25
de abril, o encontro da revoluçao com a História
Quando
o futuro era agora
Por
Valério
Arcary
Professor do CEFET/SP e Doutor em História pela USP
Outubro, abril del 2004
“À sombra de uma azinheira,
que já não sabia a idade, jurei ter por companheira, Grândola, tua
vontade”. (Zeca Afonso, cantor popular português)
Em
Maio de 1926, um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república
portuguesa, e os militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, um
professor de Coimbra, para ser ministro das Finanças. Assumirá a
posição de primeiro-ministro em 1932. Conhecido, também, como
Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta, quando
o capitalismo europeu recorria em larga escala, mesmo em países mais
desenvolvidos, aos métodos da contra-revolução.
A
ditadura salazarista sobreviverá, todavia, à queda de Hitler e
Mussolini, assim como a franquista na Espanha, mas a burguesia deste
pequeno país, herdeira de um imenso império ultramarino, resistirá,
também, à vaga de descolonização do pós-guerra, e enfrentará uma
guerra de guerrilhas em África a partir de 1960. O fascismo
“defensivo” deste Império desproporcional e semi-autárquico
atravessou mais de quatro décadas. As reformas, tantas vezes
esperadas, não vieram, e o que as classes proprietárias evitaram
fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela
revolução. E já se disse que as revoluções adiadas são as mais
radicais. O fascismo obsoleto e decadente acabou abrindo o mais
profundo processo revolucionário na Europa, depois da Guerra Civil
Espanhola em 1939.
Da
guerra interminável ao MFA
Quarenta
anos depois, em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro
"Portugal e o Futuro". Foi um marco porque, pela primeira
vez, uma voz do mais alto comando das Forças Armadas - ex-comandante
em chefe do Exército na Guiné-Bissau - desafiava o principal tabu da
ditadura, admitindo, publicamente, que era impossível uma solução
militar para a guerra. Spínola defendia que o regime tomasse a
iniciativa política de um projeto de descolonização inspirado no
modelo inglês do pós-guerra. Para surpresa de todos, o Governo de
Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro, o que sinalizava
que as divisões dentro do bloco de sustentação do regime eram muito
maiores do que pareciam. O parecer favorável para a publicação foi
feito por ninguém menos que o general Costa Gomes, que sucedeu Spínola
na presidência, depois do fracasso do autogolpe de 28 de setembro de
1974:
“O autor defende com muita lógica uma solução
equilibrada, que podemos situar a meio caminho de duas soluções
extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios
ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração
em um todo homogêneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos
extremistas de direita (...) estas soluções devem ser postas de
lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda
por ser inexeqüível”
O
que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a
ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já
estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A
fraqueza do governo Marcelo Caetano era de tal magnitude, que cairia
como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra.
Pela porta aberta pela revolução antiimperialista nas colônias,
iria entrar a revolução política e social na metrópole.
A
guerra em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau mergulhou Portugal em
uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, ainda semi-urbanizado,
e defasado, acentuadamente, da prosperidade européia dos anos
sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço
militar e da pobreza, não podia continuar mantendo, indefinidamente,
um exército de dezenas de milhares de homens em uma guerra africana.
O
serviço militar obrigatório era de espantosos quatro anos, dos quais
pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Milhares de mortos, sem
contar os feridos e mutilados. Foi do interior desse Exército de
recrutas, que não eram soldados profissionais, que surgiu um dos
sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA.
Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole, essa
oficialidade média estava cansada de uma guerra sem solução militar
e, esgotada com a obtusidade da ditadura, e ansiosa por liberdades,
rompia com o regime.
“Um levantamento sociológico revelou que os
membros do Movimento dos Capitães eram, do ponto de vista sociológico,
filhos da pequena burguesia e das classes médias (alguns da classe
operária). Nascidos nos anos quarenta (portanto, jovens na faixa dos
trinta anos). Uma maioria relativa (39,4%) provinha de famílias de
servidores públicos(...) Em 1974 havia 4.165 oficiais permanentes no
Exército; desse total, 703 participaram do golpe (16,9%)... e 80,8%
eram capitães e majores.” [2]
Estas
pressões sociais explicam também os limites políticos do próprio
MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano,
entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor a partir do
11 de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação
nacional – a tentação de substitucionismo das massas - à maneira
de movimentos militares em países da periferia, como no Peru, fez o
balanço, com uma franqueza desconcertante:
“Este
sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade
de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no “bom” caminho,
nos perseguiria até o final, com as funestas conseqüências já
conhecidas. Este obstáculo voltaria a surgir mais tarde, revelando-se
de difícil solução(...)Alguns excelentes oficiais se sentiam,
contudo, desamparados fora de sua limitada esfera de ação
profissional, exigindo o recurso á figura paternalista de alguém com
mais condecorações, homem de experiência, que entendesse seriamente
dessas coisas da política.”
A
economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente
industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho
em dois “nichos”, os dois pilares empresariais do regime, a
exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos
controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que têm 80%
dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias,
5 das 7 maiores exportadoras. Os monopólios comandavam, mas não
havia dinâmica de crescimento. O país permaneceu, comparativamente,
estagnado, enquanto a economia européia vivia o boom do pós-guerra.
A ordem salazarista se manteve depois da morte do ditador, com um
implacável braço armado - a PIDE - 20.000 informantes, mais de dois
mil agentes, e o apoio de 80.000 legionários.
Os
Cravos vermelhos de Abril
Os
dias de Caetano estavam contados. Não há, é certo, um sismógrafo
de situações revolucionárias. É muito difícil prever como e
porque as grandes multidões populares, urbanas ou rurais, que
aceitaram com resignação situações tirânicas, durante décadas,
depois se colocam em movimento, e despertam com fúria para a arena
política, em busca de uma solução coletiva para as suas
reivindicações.
Recordemos
que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de um levante
militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular. A insurreição
é um dos tempos da revolução. O que existiu de extraordinário na
revolução dos cravos não foi o colapso da ditadura na madrugada do
25 de Abril - embora esta tenha sido espetacular - mas a entrada em
cena de milhões de pessoas, em sua maioria trabalhadores e jovens,
como sujeitos do processo revolucionário. A História está cheia de
exemplos de quarteladas e golpes palacianos que triunfaram, apesar da
indiferença e apatia popular, assim como, inversamente, de autênticas
revoluções populares que foram derrotadas, antes de terem reunido
forças para a insurreição.
Mas,
sendo diferentes, estão às vezes associados. Não é incomum que
golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente,
como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima.
As operações palacianas podem "abrir uma janela" por onde,
depois, irá entrar o vento da revolução que estava, até então,
contido.
Uma
revolução política que transborda em uma revolução social
Talvez
surpreenda a caracterização de revolução social. O 25 de Abril, em
si, foi uma operação militar que transbordou em revolução política
que, por sua vez, abriu um processo revolucionário. O conteúdo
social objetivo do processo foi determinado pelas tarefas pendentes
– fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária,
trabalho para todos, elevação dos salários, moradia, acesso ao
ensino público - que não se resumiam à derrubada da ditadura.
Uma
revolução não pode ser analisada somente pelos seus resultados.
Estes explicam, quantas vezes, mais sobre a contra-revolução do que
sobre a revolução. Havia outras possibilidades, que estavam na ordem
do razoável. Outros desenlaces. Há que considerar quais foram os
sujeitos sociais e políticos, e a dinâmica histórica da situação
nacional e internacional. Trotsky estudou este movimento na história
das revoluções:
“As
distintas etapas do processo revolucionário, consolidadas pelo
deslocamento de uns partidos por outros cada vez mais radicais,
expressam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que o
impulso adquirido pelo movimento tropeça em obstáculos objetivos.
Então começa a reação: decepção de certos setores da classe
revolucionária, difusão do indiferentismo”.
A
queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de
radicalização popular incomparavelmente mais profunda - uma situação
revolucionária - em que foram sendo construídas as experiências de
auto-organização, a tendência histórica de busca de organismos de
democracia direta para a luta, ou poder popular, embrionárias do
duplo poder.
Podemos dividir o processo em quatro conjunturas sempre mais
radicalizadas à esquerda:
(a)
de abril de 1974 até o 28 de setembro, uma situação revolucionária
típica das revoluções políticas ou democráticas - os
“fevereiros” - em que se garantiram as liberdades democráticas,
se garantiu o cessar-fogo em África, e derrotou o projeto spinolista
de consolidação de um regime presidencialista;
(b)
entre 28 de setembro de 1974 e o 11 de março de 1975, quando se
iniciam as ocupações de terras no Alentejo, e se acentua o caráter
social dos enfrentamentos, uma clivagem mais nítida dos antagonismos
de classe, porque a auto-organização adquire a força política de
uma dualidade de poderes, mas permanece atomizada;
(c)
entre o 11 de Março e Julho, com o reconhecimento das independências,
menos Angola, a generalização da auto-organização de massas, formação
de comissões de trabalhadores em centenas de empresas e das unidades
coletivas de produção nos latifúndios expropriados, quando se
precipita uma situação revolucionária, mas sui generis, porque o
duplo poder não está unificado, nem encontra centralização, e os
revolucionários não conquistaram influência de massas política;
(d)
finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975,
com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização
anticapitalista, desgarramentos de bases de massas da influência do
PS e do PCP, formação dos SUV (auto-organização de soldados e
marinheiros) e manifestações armadas, uma ante-sala de uma revolução
social - um “pré-outubro” – em que, ou o deslocamento do Estado
ou um golpe contra-revolucionário se tornavam inadiáveis.
Seis
governos provisórios se sucederam até o 25 de novembro, expressando
o curso à esquerda do processo até o “verão quente” de 1975. O primeiro durou até 13 de Julho de 1974, com Palma
Carlos – homem da confiança de Spínola - como primeiro-ministro,
quando a assembléia do MFA o substitui por Vasco Gonçalves, que
ficará no poder até à queda do V Governo. A representação das forças
diretas do capital foi sendo reduzida, até que só permaneceu como
uma sombra burguesa. O III governo assume no 28 de setembro, quando
fracassou a primeira tentativa de golpe, um chamado público de Spínola
à "maioria silenciosa" que, ou não era maioria, ou além
de muda era, também, surda, e ficou em casa, enquanto Spínola se via
obrigado a renunciar, entregando a presidência para o general Costa
Gomes.
A burguesia prepara um novo golpe
Mas as energias do projeto de neocolonialismo à inglesa
não tinham ainda se esgotado. Tentaram o putsch korniloviano, de
novo, no 11 de março - mais organizado, com tentativa de bombardeio
de Lisboa. Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às
ruas. No dia seguinte, diante do pânico burguês, a estatização dos
principais bancos. Outras viriam, nos seguros, siderurgia, cimentos,
etc... O IV governo provisório se instala em 26 de março.
Derrotado
Spínola e seu projeto neocolonial, que só tinha sustentação nas
mesmas famílias e grupos que tinham preservado Caetano até ao
colapso, o país estava dividido, irreconciliavelmente, e ninguém
podia saber para onde iria pender a roda da história.
África, porém, estava perdida. A burguesia passou a temer o pior,
também, na metrópole. Reorientou-se para o projeto europeu. A
reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças
Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo,
continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política,
e tentar ganhar a maioria das classes médias, e neutralizar os
trabalhadores.
Não tendo
mais Spínola como carta na manga - e debilitados o PPD e CDS pela
ligação com Spínola - não tinha instrumentos diretos, a não ser o
peso sobre a alta hierarquia das FFAA, e precisava recorrer à pressão
da burguesia européia, e dos EUA, sobre a socialdemocracia e sobre a
URSS, para que enquadrassem o PS e, sobretudo, o PCP.
A hora da vertigem
Depois
do 11 de março, foi a segunda primavera das utopias e das esperanças.
Lisboa era uma das capitais mais livres do mundo.
Os trabalhadores exigiam a satisfação de suas reivindicações –
independência das colônias, liberdade, salários, trabalho, terra,
educação, saúde, previdência - e aprendiam, no calor da luta, que
sem expropriações não poderiam conquistá-las. Foi pela mobilização
que surgiram os organismos que desafiavam o poder dos governos provisórios.
Começa a etapa do “assembleísmo”.
Em
vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em
todas as grandes e médias corporações, muitas delas depois
nacionalizadas, como a CUF (Companhia União Fabril) - só ela, 186 fábricas
- a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial em frente de
Lisboa, do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais
influentes da burguesia reage declarando “os operários são atualmente demasiado livres”.
Os
operários da Lisnave, desde o princípio, deram o exemplo – foram a
Putilov da revolução portuguesa - organizaram piquetes para ocupar o
seu sindicato e impuseram negociações com a administração. Na
Amadora – a Vyborg ou o ABC de Lisboa, uma das grandes concentrações
operárias – a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas
do país entra em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault,
a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas
também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas
minas da Panasqueira. A onda de auto-organização – formação nas
empresas de comissões de trabalhadores - que aprofunda a dinâmica
revolucionária da situação, produz reações:
“Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados:
“Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem
tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o
caderno reivindicativo. Em muitos caos, os trabalhadores não se
limitam a exigir mais dinheiro, passam á ação direta, tentam tomar
o poder de decisão e instituir a co-gestão sem estarem preparados
para isso”. (Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74). Para
recuperar as “formas tradicionais de luta”, o PCP lança em 19 de
julho a consigna de substituir as comissões de trabalhadores por
delegados sindicais.”
Ainda
quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para freiar - ou
sabotar - as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se
generalizavam, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas
desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; saneamentos - o eufemismo
para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior
parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão
estudantil nas Universidades impunha assembléias para discutir de
tudo. Toda a antiga ordem parecia desabar, e as mudanças se
precipitavam em vertigem. Uma parcela significativa da burguesia,
diante do imponderável, fugia do país. A luta mudava a vida:
“A criação do salário-mínimo nacional abrange
mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores
menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a
vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O
poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários
que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em
1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são
nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do
Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55.000 operários; 700
empresas entram em auto-gestão, com 30.000 operários.”
Mas,
a situação aberta pela queda de Spínola trazia novos desafios. A
burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada.
Diante das exigências burguesas, o PS (Partido Socialista) e o PCP
(Partido Comunista), as forças políticas de longe majoritárias, e
as únicas com autoridade moral na direção dos Governos Provisórios
- além do MFA - dividiram-se e provocaram uma cisão entre os
trabalhadores e seus aliados.
No 25 de abril de 75, as eleições para a Constituinte surpreenderam.
Três projetos e três legitimidades entraram em conflito. Essa divisão
atravessou, também, o MFA. Surgiram três campos: o do governo de
Vasco Gonçalves, com o PCP, e se apoiava na maioria do MFA; o de
Soares, que reivindicava a autoridade da votação nas urnas, e o mais
frágil, subjetivamente, porém, o mais temido, porque
anticapitalista, aquele que nascia dos embriões de poder popular.
Um
projeto autárquico
O
PCP foi um dos primeiros partidos comunistas a participar em um
governo na Europa Ocidental no pós-guerra. Antes dele, um PC esteve
em uma coligação na Islândia, mas não parece ter preocupado
Washington. O partido de Álvaro Cunhal foi a única organização que
atravessou toda a resistência á ditadura de Salazar. Os anos de
condenação à prisão dos membros do seu comitê central somavam
mais de dois séculos, e isso dá uma idéia do respeito entre as
massas que odiavam o fascismo.
Mas
era, também, um dos partidos mais organicamente integrados com Moscou
e com uma direção muito mais homogênea que partido de Santiago
Carrillo no Estado Espanhol. A maior parte de seus quadros viveu
longas estadias na URSS, ou no Leste. Cunhal não seria nem um Tito,
nem um Mao. O PCP tinha resistido, intacto, ás rupturas pró-pequim,
e às pressões castristas. Depois do 25 de abril foi majoritário nas
grandes concentrações da classe operária, nos trabalhadores rurais
do Alentejo, e no campesinato pobre do interior e, também, na população
plebéia do sul do País. Concentrava sua influência, contudo, na
Grande Lisboa.
Chegou
a ter uma influência importante dentro do MFA que se expressava,
sobretudo, através da Quinta Divisão. Á cabeça de uma estrutura
organizada de perto de 100.000 militantes, era uma máquina política
de uma eficiência incrível, capaz de organizar manifestações de
rua com dezenas de milhares, literalmente, do dia para a noite.
Participou dos Governos provisórios desde o princípio. Durante o V
Governo Provisório – depois da ruptura do PS, quando já não havia
representantes diretos da burguesia - defendeu Vasco Gonçalves até o
último dia.
Embora
a URSS estivesse preocupada com uma revolução anticapitalista em um
pequeno país da Europa Ocidental – inaceitável para os EUA –
tinha interesses na África. Sem a perspectiva da prioridade da política
em relação a Angola, Guiné e Moçambique, seria impossível
analisar a estratégia do partido de Cunhal. A questão africana
estava no centro das preocupações diplomáticas da URSS no Sistema
Mundial de Estados:
“O PCP lança-se numa corrida contra-relógio que
lhe permita criar as condições para uma descolonização rápida,
que possa pôr de parte quaisquer veleidades de intervenção por
parte de outras potências e favorecer a transmissão de poderes nas
colônias para as mãos dos movimentos que á partida estão, de fato,
em melhor situação: a Frelimo, o PAIGC e o MPLA.”
O
PCP tinha um discurso assombroso. Procurava convencer as massas em
luta que o poder político já tinha sido conquistado. Só faltava o
poder econômico, mas a “democracia nacional” permitiria
disciplinar o capitalismo. Uma fórmula etapista que justificava a renúncia
ao antagonismo capital/trabalho como o decisivo, combatendo qualquer
perspectiva de ruptura anticapitalista. Defendia a aliança com o MFA
como estratégica e argumentava, em coerência, que o socialismo não
estava na ordem do dia. Destacou-se, como os PC’s da França, da Itália
e até do Brasil, ao final da Segunda Guerra Mundial, na campanha pela
“batalha da produção” contra o que considerava um “grevismo”
aventureiro e esquerdista:
“Numa fase inicial do processo, beneficiando da sua
longa existência, de sua organização, de sua disciplina e da sua
experiência – trunfos que lhe garantem à partida uma capacidade de
manobra, de ataque e resposta, de avanço e recuo, infinitamente
superiores às de qualquer outro partido – é o PCP quem segue á
frente. É por seguir à frente, por se sentir, em certa medida
confundido com o Poder – o Poder de fato – que o PCP se torna o
principal adversário do movimento grevista. (...)
Segundo
Cunhal, uma revolução social não era possível, e se tratava de
recuperar uma economia capitalista em frangalhos, o que exigia algumas
nacionalizações, e construir um reformismo – um Estado menos
atrasado – que acomodasse as reivindicações populares. O PCP se
lança, então, a uma política de “guerra de posições”, não
entre as classes, mas entre os partidos: disputa de influência, ocupação
de cargos e controle feroz de espaços por dentro e por fora do
Estado. Alimenta uma sistemática política aparelhista que semeia a
divisão e a desconfiança entre os trabalhadores, em seu afã burocrático
e prática de monolítismo:
“Esta situação no 11 de Março, atingiria o seu
ponto alto. Aí, ao tomar, praticamente sozinho, o controle da máquina
do Estado, o partido comunista assinava a sua sentença de morte como
partido de governo (...) A necessidade de atuar com rapidez o conduz a
uma prática política caracterizada pela intransigência, pelo
sectarismo, não poucas vezes, pelo “golpismo”, o que, longe de
contribuir para apagar a idéia – largamente difundida – de que os
comunistas são sectários, dogmáticos e agressivos, e que estão na
inteira dependência da URSS, desde logo colocou contra si muita gente
que tinha assistido com simpatia a chegada de Avaro Cunhal a
Portugal.”
Apoiava
uma corrente de opinião majoritária - até a independência das colônias
- entre os oficiais que compunham o Conselho da Revolução, o
organismo mais alto do MFA que exercia, de fato, uma tutela sobre o
Governo – diminuindo o papel das relações políticas entre
partidos na Constituinte - depois do 11 de Março. O PCP era conseqüente
com a estratégia da “aliança do povo com as Forças Armadas”, e
propunha o respeito á hierarquia da cadeia de comando que passava
pela disciplina ao MFA:
“Dentro das Forças Armadas não serão permitidas
quaisquer organizações de caráter político-militar, partidárias
ou não, estranhas ao MFA, devendo progressivamente, todos os
militares serem integrados no seu próprio movimento”
Afirmava
a necessidade de um projeto nacionalista semi-autárquico, a
“democracia nacional”, porque pretendia, ao mesmo tempo,
reconhecer a independência das colônias, mas salvaguardando os
interesses portugueses, que não eram poucos, e preservando a condição
de semi-metrópole interlocutora entre a África e a Europa. O mito de
que poderia acontecer um “golpe comunista” - uma invenção que
servia para a mobilização contra-revolucionária - era bombardeado
por Soares, e por toda a imprensa de direita, e os tambores da
extrema-direita, histéricos, rufavam:
“Toda a ficção acerca dos intuitos do PCP de
conquistar o poder, a análise da iminência de “um golpe de
Praga”, que teve grande importância neste ano I da revolução
portuguesa, não passavam de elementos de uma ofensiva ideológica com
o objetivo de estimular a divisão do movimento operário. Não têm
um átomo de verdade. O que, em contrapartida, os revolucionários
devem denunciar em um balanço rigoroso, é justamente a adaptação
do PCP ao poder constituído que procurava preservar as relações de
produção, num contexto em que o partido procurava ganhar margens de
manobra, postos de controle, instrumentos de influência(...)Um
testemunho conclusivo é o de Costa Gomes que conta que Brejnev lhe
confidenciara as suas preocupações com a evolução portuguesa e a
necessidade de o país se manter no quadro da NATO”
A
estratégia do PCP correspondia aos interesses diplomáticos da URSS
no Sistema mundial de Estados. Flertavam, portanto, com o movimento
dos não-alinhados, como uma via intermediária entre um alinhamento
com a Europa, que queriam pelo menos adiar, e uma ruptura, que queriam
impedir. Apoiavam-se nas impressionantes mobilizações de massas,
para desviá-las para dentro dos limites do regime. Freavam a
auto-organização, sempre que possível, em especial nos quartéis.
Havia um desconforto do Governo, MFA e PC com a ação direta que
questionava a propriedade privada dos grandes monopólios, bancos e
latifúndios do Alentejo, mas o processo tinha uma dinâmica
anticapitalista independente que ninguém conseguia controlar até o
fim. Afinal, como defender a propriedade dos cúmplices golpistas de
Spínola?
A
reação “democrática”
O
imperialismo americano, mais ativo que o europeu durante a revolução
portuguesa, era muito consciente que a questão africana se disputava,
também, em Lisboa. Não foi á toa que a esquadra da NATO estacionou
no Tejo em 1975. Pressionou, primeiro, para que a revolução fosse
controlada pelo MFA, mesmo se aliado ao PCP e, depois, quando ficou
claro que o governo de Vasco Gonçalves era incapaz de conter as bases
sociais nas quais se sustentava, aliou-se à oposição de direita.
Coube
ao Partido Socialista, liderado por Mário Soares - homem de confiança
da Europa - o papel chave na disputa política pela estabilização,
diante da fragilidade estrutural dos partidos burgueses. Seu plano era
derrubar o V Governo, pela divisão do MFA e, na seqüência, afogar a
revolução nas urnas.
O
PS foi o partido dos trabalhadores de serviços e dos operários mais
moderados, mas, também, da maioria das classes médias, sobretudo no
centro e no norte do país, que conquistou o apoio da burguesia, da
Igreja, e da oficialidade reacionária das Forças Armadas. Queriam
consolidar um regime democrático liberal estável, e enterrar o mais
rápido possível a experiência de dualidade de poderes que se
disseminava. Reconstruir a autoridade do Estado era a sua estratégia.
O
PS esteve presente em todos os governos provisórios até Julho de
1975, quando rompeu com Vasco Gonçalves. A partir daí, Soares se lançou
a uma campanha virulenta de oposição ao V Governo, operando a divisão
do MFA – apoiando a formação do Grupo dos Nove, liderado por Melo
Antunes e Vasco Lourenço - e construindo uma mobilização que levou
centenas de milhares de pessoas à Alameda da Fonte Luminosa. Uma
campanha deste porte não seria possível somente com a base social da
contra-revolução. Muitos milhares de trabalhadores que repudiavam as
limitações às liberdades democráticas que vinham sendo ensaiadas
se uniram ao chamado do PS, configurando uma irremediável divisão.
Usou
como bandeira a defesa das liberdades democráticas e, como exemplo, o
episódio do jornal República.
Uma ocupação pelos operários gráficos do jornal de Raul Rego,
membro da Executiva do PS, uma ação que dividiu os trabalhadores e
as classes médias, porque embora apoiada na legitimidade da
reivindicação de direitos, seqüestrava o jornal diário da
socialdemocracia, foi o pretexto para iniciar uma campanha de mobilização
para derrubar o V governo. Nas palavras do próprio Mário Soares:
“A nossa revolução está em perigo na medida em
que se põem em causa as instituições democráticas que são o seu
primeiro fundamento e justificação(...) Existe uma crise geral de
autoridade do Estado, corroído pela demagogia, pela
irresponsabilidade e pelo anarco-populismo”.
Temiam
a dinâmica que a dinâmica anticapitalista se alastrasse para a
Espanha, ainda sobre a ditadura franquista – mas em uma situação
muito instável, que poderia evoluir para revolucionária - e
radicalizasse as massas jovens e trabalhadoras em todo o sul do
Mediterrâneo, poucos anos depois da maré de 1968. A carta da integração
na Comunidade Européia, e a promessa de estender para os portugueses
um padrão de vida semelhante ao dos europeus, que uma parte
significativa da população conhecia, pela importância econômica
dos emigrantes na frágil economia do país, era seu trunfo mais
importante.
A
Igreja católica se somou a esta frente que tinha em Soares a voz, na
força de aparato do PPD (hoje PSD) – partido burguês que reunia,
em sua maioria, os quadros do salazarismo reciclado - e no CDS (hoje,
PP) – a extrema-direita ideologicamente mais dura - suas pernas e músculos,
e nos Cardeais e Bispos a sua autoridade moral. Não faltou também o
dinheiro. Muitos milhões de dólares articulados pela embaixada -
dirigida pelo tristemente célebre Frank Carlucci, não
acidentalmente, depois, o homem de Reagan na Nicarágua e, hoje,
grande investidor imobiliário em Portugal - para lançar jornais,
manipular as rádios, e convocar às ruas multidões, dos segmentos de
classe média mais atrasados dispostas a proteger o país do perigo da
"comunização" totalitária.
“Por trás do discurso legalista estava a sórdida
realidade da divisão operária, do confronto aberto, instrumentos das
políticas tanto do PS, quanto do PCP. Um jornalista próximo d Soares
e de Mitterand, Jean Daniel, do Nouvel Observateur, chegava a este
ponto na justificação da política soarista: “Se o PC perseverar
diabolicamente numa lógica que implica a eliminação dos outros
partidos operários, que outro caminho fica senão combatê-lo
tornando-se um aliado objetivo dos reacionários, dos clericais, dos
fascistas que ainda ontem reinavam em Portugal?.”A resposta foi o
que se viu: piedosas manifestações destruindo sedes, atentados
bombistas de vários calibres e, por detrás das cortinas de fumo das
ideologias, a preparação do bloco político que organizou civil e
militarmente o 25 de novembro.”
Depois
de derrubado o V governo, o plano se revela por inteiro, arrasador.
Mandar os soldados e marinheiros ganhos pela revolução para casa,
sumariamente, e convocar novos soldados; institucionalizar o MFA e
restabelecer a hierarquia das FFAA; destruir o duplo poder, acabando
com o assembleísmo, o direito dos trabalhadores se reunirem dentro
dos locais de trabalho e se manifestar; “liberar” a Assembléia
Constituinte da tutela do MFA; realizar, o mais rápido possível,
eleições presidenciais; chantagear as massas nas eleições com a
promessa de que o dinheiro da Europa e dos EUA, só viriam se os
extremistas fossem derrotados.
A
luta pelo poder popular
Se
o PC estava associado ao V governo que era incapaz de controlar a vaga
de ascenso, mas resistia, também, ás pressões do imperialismo, e o
partido de Soares encabeçava a oposição de direita, a grande questão
era saber se as forças anticapitalistas estariam dispostas a liderar
a oposição de esquerda e com quais perspectivas. Afinal, o terceiro
campo – as forças à esquerda do V governo - era o único que
defendia, em tese, a necessidade da revolução socialista, e o mínimo
que se pode dizer para descrevê-lo, é que era acéfalo. Não
conseguiram sequer se afirmar como oposição.
O
impacto de suas iniciativas políticas, no entanto, foi significativo.
Decorria da capacidade de mobilização de setores de vanguarda, que
manteve durante uns três anos, desproporcionalmente maior que a real
implantação social. Tinha influência, embora minoritária, entre os
jovens operários e estudantes, não possuía direção homogênea,
mas contava com a simpatia de uma parcela grande da base socialista e
comunista que, sem romper com seus dirigentes, estava pressionada pelo
entusiasmo da participação nos organismos de democracia direta.
A
iniciativa de seus militantes anônimos, mas despojados e corajosos,
esteve no estopim de uma parte significativa de episódios heróicos
da revolução. Mas, o balanço político mais geral foi desolador.
Ela se dividiu em três posições. Sem um eixo político muito claro,
a extrema esquerda cedia às pressões dos dois aparelhos mais
poderosos da esquerda, o PS e o PCP, e não parece injusto dizer que
foi aprisionada pela força de gravitação, ou do estalinismo, ou da
socialdemocracia.
A
primeira, e mais influente – em especial no MFA e na
intelectualidade - articulava o MES (Movimento de Esquerda
Socialista), onde militava uma boa parcela da esquerda de origem católica,
entre eles o atual presidente Jorge Sampaio, a Luar (Liga de Unidade e
Ação Revolucionária) e o PRP (Partido Revolucionário do
Proletariado), na origem de inspiração castrista, defendia um bloco
das organizações revolucionárias com o MFA. Mantendo uma independência
um pouco maior, a UDP, acompanhava.
Não
valorizavam a necessidade da construção de organismos unitários de
base, uma possibilidade de abrir um caminho para a ruptura das massas
socialistas e comunistas com suas direções. Tendiam a uma estratégia
superestrutural de alianças por cima com sectores da oficialidade.
Primeiro constituiu a FUP (Frente de Unidade popular), respondendo a
um chamado de Cunhal, em apoio direto a Vasco Gonçalves, e depois a
FUR (Frente de Unidade Revolucionária), quando o PCP rompe, até com
a adesão da UDP e da LCI, com uma posição mais ambígua. A liderança
carismática de alguns oficiais do exército, como Otelo Saraiva de
Carvalho, aparecia como um ponto de apoio, e exercia um fascínio:
“A
extrema-esquerda começou por desenvolver a estratégia da insurreição
em aliança com o MFA e o PCP, que consistiria, na realidade, na
potencialização da relação de forças militar estabelecida pelo
COPCON. A “aliança povo-MFA” decorria logicamente daí – e
viu-se como entravou a luta dos trabalhadores e facilitou o
reagrupamento dos seus adversários. A partir da altura em que uma
premissa deste esquema começa a ruir, com as divisões e paralisia do
MFA, operam uma pequena variação tática (...) A FUR vem ainda no
prolongamento deste tipo de atitudes”.
Esqueceram-se,
por suposto, de acertar com o PCP e com seus aliados no MFA... Esta
suposta insurreição só existia no mundo dos desejos. Consideravam,
também, que o perigo de um golpe fascista seria iminente, e um regime
de dominação democrático-burguesa, senão impossível, pelo menos
improvável. Segundo Cezar Oliveira, um dos seus líderes:
“As classes
dominantes em Portugal só têm uma saída: um regime autoritário,
centralizado e fortemente repressivo,, capaz de garantir a
estabilidade política e uma “paz social” que lhe permita
reconverter uma estrutura econômica dependente da exploração
colonial, da divisão internacional do trabalho, da própria existência
de fascismo”
A
conclusão simplista - e até ingênua - de que a revolução só
poderia ser derrotada por uma contra-revolução fascista era, então,
muito influente em função do golpe de Pinochet no Chile. Afinal, Spínola
não tinha formado desde seu exílio um sinistro MDLP (Movimento
Democrático de Libertação de Portugal)? O próprio Vasco Gonçalves
considerava que a burguesia portuguesa só poderia governar, se
protegida pela repressão das baionetas, e insistia que a
socialdemocracia era a ante-sala do fascismo.
A
segunda posição era ocupado pelo maoismo pró-Pequim - linha
“bando dos quatro” - e tinha duas organizações, o PCP(m-l) e o
MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado).
Acreditavam que, em Portugal, depois da ruptura do PS de Mário Soares
com o V Governo, o maior perigo era o social-imperialismo russo, em
função do peso reforçado do PCP. A estratégia delirante era uma
aliança com Soares e, depois, com o golpe de Ramalho Eanes no 25 de
novembro.
A
terceira posição mal conseguia se fazer expressar nacionalmente, e
era composta por lideranças inexperientes e, politicamente, quase
imberbes. As três organizações com intervenção independente que
reivindicavam a tradição da Quarta Internacional eram acentuadamente
minoritárias. Duas delas tinham uma intervenção pública
independente – LCI (Liga Comunista Internacionalista) e PRT (Partido
Revolucionário dos Trabalhadores) – e a terceira, articulada com a
OCI francesa, se expressava dentro do PS. A imaturidade cobrava seu
preço.
Os
trotskistas tiveram linhas diferenciadas, e não conseguiram sequer
uma participação eleitoral conjunta em 1975 e 1976. Lutaram pela
frente única PS/PCP – não cederam as tentações substitucionistas
dos que, na extrema –esquerda, pretendiam ignorar a influência
majoritária de Soares e Cunhal - contra a orientação divisionista
de suas direções, resistiram ao bonapartismo do V governo, e
apoiaram as lutas e as experiências de construção de organismos de
poder popular.
A
revolução impossível
No
25 de novembro de 1975, a primeira derrota séria. Na sua origem, uma
provocação. Uma ordem do estado maior desmobilizava alguns
regimentos, e mandava todos para casa. Em resposta, um levante militar
de pára-quedistas, influenciados por setores da extrema-esquerda,
tinha se iniciado durante a madrugada. Chegaram a tomar o controle da
televisão e iniciar uma emissão. Entretanto, uma ala da oficialidade
- vinculada ao grupo dos nove - deu um contra-golpe fulminante, e
assumiu o poder dentro das FFAA, destruindo a democracia direta nos
quartéis. A maioria do MFA cede, incluindo Otelo, e o PC também,
argumentando que o país não teria como suportar uma guerra civil. As
liberdades democráticas não foram destruídas, mas todas as
conquistas sociais ficaram ameaçadas.
A força da resistência operária popular, apesar das divisões,
ainda permanecia viva, mas a aliança com os soldados, marinheiros e a
oficiais mais radicalizados tinha se rompido, com a recuperação da
disciplina interna do Exército. Um depoimento de greve, um mês
depois do 25 de novembro, é revelador:
“Decidiu-se formar piquetes á entrada da fábrica
para fiscalizar entradas e saídas. Os operários da Cambournac
continuam a sua luta ocupando a fábrica no fim de semana. Os 800
trabalhadores não irão para a rua, haja falência ou não. Estamos
dispostos a lutar pela posse daquilo que sempre nos foi roubado e não
estamos passivos à espera do Governo, pois só a classe operária
pode libertar-se.”
Na
seqüência, faltava o mais difícil, derrotar os trabalhadores. Como
não podia se arriscar a um confronto direto, como nos quartéis, a
solução improvisada foi política. Ramalho Eanes, o general do 25 de
novembro, foi eleito presidente da república nas eleições
presidenciais de 1976. Teve o apoio do PS e de todos os partidos
burgueses. Teve o apoio entusiástico do MRPP, à época dirigido por
Arnaldo Matos.
Mário
Soares recebeu seu prêmio. Foi eleito primeiro ministro, depois das
eleições legislativas em 1977, e o MFA foi dissolvido. A partir de
então, ao longo de três anos, apesar da resistência nos setores
mais organizados, a revolução foi agonizando.
Aquele
que escreve viveu os seis meses mais intensos e emocionantes de sua
vida. Éramos tão jovens, que acreditávamos que a vida nos daria uma
segunda chance, na próxima esquina perigosa da história. Estávamos
errados. As derrotas históricas exigem, no mínimo, o intervalo de
uma geração para que suas seqüelas possam ser superadas. Todo
processo revolucionário é uma refutação trágica das teses
gradualistas que diminuem a importância da ruptura, inclusive da
insurreição, na estratégia de luta anticapitalista. Boaventura de
Sousa Santos foi um dos defensores do balanço da revolução como um
processo evolucionista:
“A revolução socialista é o processo mais ou
menos longo de transformação global de diferentes estruturas de
poder da sociedade capitalista no sentido da democratização global
da vida coletiva e individual. É a totalidade histórica em que
culmina o conjunto das reformas sociais dispersas no tempo e nas
diferentes práticas políticas”
A
perspectiva de um longo processo de extensão da democracia, de
acumulação de forças e direitos, e de convencimento, ou neutralização
desarmada, dos inimigos sociais da irreversibilidade da mudança, sem
a gravidade máxima do assalto ao poder, não encontrou, pelo menos até
hoje, uma fundamentação histórica.Depois de novembro de 75, com a
destruição da dualidade de poderes nas FFAA, em grande medida sem
que se pudesse perceber ainda o terrível alcance da derrota, o
processo assumiu uma dinâmica lenta, mas irreversível, apesar de
algumas reviravoltas, de estabilização de um regime democrático
liberal. A oportunidade tinha sido perdida.
A
derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue,
mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos
franceses. O que a revolução fez em dezoito meses, a contra-revolução
precisou de dezoito anos para desmontar. A integração posterior na
Comunidade Econômica, com o acesso aos fundos estruturais,
gigantescas transferências de capitais para modernizar a
infra-estrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões
sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do regime nos
anos 80 e 90.
Notas:
[1] CAETANO, Marcelo,
Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.
[2]
AFONSO, A., COSTA, B. O
Movimento dos Capitães. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n15/16/17, maio de 1985, apud SECCO, Lincoln, A
Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.157.
[3] CARVALHO, Otelo Saraiva de, Memórias
de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución
portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona,
Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data, p.163. Esta confissão
permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido
como o PREC (processo revolucionário em curso). Assim como muitos
capitães se inclinavam a depositar confiança nos generais, uma
parte da extrema-esquerda entregava aos capitães a liderança do
processo. Spínola era pomposo, com poses de general germanófilo,
com seu incrível monóculo. Desse MFA, surgiram as lideranças de
Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, dois “Antonovs Ovsenkos”,
mas sem educação marxista; de Otelo, o chefe do COPCON, uma
personalidade única, entre Chavez e o Capitão Lamarca, entre o
heroísmo da organização do levante, e o disparatado, das
posteriores relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco
Gonçalves, menos trágico que Allende, menos sinistro que
Kerensky, menos retórico que Largo Caballero e, sem dúvida,
menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que surgiu
o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, o homem da reconstrução da
ordem.
[4]
Ainda na manhã dia 25 de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação
do levante militar do MFA, uma multidão de milhares de pessoas
saiu ás ruas e se dirigiu à Baixa de Lisboa, cercando o Quartel
da GNR (Guarda Nacional Republicana) no Largo do Carmo, onde
Marcelo Caetano, primeiro ministro, e Américo Tomás, presidente,
se refugiaram, e negociavam com Salgueiro Maia os termos da rendição,
exigindo a presença de Spínola. Algumas centenas de pides –
Polícia Internacional de Defesa do Estado – entrincheirados na
sede, disparam sobre a massa popular, antes de se renderem, e
deixam 4 mortos e dezenas de feridos. No Porto, milhares de
pessoas cercam os policiais no edifício da Câmara, e estes
respondem atirando sobre a população. E foi só isso a força da
resistência. A população e os soldados confraternizaram,
alegremente, desde as primeiras horas. Toda revolução tem o seu
pitoresco. Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de
carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao
Terreiro do Paço, as floristas lhes perguntam o que estava
acontecendo, e os soldados dizem que vieram derrubar a ditadura.
Elas, exaltadamente felizes, lhes oferecem cravos vermelhos e,
assim, sem o saber, batizam a revolução com o nome de uma flor.
Era primavera, na natureza, e para muitas vidas que não esquecerão.
[5]
No 1 de maio, uma semana depois da queda de Caetano, manifestação
gigantesca em Lisboa, - estimada em um milhão de pessoas –
demonstra que uma irrupção de massas já começou. Comemora-se a
libertação dos presos políticos, soltos em Caxias e Peniche,
assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde. Surgem faixas do
MLM (Movimento de libertação da Mulher) exigindo contracepção
e aborto livre e gratuito. Álvaro Cunhal e Mário Soares chegam
do exílio e, pela primeira vez, discursam. Soares faz exigência
pública ao MFA e a Spínola, indicado presidente, defendendo que
o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois partidos mais
representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo do
governo.
[6]
TROTSKY, Leon. Historia
de la Revolucion Russa. Bogotá, Pluma, 1982, Volume 1,
p.8, tradução nossa.
[7]
Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa
ocuparam casas vazias de um bairro social – construções feitas
pelo Estado – e se recusaram a sair, mesmo quando cercados pela
polícia e por tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira
ocupação. No dia 30 de abril, a primeira assembléia universitária
de Lisboa reúne mais de 10.000 estudantes no Técnico, a
faculdade de engenharia. No dia 2 de Maio é autorizado o regresso
de todos os exilados. Desertores e refratários do Exército são
anistiados. No dia 3 de Maio generaliza-se uma onda de ocupações
de casas desocupadas na periferia de Lisboa, com forte iniciativa
de militantes de várias organizações de extrema-esquerda.
Militantes da extrema esquerda impedem o embarque de uma unidade
militar para África. Em 5 de Maio, trabalhadores dos TLP (telefônicos),
Caixa de previdência de Faro, Hospital do Porto, reúnem-se para
exigir a demissão das chefias. Em Évora, os trabalhadores
transformam as Casas do Povo em sindicatos agrícolas. Uma vaga de
greves começa, encabeçada pelas grandes concentrações operárias,
como na Lisnave e na Siderúrgica Nacional, exigindo a reintegração
dos demitidos, desde o início do ano, e salários. Trabalhadores
do Diário de Notícias, o principal matutino, ocupam o Jornal, e
impedem a entrada dos administradores, que são depois demitidos.
A revolução invadia todas as esferas da vida social e ocupava,
além das ruas, as empresas, escolas, universidades, hospitais,
oficinas, sindicatos, jornais, rádios, e até as casas.
[8]
Uma fascinante tese sobre o 25 de Abril, que foi publicada em
livro, reconhece que ocorreu em Portugal uma revolução, mas não
uma crise revolucionária, e atribui às pressões de uma situação
internacional, interpretada como adversa, e ao atraso material,
cultural e político do país, a explicação para seus
resultados: “Portugal não
revolucionou as estruturas profundas de sua organização sócio-econômica.
As profundidades de uma crise bissecular pediram o paroxismo da
revolução, mas não permitiram que um novo padrão (...) de
desenvolvimento(...) se impusesse. A democracia liberal que
Portugal nunca havia conhecido de fato, esta sim se instalou, e o
liberalismo e o republicanismo do século XIX precisaram,
paradoxalmente, da retórica socialista para se implantarem.Também
estava, certamente, ajustado às ondas que levaram os países do
sul da Europa superar os resquícios dos regimes fascistas em direção
à democracia parlamentar.” SECCO, Lincoln, A
Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.153.
[9]
Desde a posse, Spínola fez inúmeros pronunciamentos contra a
desordem e o radicalismo. Mandou fechar, em 31 de julho, dois
jornais – o Diário de
Lisboa e A Capital – sob a acusação de que davam demasiado destaque às
manifestações – das organizações trotskistas e maoístas -
que tentavam impedir os embarques de soldados para as colônias.
No dia 9 de Setembro tinha se formado a comissão organizadora da
manifestação da Maioria Silenciosa, respondendo ao apelo de Spínola,
com a adesão dos jornais Tempo novo, Tribuna popular e Bandarra. No dia 26 de Setembro, Spínola
compareceu a uma tourada no Campo Pequeno e foi ovacionado por uma
parte do público, mas confrontos ocorreram entre militantes de
esquerda e direitistas. Lisboa acordou coberta de cartazes
convocando a passeata. No dia seguinte, ativistas do PCP e das
variadas organizações da extrema-esquerda, levantaram barricadas
para impedir a passagem dos manifestantes de direita que, se
esperava, viriam de fora. Soldados se uniram, espontaneamente, ás
barricadas. As sedes do
Bandarra, do Partido Liberal e do Partido do Progresso foram
invadidas – propaganda fascista encontrada - e saqueadas. No dia
28 de setembro, as barricadas ganharam mais participação, e
carros foram parados e revistados, prendendo-se os ocupantes
quando traziam armas. Otelo afirmou ter estado detido no Palácio
de Belém por ordem de Spínola. Não houve adesão de massas ao
chamado de Spínola. Cento e cinqüenta conspiradores foram presos
durante o dia.
[10]
O segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração
burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e
contou com a participação da GNR. O RAL1 (Regimento de
Artilharia Ligeira) de Lisboa foi bombardeado e cercado por
unidades de pára-quedistas, e um soldado morre, mas o golpe é
desbaratado. Spínola e outros oficiais comprometidos fogem para
Espanha, onde Franco os recebe, e depois, muitos vêm para o
Brasil. Ao final do dia, manifestação de massas no centro de
Lisboa comemora a derrota do golpe, e em várias cidades do país
as sedes do PDC (Partido Democrata Cristão) e do CDS (Centro
Democrata Social) são assaltadas. Na seqüência, os
trabalhadores bancários entram em greve política, e assumem o
controle do sistema financeiro. O MFA cria o Conselho da Revolução,
e decreta a nacionalização dos sete grupos bancários
portugueses mais importantes. Muitas empresas são ocupadas pelos
trabalhadores. A burguesia entra em pânico e começa a abandonar
o país, partindo para Espanha ou para o Brasil. Mansões
desabitadas passam a ser ocupadas e nelas são instaladas creches.
[11]
O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à
americana, dazibaos à chinesa e simples pichações - fazia das
ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse “universo
diverso’ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais
irreverente. À porta do cemitério o impagável, Abaixo
os mortos, a terra para quem nela trabalha. Na Faculdade de
Filosofia, o cético: Os índios também eram vermelhos e se foderam. Nas grandes
avenidas, o dramático, Nem
mais um só soldado para as colônias. Na região das Avenidas
novas - bairros privilegiados – ao lado do “Os
ricos que paguem a crise”, assinado pela UDP, o reacionário,
porém mordaz “A UDP que
pague a crise”, assinado “Os ricos”.
As revoluções têm os seus momentos de bom humor.
[12]
Champalimaud em declaração ao matutino Diário
de Notícias, Lisboa, 25/6/74, citado em. LOUÇÃ, Francisco, 25
de abril, dez anos de lições, Ensaio para uma revolução,
Lisboa, Cadernos Marxistas, 1984, p.36.
[13]
LOUÇÃ, Francisco, Ibidem, p.36
[14]
LOUÇÃ, Francisco. Ibidem, 35.
[15]
O travestismo político pode assumir formas pitorescas. Cada
revolução tem o seu vocabulário, adaptado às flutuações das
relações de forças e ao contexto de suas épocas históricas,
mas em Portugal as forças políticas burguesas se superaram.
Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o
PPM (Partido Popular Democrático), todos reivindicavam alguma
forma de socialismo, o que explica a retórica da Constituição,
que até hoje produz espanto ou admiração.
[16] No dia 25 de Abril de 1975
– um ano depois da queda da ditadura - realizaram-se as eleições
para a Assembléia Constituinte, as primeiras eleições livres
depois de cinqüenta anos. O PS foi o grande vencedor com,
espetaculares, 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%,
revelando-se um abismo entre sua força de mobilização social e
a eleitoral. O PPD (Partido Popular Democrático) de Sá Carneiro,
um líder liberal dentro das estruturas do regime salazarista -
fica em segundo lugar, com 26,38%. O CDS (dirigido por Freitas do
Amaral) – de extrema-direita - o MDP (Movimento Democrático
Português), uma colateral do PCP que vinha do tempo das eleições
sob Caetano, e a UDP (União Democrático Popular), maoista linha
Albânia, conseguiram, também, representação parlamentar.
[17]
SARAIVA, José Antonio e SILVA, Vicente Jorge, O 25 de Abril visto da História, Lisboa, Livraria Bertrand, 1976,
p.172. A Guiné-Bissau tornou-se independente em 26 de agosto de
1974; a independência de Moçambique foi reconhecida em 25 de
Junho de 1975, e a de Cabo Verde em 5 de julho. A independência
de Angola, declarada unilateralmente, vem no 11 de Novembro,
quando já está no poder o VI Governo Provisório, tendo à sua
frente Pinheiro de Azevedo - que assumiu em 19 de Setembro - mas
está profundamente questionado por fortes mobilizações, como a
greve da construção civil que cercará a Assembléia da República.
O golpe que destruirá a auto-organização nos quartéis, e
produzirá uma inflexão nas relações sociais e políticas de
força, virá no 25 de novembro. Estas datas explicam,
reciprocamente, as dinâmicas dos acontecimentos em África e no
continente.
[18]
SARAIVA, José Antonio e SILVA, Vicente Jorge, Ibidem, p.169.
[19]
SARAIVA, José Antonio e SILVA, Vicente Jorge, Ibidem, p.170/172.
[20]
Plano de ação política do MFA, que identifica o MFA como
Movimento de libertação Nacional, in LOUÇÃ, Francisco, Ibidem,
p.43.
[21]
LOUÇÃ, Francisco, Ibidem,
p.30
[22]
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em
Lisboa as Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas
ao salazarismo - quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito
do regime - estava desautorizada, em especial no Sul do País,
diante de amplos setores sociais. As ocupações se estendiam aos
meios de comunicação. No dia 27 de maio os trabalhadores da Rádio
Renascença ocupam os estúdios e o centro transmissor. É
abandonada a designação de “Emissora Católica” e são
afastados os padres do serviço radiofônico dos estúdios de
Lisboa. A emissora passa a transmitir uma programação de apoio
ás lutas dos trabalhadores.
[23]
SOARES, Mário, Carta de demissão entregue ao presidente Costa
Gomes em 10 de julho de 1975, apud LOUÇÃ, Francisco, Ibidem,
p.49
[24]
Em 18 e 19 de Julho, primeiro no Porto e depois em Lisboa, o PS
vai às ruas para medir forças, e dá uma demonstração inequívoca
da sua capacidade de enfrentar o PCP num terreno em que, até então,
o partido de Cunhal detinha incomparável superioridade. Reúne
centenas de milhares em comícios “monstros”, os maiores,
talvez, depois do 1 de Maio de 74. Soares ameaça parar o país, e
parece ser capaz de fazê-lo. No dia 20 de julho começam os
assaltos, no norte e centro do país contra as sedes do PCP, MES,
MDP/CDE. Durante quinze dias, saques e incêndios - com a
participação, às vezes, de padres que iam à frente, como se
encabeçassem procissões - até contra sedes de sindicatos, na
Batalha, Rio Maior, Alcobaça, Aveiro, São João da Madeira,
Monchique, etc... A Igreja se coloca de “corpo e alma” na
oposição de direita ao governo Vasco Gonçalves.
[25]
LOUÇÃ, Francisco, Ibidem,
p49.
[26]
O VI Governo provisório toma posse no dia 19 de setembro de 1975,
com Pinheiro de Azevedo, um almirante, à sua frente, nomeado pelo
Conselho da Revolução, em conseqüência do deslocamento de forças,
dentro do MFA, a partir da Assembléia reunida em Tancos – em 5
de setembro - quando saem do Conselho da Revolução os “gonçalvistas”,
derrotados pelo Grupo dos Nove, ala militar mais próxima ao PS
– apoiada pela direita - em aliança com Melo Antunes, o redator
do programa do MFA, o documento que Spínola ignorou assim que
tomou posse, e Ramalho Eanes, que será o líder militar do 25 de
novembro e, depois, eleito presidente nas eleições de junho de
1976. No dia 30 de setembro, o PS promove manifestações de apoio
ao VI governo e a Pinheiro de Azevedo, e comandos ocupam as
antenas de emissão no alto de Monsanto, enquanto a Rádio
Renascença, sob controle dos trabalhadores, é fechada, para
depois ser devolvida ao Patriarcado da Igreja Católica.
[27]
No dia 17 de julho, sob a convocação do PRP, que influenciava
uma colateral, os “Conselhos revolucionários de trabalhadores,
soldados e marinheiros”, se realiza em Lisboa uma manifestação
armada, que recebe a adesão do RALIS – principal quartel da
cidade – que sai as ruas com os blindados, e se ouvem vivas à
ditadura do proletariado. O PPD de Sá Carneiro sai do Governo. No
dia 20 de agosto, uma passeata de muitas dezenas de milhares em
apoio ao COPCON, exigindo a dissolução da Constituinte, e o
desenvolvimento do poder popular. Ocorre a ocupação de 12
propriedades no distrito de Évora, com a presença de operários
de Vendas Novas, e a colaboração de soldados da Escola Prática
de Artilharia. No dia 25 de setembro, ocorre a manifestação dos
SUV (Soldados Unidos Venceremos) em Lisboa, com milhares de
soldados com o rosto coberto e carregando armas e, com adesão
popular, desviam dezenas de ônibus para o quartel da Trafaria, do
outro lado do Tejo, onde conseguem a libertação de dois soldados
ativistas que estavam presos. O capitão Fernandes, um oficial próximo
ás posições do PRP, de extrema-esquerda, assalta um quartel em
30 de setembro, e desvia um número considerável de armas, e
passa à clandestinidade, afirmando que as armas serão usadas
para defender as lutas do povo. Otelo Saraiva de Carvalho,
comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), uma força
militar de intervenção importante, declara, quando desafiado
pela mídia que: “se as
armas estão com o povo, então, estão em boas mãos”.
[28] A UDP foi a forma pública de
uma unificação de várias organizações, o PCP(r), Partido
Comunista Português (reconstruído), depois dissolvido, e hoje
integra o Bloco de Esquerda. A UDP foi a principal organização
com origem na ruptura pró-China do PCP - liderada por Chico
Martins, no início dos anos 60 – e tinha evoluído para uma
posição pró-albanesa, e conseguido realizar uma fusão de
quatro organizações (URML, OCMLP, CCR-ML, e CMLP) com a orientação
de Diógenes Arruda, histórico dirigente do PCdB (Partido
Comunista do Brasil), que gozou em Lisboa de grande respeito e,
portanto, da correspondente autoridade. Maior partido à esquerda
do PCP, com presença nacional, em especial na juventude operária
– superando os 5.000 militantes - mantinha maior autonomia em
relação ao MFA, e às ilusões no substitucionismo dos
“militares revolucionários”, mas não ofereceu resistência
à orientação divisionista das direções do PS e do PCP.
[29]
LOUÇÃ, Francisco, Ibidem,
p.78. A política da extrema-esquerda foi errática no momento
decisivo da crise revolucionária. Enquanto alguns apoiavam o V
governo, outros apoiaram o levante do 25 de novembro. Enquanto
isso, o PCP recuava, preocupado em preservar posições. Negociava
a sua permanência no VI governo. Melo Antunes, em entrevista a
Miguel Portas, em 1998, admitiu que a célebre reunião
clandestina com Cunhal, antes do 25 de novembro, de fato, tinha
acontecido, embora não tenha revelado a substância da discussão.
Cunhal no entanto, não a reconhece até hoje.
[30]
OLIVEIRA, Cezar, MFA e
revolução socialista, Lisboa, Diabril, 1975, p.14.
[31] Do
MRPP saiu o atual primeiro-ministro Durão Barroso que como inúmeros
ex-maoistas se aproximou, depois, do PPD, hoje, PSD. Eram organizações
essencialmente estudantis, mas o MRPP chegou a ter uma certa influência
em alguns setores operários, e pode ter superado os 3.000
militantes muito ativos. Aderiam à bizarra versão chinesa da
teoria dos campos, versão “três mundos”, uma explicação
para a divisão de papéis e relações de forças no Sistema
Internacional de Estados. Existiria o Primeiro mundo, no qual o
imperialismo americano e o social-imperialismo soviético, cada um
com seus aliados, lutavam pela supremacia mundial, em um Segundo
mundo, os países socialistas, e o Terceiro mundo, a maioria,
composto pelas nações da periferia.
[32] A
LCI, vinculada ás posições do SU dirigido por Ernest Mandel,
chegou a organizar 500 ativistas, alguns com um papel decisivo na
iniciativa de formação dos SUV, posições em algumas grandes
empresas – como a CP - e liderança entre os trabalhadores da
indústria do sapato, próximo do Porto; já o PRT, articulado com
as posições da seção Argentina, dirigida por Nahuel Moreno,
organizava uns 200 militantes, dirigindo o movimento secundarista
de Lisboa, e tinha influência entre os trabalhadores da limpeza
de Lisboa, e posições nos metalúrgicos de Aveiro, permaneceu
uma organização, essencialmente, estudantil, e politicamente,
marginal. A terceira corrente obteve uma evidência significativa,
embora fugaz, porque atuava dentro do PS (Partido Socialista),
construindo uma experiência entrista, e elegeu dois deputados á
Constituinte de 1975 – Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues –
que usaram o mandato para uma diferenciação com Soares. Só se
constituiu em partido independente depois de expulsos, formando o
POUS (Partido Operário de Unidade Socialista). Enquanto a LCI
assinou a plataforma da FUR – ainda que sob uma intensa luta
interna que levou, depois, em 1976, a uma auto-crítica - e os
militantes lambertistas participavam, sob suas próprias
bandeiras, das manifestações convocadas por Soares, o PRT
manteve uma orientação mais independente.
[33]
Costa Gomes decreta o estado
de sítio parcial na região de Lisboa. As tropas rebeldes que
ocupavam Monsanto se rendem aos Comandos da Amadora, dirigidos por
Jaime Neves, ainda durante a madrugada. Na ocupação do Regimento
da Polícia Militar, morrem dois comandos e um PM. Nos dias
seguintes são detidas dezenas de oficiais, passados mandatos de
captura, encerrados diversos jornais, dissolvido o COPCON e
substituídas as altas patentes do Exército. Nos seis meses
seguintes uma parcela muito significativa da tropa é
desmobilizada.
[34]
Comunicado dos trabalhadores da Cambournac, Dezembro de 1975, in
MARTINS, Francisco Martins, O
Futuro era Agora, Lisboa, Dinossauro, 1994, p.. O título
deste artigo retoma o deste extraordinário livro – uma coleta
de depoimentos - com a autorização do autor.
[35]
SANTOS,
Boaventura de Sousa, A
questão do socialismo, in Revista Crítica de Ciências
sociais, n.6, Maio de 1981, p.170
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