada têm a ver com o Brasil – é
de que o ingresso líquido de capitais atinja US$ 10 bilhões no ano, mas
devem ser descontados cerca de 25% desse valor, devidos às chamadas
“operações de conversão”, que não representam entrada efetiva de dólares.
Parece realista falar-se hoje em um ingresso de US$ 8 bilhões em 2003,
cerca da metade de 2002. Não é possível dizer quanto desse montante se
destinará a criar capacidade nova e quanto será usado na compra de
ativos já existentes (ou outras operações inócuas do ponto de vista do
investimento), como foi a regra geral na década de 1990.
(4c)
O saldo comercial manteve sua trajetória ascendente, iniciada nos anos
anteriores, com
previsão de chegar a US$ 17 bilhões em 2003 (contra US$ 13 bilhões em
2002). Esse desempenho decorreu basicamente de três fatores: a desvalorização
cambial de 2001 e 2002 (que pressiona a inflação para cima, mas melhora
o desempenho comercial do país), o aumento dos preços internacionais de
produtos básicos exportados pelo Brasil (idem) e a contração de quase
20% nas importações (associada ao baixo crescimento). A trajetória
positiva do saldo comercial inspira cuidados e apresenta limitações. Com
exceção dos aviões da Embraer, o Brasil vem confirmando sua condição
de exportador das chamadas commodities – produtos primários e
alguns intermediários, homogêneos, de baixo valor, baseados sobretudo em
trabalho e em dotações de recursos naturais, dirigidos a mercados pouco
dinâmicos –, enquanto sua pauta de importações se move na direção
de produtos intensivos em conhecimento e tecnologia. Nesse contexto,
desvalorizações cambiais e contenção do crescimento interno tendem a
tornar-se recorrentes para preservar saldos que não resultam da conquista
de mercados dinâmicos, mas da ampliação da nossa participação em
mercados fortemente concorrenciais e relativamente saturados. Quanto às
limitações, é preciso destacar que tais saldos melhoram, mas não
resolvem, o problema das contas externas. O déficit estrutural na conta
de serviços, a volatilidade da conta de capitais (cuja trajetória errática
é determinada por fatores externos) e o baixo nível das reservas
internacionais mantêm alta a vulnerabilidade do país, que no curto prazo
se traduz em enorme incerteza sobre o comportamento das taxas de câmbio.
(4d)
Em 2003, a produção industrial caiu em dezessete de dezenove setores
estudados, em muitos casos de forma expressiva: caiu até 5% em quatro
setores, entre 5% e 10% em três setores, entre 10% e 15% em três setores,
entre 15% e 20% em dois setores, e mais de 25% em cinco setores. No comércio,
a queda de vendas atingiu até mesmo produtos de consumo básico, como
alimentos, vestuário e bebidas. Deve-se ressaltar, no entanto, que
tamanha queda na produção e nas vendas não vem necessariamente
acompanhada de queda na lucratividade – esta, na verdade, aumentou em
quase todos os setores –, pois permanece aberta às empresas a
alternativa de obter elevados ganhos financeiros, aplicando seus recursos
sobrantes em títulos da dívida pública. Mesmo assim, a taxa média de
crescimento da economia vem sendo sucessivamente revista para baixo,
situando-se hoje (fins de agosto) entre 1,0% e 1,5%, sendo a primeira
menor e a segunda apenas equivalente à taxa de aumento populacional. Ou
seja, o país empobrecerá. Em termos de crescimento econômico, tem-se
como certo que 2003 será um ano perdido (o IBGE acaba de anunciar a queda
de 1,6% do PIB no segundo trimestre). Isso reforça a hipótese de que –
tendo em vista os desempenhos medíocres observados nos anos anteriores
– estejamos iniciando a terceira década perdida, em seqüência, da
economia nacional. Haverá nova queda na formação bruta de capital fixo
em 2003, o que significará mais um ano sem criação de capacidade
produtiva nova.
(4e)
Este contexto de baixo crescimento geral da economia brasileira tem duas
exceções relevantes. Os bancos tiveram lucros recordes nos primeiros
seis meses do ano.
Também
foi excepcional o desempenho do agronegócio, baseado em monoculturas de
exportação altamente mecanizadas, com destaque para a soja e o milho.
Este foi praticamente o único setor produtivo a apresentar crescimento
expressivo (24%) na safra 2002-2003, quase toda destinada à exportação.
Como a área plantada aumentou apenas 8%, percebe-se que houve
significativo ganho de produtividade. Porém, é baixo o efeito
multiplicador das monoculturas de exportação sobre a renda e o emprego,
de modo que a ampliação das exportações de commodities agrícolas
não é capaz de compensar a queda dos demais setores.
O
impulso exportador já encontra forte gargalo nas condições da infra-estrutura
do país (principalmente estradas e portos), notoriamente defasadas.
(4f)
O desemprego, medido pelo Dieese e a Fundação Seade, atingiu 20,3% em
junho de 2003, a maior taxa para esse mês desde 1985, quando a pesquisa
começou a ser realizada.
Houve
também um aumento no ritmo de precarização do trabalho, com a geração
de proporções maiores de empregos sem carteira e, principalmente, de autônomos
(que correspondem a 85% dos postos de trabalho gerados). Nesses estratos
se concentram contingentes de trabalhadores que têm menor capacidade de
repor perdas de poder aquisitivo causadas pela inflação. Dado
surpreendente: o IBGE constatou que 270 mil dos quase 500 mil novos
desempregados de 2003 têm pelo menos onze anos de escolaridade. De forma
coerente com essas tendências do mercado de trabalho, a renda média dos
trabalhadores continuou a trajetória de queda iniciada em 1998. Os
rendimentos do trabalho caíram 27% de janeiro de 1999 a maio de 2003,
sendo quase 13% somente nos últimos doze meses. Houve um aumento de 54%
no número de trabalhadores que ganham menos de um salário mínimo.
A
queda da massa salarial levou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
a registrar, no primeiro semestre, o maior déficit de sua história (R$
9,6 bilhões), por causa da queda na arrecadação.
5.
Quanto à situação da máquina pública,
estamos diante de um caso provavelmente inédito no mundo: nos primeiros
meses do governo do PT, o capital financeiro capturou para si e conseguiu
paralisar quase completamente um Estado nacional de grande porte, o Estado
brasileiro. Até o ex-ministro Delfim Netto criticou o “desejo
extravagante de credibilidade por parte do Banco Central junto ao sistema
financeiro internacional, que produziu um aperto demasiado”.
Não
há exagero nisso. Quando observamos os números referentes aos
investimentos previstos no orçamento do ano corrente, podemos perceber
que o Estado brasileiro foi reduzido à vida vegetativa, na qual se limita
a pagar salários, alguns gastos de custeio e, sobretudo, juros. Nos seis
primeiros meses, o governo havia executado apenas 2,5% do orçamento de
investimentos previsto para todo o ano. Áreas como agricultura, defesa,
segurança pública, assistência social, cultura, meio ambiente,
transportes, reforma agrária e ciência e tecnologia foram afetadas de
forma dramática, realizando investimentos irrisórios (entre 0,01% e
2,26% do total orçado); outras, como habitação e saneamento, foram
literalmente paralisadas, com investimento zero. A saúde investiu 3,5% do
previsto; a educação, 5,5%. O Estado brasileiro, neste momento, existe
muito mais no mundo do espetáculo mediático – o mundo das entrevistas,
das declarações, dos anúncios, das movimentações políticas, das
solenidades – do que na vida real. É duvidoso que esse nível de
paralisia possa manter-se por muito mais tempo sem que se multipliquem
conflitos e sinais de colapso (como a crise aguda no Instituto Nacional do
Câncer, a suspensão de serviços em milhares de prefeituras, os
protestos dos trabalhadores rurais sem terra, a desmobilização de
recrutas das forças armadas, etc.).
Em
6 de agosto, o Valor Econômico registrava a inutilidade desses
sacrifícios: “Embora o governo venha conseguindo obter um superávit
primário vigoroso, acima até do compromisso recorde que se auto-impôs,
a dívida líquida vem crescendo. Saltou de R$ 839 bilhões em abril para
R$ 856 bilhões em junho (...). Uma das explicações para esse
comportamento é a extravagante conta de juros que o governo pagou. Ela
mais que engoliu o duro esforço de contenção de despesas praticado pela
atual administração. (...) Apenas no primeiro semestre do ano, a conta
de juros pagos pelo setor público atingiu R$ 74,2 bilhões, quase o dobro
da economia de R$ 40 bilhões obtida [com o contingenciamento dos gastos
dos ministérios]. As projeções para 2003 indicam que o governo poderá
obter R$ 68 bilhões de superávit primário, absolutamente insuficientes
para cobrir pagamentos de juros estimados em R$ 150 bilhões, cerca de 8%
do PIB.”
Um
terço do estoque de papéis da dívida interna brasileira vence em até
um ano. Cerca de 51% da dívida mobiliária pública são reajustados pela
taxa Selic (a taxa de juros básica do Banco Central, agora fixada em 22%)
e outros 31% contam ainda com correção cambial. O crescimento da dívida
pública, portanto, é puxado pela política macroeconômica –
especialmente pelas taxas de juros e de câmbio – e não por gastos em
investimento e custeio.
Vivemos
em uma situação paradoxal: o Estado arrecada cada vez mais, gasta cada
vez menos e, mesmo assim, suas contas tornam-se cada vez mais
desequilibradas. Incapaz de compensar o déficit financeiro crescente, o
corte de gastos sempre aparece como insuficiente, recolocando a
necessidade de novos cortes mais adiante. As conseqüências disso sobre a
trajetória de uma sociedade periférica e desigual, como a nossa, não
podem ser exageradas.
Os
povos sem Estado, como dizia um famoso pensador do século XIX, são
facilmente expulsos da História.
Na
execução orçamentária do primeiro ano do governo Lula repete-se o que
ocorreu em 2002, último ano de Fernando Henrique Cardoso, quando 36% dos
recursos da União foram usados com encargos, juros e amortização de dívidas
financeiras, restando menos de 3% para investimentos. Uma das conseqüências
pouco percebidas dessa situação é o aumento irracional da dívida
externa brasileira, pois as pouquíssimas obras em curso, como a duplicação
das rodovias Fernão Dias e Régis Bittencourt, acabam sendo realizadas
com financiamento do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de
Desenvolvimento, já que o Estado brasileiro está proibido de financiá-las
(os recursos para isso existem, mas ficam esterilizados no superávit primário
do governo federal). Assim, nos endividamos em dólar, no exterior, para
fazer obras que não exigem nenhuma importação de bens e serviços e
que, portanto, poderiam ser completamente financiadas em moeda nacional.
6.
Examinemos agora uma questão decisiva para
o julgamento da política econômica em curso. Trata-se do compromisso de
distribuir a renda nacional, problema histórico do Brasil.
Estamos
caminhando em sentido contrário. Não pode haver distribuição de renda
consistente em um ambiente macroeconômico marcado pelo aumento do
desemprego, o baixo crescimento e a manutenção de elevadas taxas de
juros. (Os programas assistenciais e compensatórios anunciados pelo
governo, como o Fome Zero, devem ser vistos como são: assistenciais e
compensatórios, sem nenhuma capacidade de reverter as tendências gerais.)
É falso confundir, como tem sido proposto, política antiinflacionária
com política de distribuição de renda. Embora a inflação seja um
mecanismo concentrador de renda, a atual política antiinflacionária,
paradoxalmente, age no mesmo sentido. Vejamos por quê. Numa economia frágil
e aberta, como a nossa, a instabilidade cambial transmite-se com muita força
aos preços internos (a volatilidade do câmbio é a principal via de contágio
da economia real a partir dos movimentos do capital especulativo), de modo
que as pressões inflacionárias não desaparecem, mesmo quando estamos em
estagnação ou recessão. Nesse contexto, o regime de metas inflacionárias,
adotado pelo Banco Central, exige políticas monetárias especialmente
restritivas. Porém, uma parte expressiva do sistema de preços (a parte
dolarizada e administrada) responde fracamente a essas políticas. Apenas
sete itens, cujos preços são fixados por contratos ou administrados pelo
governo (transportes públicos, energia elétrica, telefonia, remédios,
mensalidades escolares, combustíveis e taxas de água e esgoto), foram
responsáveis por quase a metade da inflação registrada no primeiro
semestre de 2003.
Por
causa da inflexibilidade desse subconjunto de preços que independe das
condições do mercado, o Banco Central, para atingir as metas de inflação
desejadas, precisa produzir recessão, contendo fortemente a demanda, de
modo que os preços dos setores concorrenciais caiam o suficiente para
puxar a média para baixo. Combina-se assim, paradoxalmente, um regime de
baixa inflação com um enorme processo de concentração de renda em
grandes empresas, por meio de alterações dos preços relativos de bens e
serviços. A taxa de inflação expressa apenas a média dos movimentos
dos preços, mas não mostra os deslocamentos de renda que têm ocorrido
por causa dessa brutal alteração dos preços relativos.
Com
o fim da âncora cambial que funcionou durante a vigência do Plano Real,
a “âncora salarial” – ou seja, a compressão pura e simples do preço
da força de trabalho, que é a renda dos trabalhadores – ganha cada vez
mais importância como mecanismo de controle da inflação. Tornou-se política
oficial no governo do PT. Em comunicado emitido em maio de 2003, o Banco
Central justificou sua opção recessiva afirmando que ela era necessária
para evitar que os trabalhadores obtivessem reajustes salariais capazes de
compensar a inflação passada. Ou seja, agiu explicitamente para agravar
as condições desfavoráveis do mercado de trabalho, tendo em vista
impedir que os trabalhadores conseguissem repor suas perdas. Sancionou
assim mais uma rodada de concentração da renda nacional.
7.
A política macroeconômica que
combina restrições fiscais rigorosas (com sucessivos aumentos de
impostos e contração dos gastos do Estado), taxas de juros elevadas,
metas de inflação e câmbio livre mostra evidentes sinais de esgotamento,
seja do ponto de vista do acúmulo de frustrações e tensões sociais que
atingem especialmente a base de apoio mais tradicional do PT, seja do
ponto de vista dos resultados obtidos. O desemprego, a queda generalizada
na renda dos trabalhadores, a rearticulação de movimentos sociais e a
frustração do funcionalismo público são expressões do primeiro grupo
de problemas.
Quanto
aos resultados pretendidos, vimos que o controle da inflação foi
provisoriamente obtido, com alto custo, mas a queda na relação dívida /
PIB – reiteradamente anunciada pelo ministro Palocci como sua outra meta
principal – frustrou-se. Essa relação era de 52,57% em dezembro de
2001, passou a 56,53% em dezembro de 2002 e oscilou na margem para 55,39%
em junho de 2003 (algumas projeções indicam que a relação voltará a
subir, podendo atingir 60% no fim do ano). A recessão, por sua vez,
compromete o próprio esforço arrecadatório do governo. No primeiro
semestre de 2003 as receitas federais com impostos diretamente
relacionados com a atividade econômica apresentaram expressiva queda
(equivalente a 1% do PIB), e entre maio e junho, quando a recessão se
acelerou, houve queda de 8% no total de impostos arrecadados pela Receita
Federal.
8.
Não é possível identificar com clareza qual
seria o motor da retomada do crescimento no segundo semestre deste ano,
prometida pelo presidente Lula em seus pronunciamentos. O investimento público,
como vimos, está em colapso, por força de uma gerência macroeconômica
cuja continuidade vem sendo reafirmada pelo próprio governo. A taxa real
de juros continua muitíssimo alta, abrindo alternativas atraentes de
ganho financeiro para os detentores de riqueza líquida, que assim não têm
por que investir na atividade produtiva. A taxa de câmbio permanece volátil,
inibindo o cálculo econômico de longo prazo, essencial à decisão de
investimento privado. A massa salarial está em queda livre, levando para
o fundo do poço a capacidade de consumo da sociedade. O nível de crédito
ofertado à economia é o mais baixo da história (24% do PIB),
confirmando uma tendência de queda que se mantém constante desde 2001.
Por motivos sazonais e de mercado, o ritmo das exportações cairá
significativamente nos próximos meses: dos US$ 17 bilhões de saldo
comercial projetado para 2003, US$ 11,4 bilhões já foram obtidos no
primeiro semestre. Em agosto, o comércio internacional do Brasil como um
todo – considerado como a soma de exportações e importações – começou
a declinar, atingindo os menores valores desde janeiro.
O
governo acena com seis alternativas: (a) a queda gradual da taxa nominal
de juros (que passou de 26,5% para 22%) e do depósito compulsório dos
bancos junto ao Banco Central (que passou de 60% para 45%), o que
estimularia a expansão do crédito; (b) a abertura de uma linha de
microcrédito para pessoas pobres (R$ 500,00) e pequenos empreendedores (R$
1.000,00), com taxas de juros de 2% ao mês e prazos de até 120 meses, até
um montante estimado em R$ 1,1 bilhão (público-alvo de 2 milhões de
pessoas); (c) a proposta de parceria público-privado (PPP), que visa a
atrair recursos empresariais para projetos tradicionalmente realizados
pelo Estado, especialmente nas áreas de infra-estrutura; (d) o aumento
dos gastos públicos, seja por um relaxamento relativo do
contingenciamento realizado pelo Ministério da Fazenda, seja pelo maior
domínio do próprio governo sobre a máquina administrativa (mesmo com
recursos muito apertados, os ministérios não conseguiram gastar R$ 2
bilhões liberados pela Fazenda, por incapacidade operacional); (e) o
recurso aos fundos de pensão para alavancar investimentos em infra-estrutura
a partir de 2004; (f) em caso de renovação do acordo com o FMI, a
realização de uma negociação em termos mais favoráveis, em que os
investimentos de empresas públicas seriam liberados, pelo menos
parcialmente, do draconiano contingenciamento hoje em vigor.
Os
resultados dessas medidas são muito incertos – para dizer o mínimo
–, e em nenhuma hipótese elas terão efeito em 2003. Em termos de
crescimento econômico, o ano já se perdeu. Quanto aos próximos anos, o
desempenho dependerá, em parte, da opção do governo brasileiro de
renovar ou não – e, se renovar, em que bases – o acordo com o Fundo
Monetário Internacional (FMI).
9.
Criado no contexto dos Acordos de Bretton Woods,
no fim da Segunda Guerra Mundial, o FMI é o emprestador de última instância
do sistema internacional, uma espécie de unidade de terapia intensiva (UTI)
à qual os países recorrem apenas em casos de desequilíbrio agudo na
conta-corrente do balanço de pagamentos. Na definição das políticas do
Fundo, o voto de cada país é proporcional ao número de cotas que cada
um detém, o que confere ampla preponderância aos Estados Unidos. No
mundo inteiro, em qualquer época, o recurso ao Fundo sempre foi
considerado uma situação excepcional, como mostra a própria trajetória
brasileira: nosso país nunca precisou fechar acordos com o Fundo até a
crise da dívida externa na década de 1980. Depois, alguns acordos foram
fechados e quase sempre descumpridos. Nos últimos cinco anos, porém,
começa a ganhar ares de normalidade a nossa permanência na “UTI do
sistema internacional”, pois só graças a ela temos conseguido evitar
que se explicite a crise cambial latente a que fomos conduzidos pelo
experimento neoliberal da década de 1990.
O
acordo assinado em 2002 previa um aporte de US$ 32 bilhões do FMI ao
Brasil, em seis parcelas, das quais falta apenas uma, a ser sacada em
novembro. Os recursos já foram gastos em grande parte, o que nos
transforma nos maiores devedores mundiais do Fundo.
Precisaremos
pagar US$ 25 bilhões em prestações que se estendem até 2007, o que
constituirá mais um foco de pressão sobre as contas externas brasileiras.
A boa vontade do Fundo depende da boa vontade do governo dos Estados
Unidos, dono da maioria das cotas, o que impõe evidentes limites ao exercício
da nossa soberania.
Tais
limites já estão presentes hoje, com grande força, pois os países que
recorrem ao Fundo ficam sujeitos às chamadas “condicionalidades”
definidas por ele, que combinam as chamadas “reformas estruturais”
(como a da Previdência, explicitamente exigida pelo FMI no último acordo)
com as políticas macroeconômicas neoliberais. Durante a vigência dos
acordos, o Fundo ganha o direito de impor decisões que afetam aspectos
cruciais da nossa política interna, cabendo-lhe ainda inspecionar
periodicamente o cumprimento das metas traçadas. Em 29 de junho de 2003,
Celso Furtado voltou a advertir para a gravidade dessa trajetória: “A
estratégia do FMI é prolongar a recessão até que aceitemos o currency
board [que equivale a uma eliminação do Banco Central, tal como ele
existe hoje] ou a dolarização da economia, o que é tremendamente
perigoso para a manutenção da soberania nacional.”
Também
Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial e Prêmio Nobel de
Economia, foi enfático: “É melhor ficar sem o dinheiro do FMI do que
aceitar um novo acordo que estrangule a economia do país.”
Será
uma decisão difícil. Obcecado pelo controle da inflação e agindo em
nome de uma política de defesa do câmbio livre – política que
praticamente não tem paralelo no mundo e é incompatível com a realidade
de um balanço de pagamentos estruturalmente deficitário –, o Banco
Central reduziu muito sua intervenção no mercado do dólar no primeiro
semestre do governo Lula, quando o movimento de entrada de capitais era
ascendente. Cometeu assim dois erros gêmeos: não recompôs as reservas
internacionais e deixou o real valorizar-se demais. Esses erros podem ter
conseqüências futuras seriíssimas, pois comprometem a continuidade do
saldo comercial, nos fragilizam diante de choques externos e desde já
enfraquecem a posição do Brasil em uma eventual nova rodada de negociações
com o FMI.
10.
Apesar do aumento do saldo comercial,
o front externo não permite tranqüilidade. As projeções do
Banco Central indicam a necessidade de US$ 39 bilhões para fechar as
contas externas em 2004 (US$ 5 bilhões para cobrir o déficit em conta-corrente
e US$ 34 bilhões em amortizações de dívidas). As reservas
internacionais líquidas brasileiras mantêm-se em torno de US$ 14 bilhões
(um pouco inferiores ao patamar do final de 2002), suficientes para
sustentar as necessidades de importação do país durante apenas três
meses. Com este nível de reservas e mantendo aberta a conta de capital do
balanço de pagamentos, permanecemos expostos a ataques especulativos
fulminantes, que podem comprometer, em poucas semanas, a coerência de
qualquer política econômica.
O
cenário internacional é preocupante. Parece estar havendo um
encurtamento dos ciclos de abundância e escassez no mercado internacional
de capitais, com exacerbação da volatilidade. Exemplo disso foi o
movimento brusco de valorização dos principais títulos brasileiros
negociados no exterior (os C-bonds) nos primeiros meses de 2003, antes de
iniciarem em julho um novo movimento de recuo, apesar da inesgotável
busca por credibilidade e a manutenção dos chamados “bons
fundamentos” da política econômica pelo novo governo. O colunista Luís
Nassif captou as causas disso, ao escrever em 2 de agosto: “Só o supino
amadorismo das autoridades monetárias para não aprender uma lição que
vem sendo repetida há anos: o tal do ‘mercado’ não analisa os países
sob a ótica de que os fundamentos estão bons ou maus, mas se o país está
caro ou barato. Seja qual for a situação do
país, se ele depender do capital especulativo, chega o momento em que
bate no limite de alta. Quando bate, não há milagre que faça o capital
permanecer no país, porque seu ambiente de lucro é a volatilidade – é
comprar ativos na baixa e vender na alta.”
Por
isso é que, mesmo tendo realizado todo o chamado “dever de casa” e
tendo sido elogiada durante anos pelo sistema financeiro internacional, a
Argentina quebrou. Tal como o Estado argentino da época de Menem, o
Estado brasileiro, como vimos, vem perseguindo os “bons fundamentos”
definidos pelo sistema: aprofunda a recessão e a dependência, e
concentra renda nos segmentos rentistas, detentores de riqueza líquida,
sempre dispostos a abandonar o país no momento oportuno. Não sairemos
dessa armadilha enquanto mantivermos aberta a conta de capital (herança
nefasta do governo Collor), expostos a um câmbio volátil combinado com o
regime de metas de inflação.
11.
A nação paga alto preço para
sustentar a atual política econômica, cujos efeitos são frustrantes e
cujas dificuldades são crescentes. O governo, no entanto, não se mostra
disposto a alterar seus fundamentos, à espera de sinais de reaquecimento
que, se vierem, terão vida breve, como ocorreu em todos os miniciclos de
crescimento dos últimos anos. Diante do agravamento da crise, com as
conseqüências sociais e políticas a ela associadas, é provável que
estejamos iniciando uma nova fase na ação governamental, mais errática.
Nela, a (perversa) coerência anterior não poderá mais ser sustentada
plenamente, por causa do agravamento da crise social, mas tampouco o
governo adotará uma política fundamentalmente diferente. A administração
Lula não dá nenhuma demonstração de que tenha, ou de que possa vir a
ter, capacidade de alterar o modelo neoliberal. Na tentativa de gerenciar
o modelo, tem sido levada a aprofundar suas características mais
importantes.
Nesse
contexto, menos do que questões tópicas de política econômica, poderão
entrar na agenda nacional certas concessões estratégicas de grande
alcance, como a independência do Banco Central e a adesão à Área de
Livre Comércio das Américas. Nesse caso, que ainda pertence ao terreno
das hipóteses, o governo Lula, para surpresa da grande maioria, terá
cumprido o papel de desarticular a oposição ao neoliberalismo e desarmar
as resistências da sociedade brasileira a um desmonte das derradeiras
instituições decisivas para a soberania nacional e a justiça social.
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