Haití

 

A exploração prosseguiu sob forma semicolonial...

Uma intervenção sem fim

Por Mário Maestri (*)
Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br, mayo 2006

Em 29 de fevereiro de 2004, o presidente Jean-Bertrand Aristide, 52, foi expulso do Haiti por tropas franco-estadunidenses. A intervenção foi repudiada pela associação dos países do Caribe. A seguir, para legalizar e socializar os custos da ocupação, ela foi entregue à força expedicionária da ONU, o que feria sua carta, pois organizada contra a vontade do governo haitiano. Bush propôs e Lula da Silva aceitou que o Brasil comandasse as forças da ONU e enviasse 1.400 soldados. A substituição das tropas dos EUA era urgente devido à resistência no Iraque e Afeganistão. A formação da força expedicionária internacional – oito mil soldados – abatia os gastos dos EUA na intervenção. Os custos brasileiros são financiados, sobretudo, pelos cofres da nação.

O governo Lula da Silva sequer escondeu os objetivos mesquinhos. Esperavam como pagamento do serviço o apoio yankee à reivindicação a vaga permanente no Conselho da Segurança da ONU. Apesar de sua dimensão, o Brasil conhece status semicolonial, submetido política, econômica etc. às exigências do capital mundial. O improvável ingresso do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança dar-se-ia sem direito a veto, ensejando que as forças armadas brasileiras ajam como guardas pretorianas quando de eventuais intervenções, sobretudo na América Latina – Bolívia, Colômbia, Venezuela etc.

A intervenção prestigiaria o exército, desmoralizado devido à ditadura. A utilização de tropas treinadas no Haiti na recente ocupação militar das favelas cariocas comprova que a intervenção serve também para treinar soldados e habituar a população à idéia da ação militar nos bairros populares brasileiros, com população, sobretudo, negra. A expedição permitiria operações de prestígio, como o amistoso de agosto de 2004, entre as seleções brasileira e haitiana, quando os canarinhos desfilaram em blindados Urutus, Lula da Silva pousou como um mini-Bush e os soldadinhos brasileiros, como quase mariners. A ocupação foi também justificada como contribuição à ordem e ao progresso de nação miserável por parte do grande irmão brasileiro!

Vermelho e negr

Mais de dois anos e meio após a intervenção, a única diferença que o haitiano conhece é a humilhação do coturno estrangeiro. O país segue miserável. A liberalização e a valorização da moeda exigidas pelo grande capital destruíram o pouco de indústria e vergaram a agricultura. A taxa de desemprego é de 80%. A população rural vive de miserável agricultura. Para produzir carvão, fonte de energia e renda popular, o país foi desmatado e os solos degradaram-se. Vivendo em boa parte da ajuda exterior e das remessas dos expatriados, o Haiti paga disciplinadamente a dívida mundial.

A ocupação deu-se, em 2004, no segundo centenário da mais gloriosa saga americana, quando trabalhadores escravizados derrotaram os exércitos franceses, ingleses e espanhóis, criando a primeira nação americana livre da escravidão. Para que o exemplo não incendiasse as Américas, os escravistas europeus e estadunidenses mantiveram o Haiti sob bloqueio e controle durante o século 19. No século 20, o Haiti, Cuba e o Panamá sofreram precocemente o tacão do neo-imperialismo dos EUA que, de 1915 a 1934, rapinou a ilha. A exploração prosseguiu sob forma semicolonial, com destaque para as ditaduras de Papa Doc e Baby Doc. Em 1986, devido à luta popular, Baby Doc, protegido por mariners, foi viver feliz no sul da França.

O sacerdote Jean-Bertrand Aristide, ligado à teologia da libertação, ingressou na política nos últimos tempos de Baby Doc. Em 1990, elegeu-se presidente, com programa reformista, com o apoio maciço da população negra miserável. Porém, em 30 de setembro de 1991, em plena contra-revolução liberal mundial, Papa Bush, na presidência, substituiu Aristide por militares. Então, milhares de haitianos fugiram do país, em parte para os EUA, em cujas fronteiras foram comumente presos. Aristide refugiou-se nos EUA, sob as asas de afro-estadunidenses democratas. Sob os novos ventos, como tantos outros políticos, voltou as costas à população, acertando a bússola com os estadunidenses, sobretudo na versão democrata.

Bush faz, Clinton desfaz

Em maio de 1994, sob o governo Clinton, a ONU impôs bloqueio, aprofundando a miséria popular e, em setembro, Aristide voltou à presidência, apoiado por 20 mil mariners. Aristide recebeu a promessa de ajuda econômica, que mitigaria as medidas neoliberais que implantaria. Prometeu também limitar o incômodo fluxo haitiano aos EUA. Semanas após o retorno, os republicanos dominaram o Congresso, bloqueando a ajuda ao Haiti. Em 1996, Aristide entregou a presidência a René Préval, de seu partido, retornando ao poder em 2000. As medidas conservadoras ensejaram que perdesse apoio popular, sustentando-se no movimento Família Avalanche [Fanmi Lavalas], crescentemente armado. Em 2003, parte do frágil movimento social mobilizou-se contra ele e pelo saneamento do país. Militares do exército dissolvido, apoiados pela CIA, invadiram o Haiti para impor governo autoritário. Era Baby Bush repetindo Papa Bush.

Quando deposto, Aristide perdia prestígio, o que garantiu paz transitória às forças invasoras. Bush II entregou a gestão da ocupação à ONU e o poder a marionetes haitianas. A principal iniciativa dos ocupantes foi reorganizar a Polícia Nacional Haitiana, que passou a reprimir e a eliminar os seguidores de Aristide, fortes nos bairros miseráveis de Cité Soleil [Cidade Sol] e Bel-Air [Ar Bonito], com a cumplicidade e apoio das tropas da ONU, comandadas por general brasileiro.

Mobilização popular e repressão

Em maio de 2004, manifestante foi morto durante mobilização pacífica. Em agosto, dois populares foram abatidos próximos da Cité Soleil. Em setembro, dez manifestantes foram executados. Em outubro, três parlamentares do Fanmi Lavalas eram presos. A seguir, nos bairros populares, levantaram-se barricadas e os policiais e militares foram recebidas a tiros. Ainda em outubro, policial haitiano foi selvagemente espancado por soldados brasileiros, ignorantes do crioulo. Em 6 de julho de 2005, 300 soldados, sobretudo brasileiros, mataram mais de 60 habitantes na Cité Soleil e Bois Neuf. Denunciado, o governo brasileiro apresentou a ação como repressão a “criminais armados” e procurou envolver intelectuais, acadêmicos, ONGs na defesa da ocupação.

A intervenção seria coroada com governo de fachada, nascido de eleições controladas. Para tal, proibiu-se o retorno de Aristide; seus seguidores foram reprimidos; permitiu-se que apenas 30% da população votassem; organizou-se proliferação de candidatos à presidência; apoiaram-se nomes simpáticos à intervenção. O favoritismo de René Préval, 63, ex-militante Lavalas, candidato da Plataforma Esperança, registrou o rechaço à ocupação, pondo fim às veleidades republicanas. Para garantir frente anti-Préval em um segundo turno ou, ao menos, enfraquecer sua vitória, o Conselho Eleitoral Provisório, da ONU, empreendeu sucessivas postergações do pleito e, a seguir, fraude generalizada, na votação de 7 de fevereiro de 2006.

Em 7 de janeiro, o suicídio do general riograndense Urano Bacellar, 57, comandante das tropas da ONU, após um novo reenvio das eleições, registrou o impasse e o dilaceramento de intervenção que se concluiria com a despudorada manipulação eleitoral materializada um mês mais tarde. A mobilização contra a fraude levou a que o governo do Brasil propusesse o reconhecimento da vitória de Préval, com posse prevista para 7 de maio até o fechamento dessa edição, temendo insurreição popular. Após prometer emprego, educação, menos pobreza, governará país devastado, atado aos compromissos assumidos com o grande capital, que exige radicalização das exportações e liberalização econômica.

Durante tournée latino-americana, Préval pediu que as tropas de ocupação permaneçam no país enquanto não se organize polícia honesta. A declaração registra o medo, por um lado, de golpismo de inspiração republicana, caso o poder civil se confronte, sem anteparo, com as forças policial-militares, e, por outro, o temor da agitação popular de população traída nas suas expectativas. O Haiti baila ao ritmo de sinistro bolero ao estilo de Ravel que parece querer jamais chegar ao fim.


(*) Historiador, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).