Por
que devemos sair logo do Haiti
Por
Mário Maestri (*)
La
Insignia, Brasil, 26/10/04
Em 29 de fevereiro de 2004, Jean-Bertrand
Aristide, 50, foi forçado por tropas franco-estadunidenses a deixar o
país, sendo enviado para a República Centro-Africana, aliada
submissa dos USA. O defenestramento do presidente constitucional do
Haiti foi repudiado publicamente pela CARICOM, associação dos países
do Caribe.
Para
a surpresa geral, o governo Lula da Silva acolheu prontamente o
convite do presidente republicano George Bush, feito semanas após a
intervenção, para que o Brasil capitaneasse a força internacional
de ocupação daquele país, que tomaria o lugar das tropas
estadunidenses empregadas na deposição de Aristide.
A
substituição do contingente USA permitiria o seu envio imediato para
o Iraque, onde os anglo-estadunidenses defrontam-se com violenta
resistência militar à ocupação do país. A escolha do Brasil deveu-se
à esperada boa vontade de Lula da Silva e à simpatia do povo
haitiano pelos jogadores canarinhos, em geral afro-descendentes de
origem popular.
Possivelmente,
nem mesmo o governo Bush esperava tão pronta e incondicional aceitação
do convite envenenado. Em 1950, as duras pressões do presidente
Truman para que o Brasil enviasse tropas à Coréia conheceram
terminante oposição de Getúlio Vargas. Aquela intervenção também
foi realizada sob a bandeira venal das Nações Unidas.
As
razões de Judas
A
principal justificativa do governo Lula da Silva para o envio de
jovens soldados ao Haiti é que o ato, comprovando a responsabilidade
internacional do Brasil, facilitaria a reivindicação da diplomacia
brasileira de vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações
Unidas, quando de sua esperada reforma.
À
explicação mercenária, agregou-se a justificativa que a intervenção
contribuiria à democracia, à ordem, ao progresso da sofrida nação,
hoje com oito milhões de habitantes. Levantou-se também o caráter
pacífico da expedição, sugerindo que em nenhum caso resultaria em
perdas humanas, como ocorre no Iraque.
Em
fins de maio, quando os 1400 soldados brasileiros começaram a partir
para o Haiti - mais de 700 deles gaúchos -, carregavam consigo fuzis
Fal, entre outras armas mortíferas, o que não deixa dúvidas sobre o
objetivo e os meios da intervenção jamais pedida pelo governo
constitucional do Haiti, como exige expressamente a carta das Nações
Unidas.
O
governo Lula da Silva esperava igualmente que a operação
prestigiasse o exército brasileiro, desmoralizado desde os vinte anos
de regime ditatorial. Pretendia-se também que a expedição servisse
de palco para operações de marketing político e mostrasse às
grandes nações o jeitinho das elites nacionais de manipular e
reprimir as classes populares.
Futebol
como circo
O
jogo amistoso, de 18 de agosto, no Estádio Sylvio Cator, entre as
seleções nacionais brasileira e haitiana, constituiu o momento alto
da campanha publicitária Lula da Silva no Haiti. Ronaldinho e os
jogadores nacionais desfilaram gloriosamente sobre blindados Urutus,
de fabricação nacional - exportar é preciso! - pelas ruas de Porto
Príncipe.
Durante
a triste operação publicitária, Lula da Silva pousou como um
pequeno Bush e os soldadinhos brasileiros como quase mariners.
Tudo sob o aplauso de parte da população haitiana, que recebera
anteriormente bandeirinhas brasileiras. Na ocasião, foram cercados e
controlados os bairros populares conhecidos pelo apoio ao presidente
deposto.
A
pantomima de mau gosto teve fôlego curto. Às quatro da manhã deste
domingo, 24 de outubro, 150 policiais e 200 soldados, em boa parte
brasileiros, intervinham em forma associada no bairro popular de Bel-Air.
A justificativa da batida policial-militar foi que
"terroristas" atacariam o "palácio presidencial",
em claro registro do caráter político da ocupação.
Por
que o Brasil está no Haiti
De
1915 a 1934, os USA mantiveram longa e sangrenta intervenção militar
no Haiti. Nas décadas seguintes, apoiaram a sinistra ditadura de Papa
Doc e Baby Doc. Em 1986, Baby Doc foi deposto devido à mobilização
popular, partindo, em avião das forças armadas USA, acompanhado de
22 parentes e amigos, para exílio dourado no sul da França, onde
vive hoje sob a proteção do governo gaulês.
Ligado
à teologia da libertação, o então sacerdote Jean-Bertrand Aristide
iniciou carreira política de sucesso no fim do governo ditatorial. Em
1990, elegeu-se com programa popular reformista, com o apoio decisivo
das massas miseráveis negras da cidade e do campo, obtendo 67% dos
votos no primeiro turno!
Porém,
nesse momento, Papa Bush reinava sobre os USA. Em 30 de setembro de
1991, golpe militar patrocinado pelos USA derrubou Aristide e impôs
um outro sangrento governo ditatorial. A repressão militar fez
dezenas de milhares de haitianos fugirem da ilha, em boa parte para os
USA, onde foram duramente barrados pela polícia da fronteira daquele
país.
Aristide
recicla-se
Após
o golpe, Aristide refugiou-se nos USA, onde contou com o apoio
sobretudo dos segmentos afro-descendentes organizados no Partido
Democrata. Como tantos outros políticos populares nesses anos de maré
neoliberal, revisou suas políticas progressistas e populares,
acertando os ponteiros com o FMI e com o establishment
estadunidense, sobretudo no sabor democrata.
Em
1994, após um desses bloqueios das Nações Unidas que aprofundas
sobretudo a miséria popular, Aristide retornou ao Haiti e ao governo,
no bojo de intervenção estadunidense, dessa vez patrocinada por Bill
Clinton. Com o novo governo, esperava-se acabar também com o incômodo
fluxo haitiano em direção aos USA.
Dos
acordos de reconversão política de Aristide fazia parte a promessa
de Clinton de ajuda econômica à ilha, para facilitar as duras políticas
neoliberais que seriam implementadas. Sete semanas após o retorno do
ex-sacerdote, os republicanos tomaram conta do Congresso, bloqueando
qualquer ajuda ao Haiti.
A
sobra do líder
Em
1996, Aristide entregou o governo a um preposto e voltou, em 2000, ao
governo, em reeleição discutida. A administração conservadora de
Aristide levou a que o antigo líder popular perdesse apoio social,
mantendo-se no poder sobretudo devido ao seu movimento político Fanmi
Lavalas [Família Avalanche, em crioulo], em boa parte
transformado em milícia armada.
Em
2003, seu crescente descrédito ensejou dois movimento que se
mobilizaram em um mesmo sentido, com objetivos opostos. Por um lado,
segmentos do muito frágil movimento social haitiano mobilizaram-se
pela deposição de Aristide, esperando que ela abrisse caminho para o
saneamento social, político e moral do país.
Por
outro, grupos do sangrento ex-exército haitiano, dissolvido por
Aristide, invadiram o Haiti, desde a República Dominicana, para depor
o presidente e impor governo autoritário. As tropas paramilitares
haviam sido treinadas pelo governo republicano estadunidense, como
constatou comissão de investigação dirigida por Ramsey Clark,
ex-ministro da Justiça dos USA. Era Bush son retomava a obra do seu
velho daddy.
Uma
paz passageira
A
deposição de Aristide deu-se em momento em que ele conhecia real
desprestígio. Fato que garantiu interregno de paz relativa às forças
franco-estadunidenses, que aproveitaram o momento para coroar Gérard
Latortue e Boniface Alexandre, incondicionais do governo republicano
estadunidense, como primeiro-ministro e presidente interinos.
O
interregno serviu também para que o governo Bush obtivesse o consenso
das Nações Unidas para a intervenção e substituísse seus soldados
por tropas latino-americanas dispostas a morrer pelos interesses
franco-estadunidenses. A proposta indecente foi apresentada ao governo
Lula da Silva que a aceitou pronta e incondicionalmente.
Apesar
das promessas de apoio humanitário, sobretudo após as mais de três
mil mortes causadas pela passagem do furacão Jeanne pelo país, a única
iniciativa nacional e internacional efetivamente implementada foi a
reorganização da odiada polícia, que passou a reprimir e a eliminar
fisicamente os seguidores de Aristide, no interior e na capital.
Matando
manifestantes
Em
18 de maio, dia nacional da bandeira haitiana, manifestação pacífica,
com bandeiras e guarda-chuvas com o retrato de Aristide, foi duramente
reprimida, provocando a morte de um cidadão. Como o movimento Fanmi
Lavalas tem suas raízes na população negra e pobre, a repressão
policial estendeu-se aos bairros miseráveis da capital, com destaque
para a Cité Soleil [Cidade Sol] e Bel-Air [Ar Bonito].
Em
fins de agosto, Renaud Muselier, vice-ministro francês de relações
exteriores, foi atacado a tiros quando visitava um hospital nas
proximidades da Cité Soleil. Dois populares foram mortos e
dois solados, um haitiano e um francês, feridos.
A
França foi a potência colonial que, no passado, impôs ao Haiti um
dos mais sangrentos regimes escravistas jamais conhecidos. Em 1804, os
haitianos conquistaram sua independência após derrotarem as
poderosas tropas enviadas por Napoleão I. Na tentativa de restaurar o
regime colonial, os franceses treinaram cães para que atacassem e
devorassem patriotas haitianos. A guerra colonial francesa mergulhou o
país em devastação indescritível.
Duas
moedas
Enquanto
a repressão golpeava os seguidores de Aristide e a população pobre,
o governo títere e as forças militares de ocupação comandadas pelo
Brasil têm tido complacência quase absoluta com os grupos
paramilitares, que se movimentam com total liberdade, ocupam prédios
e cidades, massacrando militantes pró-Aristide.
Um
dos chefes máximos das forças paramilitares de direita acaba de dar
ultimato ao governo e às forças das Nações Unidas. Se, até
quinta-feira próxima, os seguidores de Aristide não forem submetidos,
as forças paramilitares tomarão as operações de segurança em suas
mãos, como já o fazem em diversos pontos do país.
A
crise social e econômica em constante agravamento e a repressão
ininterrupta aos seguidores de Aristide e à população pobre parecem
ensejar crescente efervescência social, sobretudo na capital. Uma
situação que estaria restaurando o prestígio de Aristide entre a
população pobre, facilitando, em um caso limite, eventual guerra
civil aberta.
O
Massacre de Setembro
A
mobilização contra a intervenção conheceu salto de qualidade após
a repressão policial à manifestação de 30 de setembro, chamada
pelos seguidores de Aristide para celebrar o transcurso do golpe
militar de 1991. Sem tomar providências, o próprio presidente
interino reconheceu que policiais dispararam contra a manifestação
pacífica, matando dez populares.
O
massacre foi justificado como resposta à morte de quatro policiais,
no mesmo dia, no bairro popular La Saline. Dois dos policiais
executados teriam sido decapitados, em alusão aberta à resistência
popular iraquiana. Até agora não houve esclarecimento sobre esse
sucesso, nem identificação dos reais responsáveis.
Nos
dias seguintes, a repressão policial abateu-se sobre a população,
com grupos de extermínio executando lavalistas sobretudo nos bairros
Cité Soleil e Bel-Air. No dia 2 de outubro, três parlamentares do
Fanmi Lavalas foram presos, enquanto falavam pela rádio Caribe. O
presidente do Senado, Yvon Feuille e o ex-deputado Rudy Herrivaux
continuam presos ao arrepio das leis em vigor.
Oposição
crescente
A
repressão policial motivou salto de qualidade na oposição popular,
de fôlego e sentido difíceis de serem previstos. Nos dias seguintes,
levantaram-se barricadas nos bairros populares, onde foram queimados
velhos pneumáticos. As investidas das forças policiais e militares
começaram a ser respondidas a tiros.
Nos
seus primeiros momentos, a reação lavalista e popular dirigiu-se
contra a polícia e o governo imposto pelos franco-estadunidenses. A
intervenção das tropas militares, junto com as forças policiais,
tende a identificar as primeiras às segundas, na consciência popular
haitiana. De símbolo do futebol-arte, a bandeira brasileira começa a
ser vista como signo da opressão.
O
resultado da convergência entre policiais e militares não se fez
esperar. Em 8 de outubro, Luciano de Lima Carvalho, soldado gaúcho,
foi ferido no pé por um disparo, ao participar de batida policial no
bairro Bel Air, conhecido por seu apoio a Aristide. No dia 9, foi a
vez de um soldado argentino ser ferido na mão.
Tem
crescido igualmente os atritos entre as tropas brasileiras e gaúchas
e a população haitiana. Em 20 de outubro, Jean Massilon, policial
haitiano que tardou em se identificar como tal, foi duramente
espancado por soldados brasileiros, ignorantes do crioulo local, língua
de difícil compreensão mesmo para aqueles que falam francês. O
policial teve que ser hospitalizado.
Kerry
vota Aristide
A
efervescência lavalista aumentou com a possibilidade da vitória de
John Kerry nas eleições estadunidenses. O candidato democrata
discorda radicalmente da ação republicana no Haiti, que levou ao
defenestramento de Aristide, entronizado pelo democrata Clinton. Kerry
fala francês fluentemente e é próximo dos interesses filo-franceses
do Canadá e do Haiti.
Kerry
deixou entender recentemente que, se vitorioso, inverterá o sentido
da ação de Bush, promovendo eventual retorno de Aristide. A declaração
do candidato democrata foi criticada pelo general brasileiro Augusto
Heleno Ribeiro Pereira, chefe da Minustah, que, a seguir, retirou tudo
o que dissera, como era de se esperar.
O
incessante agravamento da crise no Haiti ensejou que o embaixador
estadunidense pedisse, há poucos dias, a retirada dos empregados não
imprescindíveis da embaixada USA e desaconselhasse os cidadãos
estadunidenses a visitar o país, temendo que se estabeleça ali caça
ao estrangeiro, como ocorre atualmente no Iraque.
Por
que temos que sair do Haiti
O
apoio militar brasileiro à intervenção em área em que o Brasil não
tem sequer interesses nacionais egoísticos, apresentou-nos ao mundo,
não como arremedo de grande país, mas como nação satélite,
disposta a saltar, obediente, segundo às ordens estadunidenses.
O
próprio ingresso como membro permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidas é contrário aos interesses do Brasil. Tal posição
ensejaria o compromisso pelo Brasil de financiar, com recursos e
homens, as operações de domínio mundial, sem real possibilidade de
interferir nas decisões tomadas.
É
segredo de polichinelo que o eventual ingresso do Brasil, como membro
permanente, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao lado da
Alemanha, Índia, Japão, etc, se dará sem o poder de veto, que
permanecerá sendo monopólio das potências vencedoras da II Guerra -
USA, Rússia, França, Inglaterra e China.
Pagando
a conta pro patrão
No
Haiti, o Brasil já está empregando recursos humanos e materiais
nacionais em defesa da política USA. É do desconhecimento quase
geral da população brasileira que os gastos da intervenção
nacional, orçados inicialmente em 160 milhões de reais, será
financiado em maior parte pelas burras do Brasil.
Paradoxalmente,
há poucos meses, o presidente Lula da Silva propôs não haver condições
econômicas para elevar o salário mínimo além dos miseráveis 261
reais - pouco mais de sessenta euros -, precisamente por faltarem
recursos. Enormes cortes federais nos investimentos na educação, na
saúde, etc. foram apoiados no mesmo argumento.
A
retirada imediata das tropas brasileiras do Haiti é decisão
imprescindível para a manutenção da autonomia nacional diante das
exigências imperialistas estadunidenses. Constitui ato de respeito ao
direito inalienável de autodeterminação dos povos e das nações,
em geral, e do sofrido povo haitiano, em especial, compromisso com o
qual o Brasil não pode faltar.
A
retirada das tropas de intervenção no Haiti trata-se de medida a ser
executada sem delongas, antes que os jovens militares, obedecendo a
ordens de governantes irresponsáveis, manchem as mãos brasileiras
com o sangue haitiano e o solo daquele triste e humilhado país com o
sangue brasileiro.
(*)
Mário Maestri, 56, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.com.br
|