O
imperialismo na era neoliberal ()
Por Gérard Dumenil ()
e Dominique Lévy ()
Cepremap, Modem, 2004
Introdução
Jamais
existiu na história do capitalismo período de harmonia ou de não-violência.
Os primeiros decênios que sucederam a II Guerra Mundial – os chamados
“trinta gloriosos” – são retrospectivamente pintados de paraíso
perdido. Entretanto, não foram eles palco do colonialismo e das guerras
de independência, da guerra supostamente fria e dos conflitos incendiários
suscitados por eles na Coréia ou no Vietnã? Que dizer da subversão
golpista por todo o mundo, principalmente na América Latina, cada vez que
o controle dos governos dos países da periferia pelas classes ou grupos
favoráveis aos EUA esteve ameaçado...
Mas, o novo rumo do
capitalismo, depois de um quarto de século, se singulariza pelo
ressurgimento de formas de violência que acreditávamos obsoletas. A
queda do contra-império soviético, assim como o fiasco das lutas
revolucionárias – naquilo que chamávamos de terceiro-mundo, quando
ainda havia um segundo – não conduziram as classes dominantes e a
primeira potência mundial a moderar o nível de sua dominação, a
civilizar seus métodos. Violência através da economia, da guerra e da
subversão golpista estão ainda na ordem-do-dia. Em nada altera sua
natureza, ser ela justificada como uma cruzada pela democracia ou contra o
terrorismo.
Que força subterrânea e
obscura sustenta esta dinâmica? A resposta não surpreenderá os
marxistas: uma luta de classes de envergadura histórico-mundial. As
classes dominantes encararam a experiência da destruição do
segundo-mundo como uma reconquista, uma restauração, no sentido
de se restaurar um regime político. O precedente francês deste que é
conveniente chamar a “restauração” no fim do séc. XIX,
não foi mais radical. As classes dominantes estão engajadas numa
luta visando o restabelecimento de sua preeminência, tal qual fora antes
da depressão dos anos 30 e da II Guerra Mundial. Neste projeto, a audácia
é ilimitada. Por outro lado, do ponto de vista da potência estadunidense,
o jogo é o da consolidação de sua dominação num mundo onde outros países
foram alçados aos níveis de desenvolvimento comparáveis, sabendo que ao
fim dos anos 80, muitos analistas profetizam um declínio. Classes e uma
nação: são estas as forças sociais que deram às últimas décadas do
séc. XX sua violência específica, e o começo do séc. XXI se situa bem
dentro da continuidade deste projeto.
Neoliberalismo e
imperialismo: é através destas duas realidades que este estudo se esforça
para caracterizar, na sua primeira seção, o período que se estende de
meados dos anos 80 até os primeiro anos do séc. XXI. Elas não têm a
mesma idade. Em verdade, o neoliberalismo é um objeto novo e o
imperialismo é algo já velho. A segunda seção deste texto propõe
algumas definições. As duas seções seguintes fornecem, cada uma à sua
maneira, as informações suscetíveis de esclarecer, essencialmente no
plano econômico, a natureza e as características do neoliberalismo (terceira
seção) e do imperialismo (quarta seção). A relação entre
neoliberalismo e imperialismo pode então ser estabelecida. A dominação
imperialista sobre o resto do mundo beneficiou formidavelmente as
transformações neoliberais; o estágio neoliberal do imperialismo se
mostrou particularmente frutífero para as classes e países dominantes ao
drenar enorme renda do resto do mundo; e, em contrapartida, o projeto que
encarna o neoliberalismo, ou seja, o do restabelecimento do poder e da
renda das classes proprietárias dos meios de produção, terminou reforçado.
Entretanto, este projeto de transformação social reacionária é
atravessado por contradições (quinta seção). Ele suscitou importantes
desvios, principalmente no coração do coração do sistema - nas classes
dominantes dos EUA. O prosseguimento destas tendências solaparão os
fundamentos do projeto e pode-se prever uma retificação. De que será
ela portadora?
Neoliberalismo e
imperialismo
Existe, sem dúvida, uma
ideologia neoliberal. Mas, o neoliberalismo define também uma realidade:
o novo rumo do capitalismo, no mínimo, após o começo dos anos 80.
1. A ideologia e a
propaganda neoliberais glorificam as virtudes do mercado e da livre
iniciativa, que é uma maneira disfarçada de falar do capitalismo: a
intervenção estatal deve ser limitada ao estritamente necessário. Estes
princípios não são estranhos à nova via neoliberal do capitalismo. Em
cada país, a liberdade de iniciativa, de comprar e vender, de empregar e
demitir trabalhadores, de comprar filiais e fazer fusões, etc. foi
aumentada, ao passo que os direitos dos trabalhadores, restringidos. No
plano internacional, as fronteiras comerciais foram reduzidas, quando não
suprimidas, e os capitais adquiriram o direito de circular livremente.
Todos estes processos estão, no mínimo, em andamento. Entretanto, em
muitos domínios, o poder estatal foi reforçado. É o caso,
principalmente, das políticas monetárias que, de agora em diante, quase
exclusivamente visam à estabilidade dos preços, à despeito do
desemprego que geram. Em todo lugar, os Estados foram os vetores do
estabelecimento do neoliberalismo, tanto no plano nacional quanto no
internacional. As alavancas que os promotores da ordem neoliberal têm à
mão são, principalmente, ao nível das empresas, as taxas de juros
elevadas e um “governo de empresa” (leia-se uma “gestão”)
direcionado aos interesses dos acionistas – elemento chave da nova
disciplina imposta aos trabalhadores e aos gerentes. No nível estatal,
novas políticas são aplicadas: políticas macroeconômicas (baixa inflação)
ou sociais (diminuição do custo do trabalho), visando atender aos mesmos
interesses. No plano internacional, trata-se da mundialização da ordem
neoliberal, pela eliminação das barreiras à circulação de bens e
capitais e da abertura dos países ao capital internacional,
principalmente, pela venda, a preços baixos, das empresas públicas
potencialmente rentáveis. Exportação de capitais, taxas de juros
elevadas e preços baixos e decrescentes das matérias-primas permitem a
transferência de enormes montantes de renda para os países
imperialistas.
2. É difícil datar uma
transformação tão complexa como o aparecimento do neoliberalismo. O fim
de 1979, entretanto, representa uma data emblemática. Indicado à chefia
do banco central dos EUA por Jimmy Carter – então em fim de mandato –
Paul Volcker decidiu aumentar as taxas de juros até onde fosse necessário
para acabar com a inflação. Outras transformações já estavam em curso
desde, em particular, a crise do dólar no começo dos anos 70, como, por
exemplo, o abandono das paridades fixas características do sistema de
Bretton Woods, instaurado ao fim da II Guerra Mundial. A eliminação das
barreiras ou simples restrições à livre circulação de capitais
estavam em curso. A possante máquina financeira dos euromercados
ou do eurobanco estava já bem estabelecida no plano internacional,
livres do controle dos bancos centrais. A incapacidade de fazer frente à crise
estrutural que atingiu as principais economias capitalistas nos anos
70, sobretudo a inflação cumulativa, criou as condições econômicas,
sociais e políticas que permitiram o estabelecimento da nova ordem social:
combinaram-se, então, o fracasso da antiga ordem e as pressões dos
promotores da nova. A tudo isto se soma o então cada vez mais evidente
fracasso do modelo soviético e a fragilidade do movimento operário.
Tais transformações
foram obra das frações superiores das classes capitalistas. Num tipo de
capitalismo onde propriedade e gestão estão separadas, a propriedade dos
meios de produção por esses grupos sociais se exprime através da detenção
de ações, isto é, de títulos: eles são, de igual modo, os credores,
pois possuem os títulos de crédito que lhes dão direito sobre uma parte
dos lucros das empresas. Esta propriedade tem, portanto, um caráter
financeiro: Marx reunia as posições dos acionistas e dos emprestadores,
freqüentemente os mesmos, na categoria de capital de empréstimo.
O fato da gestão das empresas passar às mãos de assalariados poderia
ter significado uma perda de poder dos proprietários “financeiros”,
contudo o poder deste proprietário se concentrou, desde o início, nas
poderosas instituições financeiras, como os bancos, os holdings
financeiros e fundos diversos (de pensão, para o financiamento de
aposentadorias, ou de outra natureza). Chamamos finança estas frações
superioras das classes capitalistas e suas instituições financeiras. Não
se trata de uma atividade particular, como um banco. No capitalismo
moderno, a classe dos grandes proprietários do capital é relativamente
unida, possuiu partes de todos os setores da economia (por meio de seus títulos)
e os controla (através de suas instituições financeiras).
Isto não impede que as atividades propriamente financeiras e o setor
financeiro tenham adquirido, no neoliberalismo, uma maior importância.
Por um lado, tais atividades tornaram-se muito mais rentáveis e, por
outro, o controle da economia nacional e mundial pelas instituições
financeiras é crucial na manutenção e perpetuação da ordem
neoliberal. Por tais razões é que falamos de bom grado em financeirização
e em mundialização financeira.
Embora Lênin, em Imperialismo,
fase superior do capitalismo,
tenha desenhado um painel abrangente da realidade do capitalismo no começo
do séc. XX, nós não damos o mesmo conteúdo ao termo imperialismo.
Parece-nos mais correto fazer do imperialismo uma característica geral e
permanente do capitalismo. Desde suas mais remotas e embrionárias origens
(podemos lembrar das Ligas Hanseáticas), o capitalismo busca seus lucros
fora de suas metrópoles, com a avidez que lhe é peculiar.
Esta busca, estrutural no
capitalismo, sempre esteve aliada a processos de dominação de toda espécie,
indo desde a simples imposição da abertura de fronteiras de países em nível
de desenvolvimento inferior, com as dramáticas conseqüências já
conhecidas, até o colonialismo puro e simples, e toda sua pressão e
extorsão decorrentes.
Seus meios são as guerras e a subordinação, a aculturação e,
sobretudo no passado, a evangelização. Um episódio particularmente
hediondo foi a escravidão; contudo, a situação atual das populações
das maquiladoras não difere muito. É o conjunto destas relações
que constitui o sistema do imperialismo, que se define pela procura por
lucros, por meio da sujeição, fora das metrópoles capitalistas.
Se o imperialismo não é
somente uma fase do capitalismo, ele próprio passa por fases diversas,
que são o reflexo das transformações nos próprios países
imperialistas. Suas principais características mudam. Por exemplo, nos
primeiros períodos, a relação dominante foi a comercial. Ela se
combinou rapidamente com modos de financiamento particulares, por exemplo,
a exportação de capital, como ocorreu no império espanhol na América,
onde os comerciantes espanhóis financiavam a agricultura e as minas dos criollos.
Mercadoria e capital estiveram estreitamente ligados. De igual modo, o
imperialismo neoliberal possuiu naturalmente suas características próprias
em particular a importância das movimentações financeiras, como mostra
este estudo.
O imperialismo não é
obra de um só país, mas de um conjunto deles. Estes mantêm, por um
lado, relações de luta, indo até o confronto armado entre duas potências,
ou grupos de potências dentro de sistemas de alianças, mas operam, por
outro lado, igualmente relações de cooperação. Cada Estado representa
aí o interesse de suas classes dominantes. Um país pode ocupar uma posição
hegemônica, como os EUA, que dirigem, no mundo contemporâneo unipolar, o
grupo de países imperialistas. A relação de dominação se estabelece,
então, num nível duplo: entre o país dominante e os outros membros do
grupo e, entre estes países imperialistas e os outros dominados. Em
verdade, trata-se de uma hierarquia de poderes, onde o mais forte explora
o mais fraco.
Evidentemente,
no mundo neoliberal e imperialista, os países e Estados continuam a
desempenhar um papel central a despeito da globalização, e isto se dá
de diversas maneiras. As grandes sociedades são mais transnacionais que
multinacionais: neste sentido, elas continuam vinculadas a um país de
origem tanto por sua propriedade quando por sua administração. Os
proprietários ainda possuem uma nacionalidade. Apesar dos paraísos
fiscais, podemos notar os fluxos de renda internacionais se consolidarem
em favor de certos países. As situações macroeconômicas dos diversos
países não são equivalentes e tais particularidades possuem efeitos
consideráveis. Mostraremos, principalmente, as conseqüências do fato
dos EUA não serem mais obrigados a equilibrar suas contas externas, pelo
fato mesmo de seu poderio. Esta permanência dos vínculos nacionais, aliás,
se manifesta claramente quando cada Estado age para defender seus
interesses nacionais.
Neoliberalismo: renda,
patrimônio e modo de vida das classes mais ricas
Antes de analisar o
neoliberalismo por aquilo que ele é, é conveniente refutar a tese que o
apresenta como um modelo de desenvolvimento. Nem no centro, nem na
periferia, o neoliberalismo se apresenta como tal. Mesmo nos EUA, a taxa
de crescimento da produção e a taxa de acumulação de capital (a taxa
de crescimento do estoque de capital fixo, isto é, o conjunto das construções
e materiais de que dispõem as empresas para construir) registradas desde
1980 são menos elevadas que as detectadas nos decênios anteriores desde
a II Guerra Mundial. Entretanto, os EUA gozam de uma situação
privilegiada, ligada à sua posição dominante. Na Europa, a redução da
taxa de crescimento e acumulação foi dramática. Na França, por exemplo,
a taxa de acumulação das sociedades não-financeiras atingiu 8% no começo
dos anos 70; caiu profundamente durante a crise estrutural que se seguiu
no mesma década e não foi restabelecida com o neoliberalismo. Ao
fim do séc. XX, ela oscilava em torno de 2%. Correlativamente, a
Europa não consegue escapar de seu desemprego estrutural.
A situação é
particularmente dramática nos numerosos países da periferia. Se
colocarmos de lado os modelos altamente específicos como o da Coréia e
de alguns países como a China, Índia e Chile, o quadro é espantoso na
América Latina e catastrófico na África. O gráfico 1 mostra o
perfil de muitas décadas da produção no Brasil, México e Argentina.
Nestes três países, a ruptura do crescimento se manifesta no começo dos
anos 80. Nenhum restabelecimento posterior é aparente, em que pese a
docilidade destes países frente à ordem neoliberal e, no caso do México,
frente à associação com os EUA e Canadá desde 1994, no âmbito do
NAFTA. A queda das taxas de crescimento e a instabilidade macroeconômica
(a recorrência de recessões) são particularmente evidentes nestes países,
todas começando, brutalmente, com a crise da dívida em 1982.
Pode-se notar, no caso
argentino, que a transição ao neoliberalismo em 1990 ocorreu em seguida
a um período de estagnação. Ela foi seguida de alguns anos de
crescimento mais sustentável, levando a crer que se tratava de uma
demonstração das potencialidades do modelo neoliberal. Só que
conhecemos o final da história!
Gráfico 1.
Produto Interno Bruto (PIB) na periferia (bilhões de dólares 1996):
Brasil, México e Argentina
Os dados são expressos
em paridade de poder de compra, o que dá sentido à comparação dos níveis
absolutos, refletindo o tamanho dos três países.
Os objetivos da ordem
neoliberal são de uma outra natureza que o desenvolvimento da periferia
ou mesmo que a acumulação no centro. Na verdade, sua razão de existir
é a restauração da renda e do patrimônio das frações superiores das
classes dominantes. Não há, propriamente falando, estatísticas que
permitem caracterizar “classes”. Contudo, certos trabalhos e enquetes
fornecem dados relativos a concentração de renda e riquezas. O gráfico
2 mostra a fração da renda disponível total recebida pelas famílias
dos 1% mais ricos nos EUA.
Gráfico 2. Parte
da renda disponível das famílias detida pelo 1% com renda mais elevada
(%): EUA
Vemos neste gráfico que
a camada composta pelo 1% que possui renda mais alta recebeu mais de 16%
do total da renda dos EUA antes da crise de 1929 e da II Guerra Mundial:
“felizes” tempos de um capitalismo dominado por uma burguesia
facilmente identificável. Com o fim da guerra, este índice caiu
subitamente para a 8% e continuou aí até o começo dos anos 80. A renda
de capital estava profundamente diminuída e a hierarquia de salários
fortemente reduzida. Estas décadas são comumente designadas como as do compromisso
keynesiano. Além da redução das desigualdades, elas se
caracterizaram por uma forte autonomia dos quadros administrativos
(gerentes), tanto no nível das empresas como nas instâncias centrais
responsáveis pelas políticas econômicas e de gestão social (educação,
saúde, etc.). Como os proprietários do capital, os setores financeiros
eram pouco remunerados; o lucro ficava nas empresas e era reinvestido. Com
o neoliberalismo, as porcentagens do gráfico 2 ascendem aos níveis
similares aos do pré-guerra.
O estudo da riqueza total
destas classes dominantes faz aparecer sua forte diminuição relativa
durante a crise dos anos 70. Se no pós-guerra a
camada das famílias mais ricas, representando 1% da população, detinha
aproximadamente um terço da riqueza total do país, no começo dos anos
70, esta porcentagem caiu para 22%. Em poucos anos, o neoliberalismo
restabeleceu a concentração de patrimônio (sempre relativo ao conjunto
da população) nos níveis anteriores à crise, ou até mais altos.
A restauração da condição
destas classes continua, entretanto, incompleta. Um elemento crucial é a
redução da fiscalização direta sobre as altas rendas. Ela está em
curso, em que pese a pressão constante exercida pela existência de
desequilíbrios orçamentários tenazes.
Como tais variações de
renda e riqueza foram possíveis? Durante os anos 70, as taxas de inflação
estiveram superiores às taxas de juros; as empresas eram poucos rentáveis
e distribuíam poucos dividendos; correlativamente, o nível da bolsa,
corrigido pela inflação, estava dividido por dois e estagnado.
Compreende-se facilmente como as classes cuja renda é largamente derivada
da detenção de títulos via sua renda e riqueza comprometidas.
O neoliberalismo mudou
tudo isso. As taxas de juros corrigidas pela inflação, antes débeis,
saltaram ao nível de 5% (para a taxa de juros sobre os créditos a longo
prazo das empresas mais bem cotadas). A rentabilidade das empresas
melhorou e elas distribuíram um fração crescente de seus lucros sob a
forma de dividendos. De cerca de 30% dos lucros (após o pagamento de
juros e impostos), a porcentagem distribuída aos acionistas subiu
gradualmente até chegar a praticamente 100% dos lucros no final do séc.
XX. As cotações da bolsa (sempre corrigidas pela inflação) foram
multiplicadas por três com relação aos seus níveis anteriores à crise
dos anos 70.
Ora, não foi nenhum
milagre. Não foi nada além de questões de poder e relação de força,
tanto no plano nacional quanto internacional.
Este reforço da renda e
dos patrimônios modificou profundamente o comportamento das classes
dominantes. Desde praticamente o começo da era neoliberal, as famílias
dos EUA aumentaram formidavelmente suas despesas com consumo e habitação,
sobretudo a segunda.
O gráfico 3
mostra a parte do consumo das famílias estadunidenses no Produto Interno
Bruto (PIB) desde os anos 50. Nota-se claramente que as taxas oscilam ao
redor de 62% ou 63% antes do neoliberalismo. Desde o começo dos anos 80,
esta taxa aumentou regularmente e de maneira especulativa, até passar 70%
no começo do séc. XXI.
Esta alta do consumo das
famílias tem duas origens: a alta em parte de sua renda no PIB e a baixa
em sua taxa de poupança (a alta na parte de sua renda destinada ao
consumo). Estes dois mecanismos concernem às famílias mais ricas.
No que diz respeito à
baixa na taxa de poupança, um estudo do FED,
permite identificar as camadas da população que estão no origem desta
queda. O estudo divide as famílias em cinco grupos segundo sua renda (as
20% com renda mais elevada, as 20% do grupo imediatamente inferior, etc.)
Toda queda na poupança se concentra no seio do grupo com a renda mais
elevada, tradicionalmente a fonte de poupança do país (uma vez que os
pobres poupam pouco). No fim do século, as taxas de poupança destas
camadas mais ricas tornou-se negativa, o que significa que elas gastam
mais que ganham (sem dúvida há uma ligação com a alta dos preços da
bolsa) e se endividam. A alta formidável da taxa de endividamento das famílias
é outra característica da macroeconomia estadunidense, sem que saibamos
em que medida ela se concentra nesta fração das famílias mais abastadas.
Gráfico 3. Relação
do consumo das famílias com o PIB (dados trimestrais,%): EUA
O consumo das famílias
é a soma da compra de bens e serviços (inclusive habitação).
Fonte: NIPA (BEA).
As conseqüências deste
processo foram ampliadas uma vez que estas camadas concentram a renda
financeira que é a que aumentou grandemente. Entre 1952 e 1979, isto é,
antes do neoliberalismo, a renda financeira (juros e dividendos, sem
contar com os ganhos em capital) representou, em média, 10% da renda
total das famílias. Entre 1980 e 2003, esta porcentagem atingiu 17%.
O custo para as outras
classes e países foi considerável: crescimento lento, desemprego,
desarticulação das sociedades, miséria, etc. Mas, do ponto de vista de
seus objetivos, o neoliberalismo foi um sucesso brilhante.
A poderio do imperialismo
estadunidense
Não podemos compreender,
entretanto, a dinâmica da renda de capital nos EUA sem examinar as relações
entre este país e o resto do mundo. É lá que a pressão imperialista
propriamente dita entre em ação.
Não existe nenhum meio
simples de apreender o efeito da relação dos EUA com o resto do mundo no
que tange à renda de capital deste país. Os mecanismos são, em efeito,
múltiplos. Conhecemos, por exemplo, a importância da compra de matéria-prima,
incluídas aí as fontes de energia, à um preço favorável aos países
compradores. Ao longo dos decênios neoliberais, estes preços não
pararam de cair, às vezes divisões por três. Outros mecanismos como a
importação de cérebros do resto do mundo (o brain drain)
contribuíram fortemente, não somente para a renda, mas também para a
manutenção da predominância tecnológica dos EUA. Aí também a
quantificação é problemática. Inversamente, os sistemas de
contabilidade nacionais fornecem estimativas de fluxo de renda, chamada
financeira, como os pagamentos de dividendos e juros, assim como os lucros
da sociedades transnacionais retidos no exterior, mas que são de
propriedade das matrizes estadunidenses.
Como preâmbulo a esta
investigação, é preciso determinar bem um detalhe terminológico.
Entendemos genericamente por investimento o acréscimo que é feito ao
capital fixo, ao longo de um certo período. Podemos juntar aí a variação
dos estoques. Entretanto, utilizamos, cada vez mais comumente, o mesmo
termo para falar de uma movimentação financeira, por exemplo, uma compra
de uma ação ou de uma obrigação. Quando se trata de um investimento
direto, isto é, a tomada de participação em uma sociedade com mais de
10% de capital de uma outra, criando uma filial, os epítetos “físico”
e “financeiro” não são adequados nem a um nem outro. Contraporemos,
entretanto, o investimento em capital fixo e em estoques – físico –
ao investimento financeiro, incluído aí o investimento direto.
Consideraremos,
primeiramente, os investimentos diretos das sociedades transnacionais dos
EUA no exterior. Os lucros auferidos destes investimentos se compõem de
dividendos, de juros e de lucros conservados no exterior. Os dados disponíveis
permitem separa-los da massa de outros lucros qualificados de “lucros
domésticos”. Em verdade, certos lucros domésticos são oriundos do
resto do mundo, haja vista os preços baixos das matérias-primas ou os
pagamentos efetuados desde o exterior às sociedades baseadas no EUA (como
uma parte dos pagamentos de juros sobre a dívida da periferia).
Em 2000, o conjunto dos
lucros oriundos de investimentos diretos dos EUA, ou seja, os lucros das
filiais das transnacionais em outros países representaram 53% dos lucros
domésticos. Sabendo que os lucros domésticos contêm ainda uma fração
de renda apropriada do resto do mundo, esta cifra já dá uma idéia
surpreendente da importância para a renda de capital dos EUA da abertura
internacional desta economia.
O gráfico 4
mostra a evolução desta porcentagem de lucro das transnacionais sobre
seus investimentos diretos ao exterior no cômputo dos lucros domésticos.
Vemos um crescimento muito regular, em torno de 10% em 1948, até 53%, que
é o ponto culminante em 2000. Esta progressão é a da mundialização da
economia, e o neoliberalismo não constitui uma ruptura. De fato, esta
ordem social, pouco favorável ao investimento físico, diminuiu
consideravelmente o crescimento do fluxo de investimentos diretos das
transnacionais dos EUA, tanto em volume como na parcela da produção
total deste país.
Dispomos igualmente de
uma medida de toda renda proveniente de todas as categorias de
investimento financeiro, incluído o investimento direto, de agentes
estadunidenses no resto do mundo. De igual modo, podemos relaciona-los aos
lucros domésticos para poder apreciar a dimensão. A
porcentagem atingiu 100% em 2000. Isto é, a massa da renda
apropriada do resto do mundo sob forma de dividendos, juros e lucros
retidos nas filiais no exterior foi igual àquela massa dos lucros domésticos.
Não se trata, portanto, de um pequeno complemento da atividade
territorial.
Gráfico 4. Relação
da renda vinda do exterior com os lucros das sociedades realizados nos EUA
A
série dos lucros domésticos das sociedades utilizada no cálculo foi
algo retificada afim de evitar as flutuações que refletem as variações
conjunturais do nível geral de atividade. As flutuações restantes são
principalmente efeito das variações das taxas de juros.
O gráfico 4
descreve igualmente a variação desta porcentagem ao longo do tempo. Nela
encontramos o ponto culminante de 100% em 2000. Entretanto, a observação
mais chocante é a alta espetacular ao final dos anos 70, consolidada sob
o neoliberalismo. Todo o período neoliberal aparece, desta forma, marcada
pelo signo da apropriação da renda financeira em cima do resto do mundo.
A porcentagem oscila em torno do patamar de 80%.
Toda a primeira fase da
alta, ao final dos anos 70, reflete o crescimento dos juros sobre a dívida,
então chamada do terceiro-mundo. Mas, naquela época, a desvalorização
desta dívida pela inflação significava uma contra-transferência em
favor dos endividados que a medida descrita no gráfico não leva em conta.
Com o fim da inflação, o índice toma toda sua amplitude propriamente
neoliberal. Contrariamente ao componente desta renda correspondente aos
investimentos diretos, a alta da renda sobre os investimentos de portfólio
foi fortemente efeito da alta das taxas de juros e aparece, neste ponto,
emblemática da ordem neoliberal.
Tiremos, então, a lição
principal desta análise, em que pesem as limitações dos dados disponíveis:
em 2000, a renda financeira que os EUA retiraram de suas relações com o
resto do mundo foi superior ao conjunto dos lucros de suas próprias
sociedades em território americano. Um imperialismo musculoso, então, e
crucial para a remuneração do capital neste país.
É evidente, de igual
modo, que há estrangeiros que efetuam investimentos financeiros nos EUA,
o que somente contribui para o aumento da importância do fluxo de renda
retirado do resto do mundo. Temporariamente, limitar-nos-emos a um só
aspecto desta relação bilateral, concernentes aos rendimentos dos
investimentos de uns e dos outros.
Alguém notará que
consideramos aqui somente os investimentos financeiros que os agentes do
resto do mundo efetuam nos EUA, e não seus investimentos nos outros países.
Inversamente, levamos em consideração todos os investimentos dos EUA em
todos os países. Trata-se, então, de examinar a posição dos EUA
enquanto investidores e enquanto alvo de investimentos.
Gráfico 5. Taxa de rendimento aparente sobre os ativos dos
EUA no resto do mundo e e sobre os ativos do resto do mundo nos EUA,
corrigidos pela inflação (%)
Fonte:
International Transactions data (BEA); NIPA (BEA).
O gráfico 5
mostra as taxas de rendimento sobre os investimentos dos agentes
estadunidenses ao exterior e dos estrangeiros quando investem nos EUA. Foi
feita uma correção pela desvalorização da dívida pela inflação.
Dois tipos de comentários se impõem.
1.
Os dois perfis são similares. Notamos uma forte alta dos rendimentos em
torno de 4 pontos percentuais ao fim dos ano 70, o que marca a aparição
de altas taxas de juros características dos anos neoliberais. As taxas caíram
um pouco nos anos 90.
2. A principal descoberta
é a diferença bem pronunciada dos rendimentos, em torno de 4% de uma
ponta a outra do período. Esta é a expressão de uma forte assimetria.
Quando os EUA fazem investimentos financeiros no resto do mundo, eles são
bem remunerados, 7 ou 9% segundo o sub-período, bem acima dos rendimentos
obtidos pelos estrangeiros que investem nos EUA. Esta diferença de
rendimento aparece para cada um dos componentes do investimento financeiro,
do de portfólio e do direto.
A composição dos
investimentos dos EUA ao exterior é bem diferente dos investimentos dos
estrangeiros nos EUA. Aquela é composta de investimentos diretos,
aproximadamente 50%, quando a cifra para o segundo caso é 20%. Assim,
este país funciona, segundo a terminologia de Marx, como um tipo de
“capitalismo ativo”, ao passo que os estrangeiros tem um comportamento
mais de “emprestadores” – sempre segundo a terminologia de Marx –
que reunia os acionistas de fora da administração (gestion)
da empresa e os credores sob a mesma rubrica de capital de empréstimo.
Estes rentistas são, por exemplo, as ricas famílias da América Latina
ou os emires do Oriente Médio, ou ainda os bancos centrais que investem
seus ativos em dólar em bônus do tesouro dos EUA, comportando-se assim,
como “Estados rentistas”. Esta diferença de composição explica, em
parte, a diferença de rendimentos sobre o conjunto do investimento
financeiro.
Uma trajetória insustentável
As seções precedentes
lançaram uma luz surpreendente sobre o poderio do imperialismo
estadunidense. A apropriação sobre o resto do mundo é formidável por
seu tamanho, e por sua eficácia, claramente expressos em seus rendimentos.
Compreendemos, incidentemente, qual motivação pode ter este país, em
particular seu governo, para conservar por todas as maneiras, econômicas,
políticas e militares, este empreendimento. Mas, igualmente, apreendemos
a dependência que é concomitantemente criada. Esta trajetória é,
contudo, trespassada por uma contradição maior. À
descrição de sua natureza será dedicada esta seção.
Examinaremos, em primeiro
lugar, a relação entre poupança e investimento nos EUA. Aqui,
entendemos por investimento aquele em capital fixo das empresas, segundo
as definições dadas anteriormente. Poupança e investimentos são
expressos em porcentagem da produção total dos EUA (o Produto Interno Líquido,
PIL), igual a renda total levando em conta os fluxos de renda com o
exterior.
O contraste entre as décadas
neoliberais e as primeiras décadas do pós-guerra é chocante. Antes de
1980, as taxas de poupança e de investimento dos EUA oscilavam em torno
de 4 ou 5%. As duas taxas caíram com o aparecimento do neoliberalismo:
uma diminuição moderada, embora significativa da taxa de investimento,
de 4,1% antes de 1980 à 3,5% posteriormente e uma queda espetacular da
taxa de poupança de 4,5 a 1% para os mesmos períodos. Com uma rapidez
desconcertante, os EUA começaram a investir muito mais do que poupavam no
começo dos anos 80. Globalmente, isso significa que eles gastavam, em
consumo e investimento, claramente mais do que sua renda.
Há dois componentes
nesta formidável onda de despesas. De início e muito subitamente, um
forte déficit orçamentário apareceu no começo dos anos 80. Ele
resultou da alta das taxas de juros, da diminuição das receitas e da
alta das despesas militares (a “Guerra nas Estrelas” de Ronald Reagan).
Mas, existe um outro componente que se impôs gradual e incessantemente:
trata-se da alta do consumo das famílias descrito no gráfico 3,
que provocou a queda na taxa da poupança dos mesmos e que já notamos ser
o produto das despesas desregradas das classes mais abastadas.
Como isto é possível?
1. Por razões contábeis,
a diferença entre a poupança e o investimento do gráfico 6 é
igual ao saldo da balança corrente dos EUA, isto é, a soma da balança
comercial (exportações menos importações) e o saldo dos fluxos de
renda com o exterior (com as transferências unilaterais aproximadas). O
primeiro componente – fluxos comerciais – é que aprofundou a diferença.
Assim, o gráfico 6 exibe um déficit da balança de pagamentos
correntes ao longo dos anos neoliberais.
2. Quando os EUA importam
mais do que exportam, os estrangeiros recebem os pagamentos em dólar, sem
contrapartida financeira (estes dólares não resultam, por exemplo, de
uma tomada de empréstimo). Se os estrangeiros vendem estes dólares, a
cotação desta moeda baixa, o que tenderá a corrigir o déficit exterior
(sem que tal ajuste seja automático). Em verdade, os estrangeiros, tendo
em vista a pujança da economia estadunidense e a debilidade macroeconômica
de seu próprio país, realizam investimentos financeiros nos ativos
estadunidenses. Assim, ao comprar ações, ao emprestar às empresas, famílias
ou ao governo estadunidense, eles participam do financiamento da economia
dos EUA. Uma política monetária dos EUA, que ajusta as massas de créditos
domésticos ao nível requerido pela busca de uma atividade estável, dosa
os complementos a este aporte ao exterior.
Isto funcionará bem enquanto os estrangeiros estiverem satisfeitos com
esta utilização de seu poder de compra em dólares.
Gráfico 6. Relação
entre a poupança líquida e investimentos líquidos com o Produto Interno
Líquido (%): EUA
O
investimento é o investimento físico das empresas; a poupança é o
excesso da renda nacional sobre todas as outras despesas que não este
investimento. O investimento líquido é igual ao investimento bruto
menos o consumo de capital.
Figure 7.
Relações dos ativos do resto do mundo nos EUA e dos ativos dos EUA no
resto do mundo sobre o Produto Interno Líquido estadunidense.
Por razões contábeis, a
variação do saldo (―) é inteiramente efeito dos desequilíbrios
da balança corrente (saldo das exportações e importações de bens e
serviços e do fluxo de renda). Toda operação financeira (investimento
direto ou não, crédito, operação de câmbio…) não interfere nos
dois estoques de ativos, (– –) e (---), ou os modifica segundo o mesmo
montante, o que não faz diferença.
Fonte:
Flow of Funds (Federal Reserve).
O aspecto evidente de tal
trajetória é o crescimento relativo dos ativos de estrangeiros nos EUA
com relação aos ativos deste país no resto do mundo. O gráfico 7
descreve estes dois estoques de ativos divididos pela produção
estadunidense.
Podemos observar o
aumento gradual dos ativos dos EUA no resto do mundo de algo em torno de
11% nos anos 50 para 36% no fim do período. A curva dos ativos do resto
do mundo nos EUA inicia-se bem abaixo da precedente, mas, em 1985,
cruza-se com ela em 22%. A ascensão é irreversível, indo até 78% da
produção dos EUA. A terceira curva dá a medida da diferença entre os
dois estoques. Os valores negativos do primeiro período exprimem os
excedentes de ativos dos EUA no resto do mundo, até a mudança de sinal
em 1985. Em 2003, o excedente dos ativos do resto do mundo sobre os dos
EUA representou 40% da produção deste país! Falamos algumas vezes de
uma dívida externa, mas estes ativos contêm elementos, com as ações,
que não fazem parte da natureza de um endividamento. Podemos, entretanto,
afirmar que o essencial da deteriorização corresponde a esta dívida
crescente.
É grave? Um primeiro
problema é o da vontade dos estrangeiros de conservar seus dólares e,
portanto, de efetuar estes investimentos financeiros (uma vez que
evidentemente eles não têm interesse em conservar seus ativos sem
remuneração), sabendo que tratamos aqui do total de investimentos
estrangeiros, independentemente dos investimentos dos EUA no exterior.
Tendo em vista os primeiros meses de 2004, podemos se perguntar se a queda
do dólar desde 2002 é a expressão de tal retorno. Contudo, deve-se
notar que o dólar estava em alta em 2002. Podemos igualmente pensar que
os EUA desejaram e, muito provavelmente, contribuíram a esta baixa para
manter sua economia em recessão. Mas, mesmo sob a hipótese da continuação
destes investimentos financeiros estrangeiros, vemos surgir uma contradição
que coloca em questão a própria continuação da trajetória da economia
estadunidense.
O
problema é simples. À força de permitir o financiamento exterior nos níveis
de suas importações, os EUA deram ao aporte dos estrangeiros um lugar
importante no financiamento de sua economia e devem, por este motivo,
remunerá-los. Muito felizmente para a economia dos EUA, os investimentos
estrangeiros são mal remunerados Entretanto, a sangria na renda de
capital nos EUA vai crescendo.
Gráfico 8. Relação
dos fluxos de renda sobre os ativos dos EUA no resto do mundo e do resto
do mundo sobre os EUA com o Produto Interno Líquido.
Um
sinal positivo da diferença (―) significa que o resto do mundo
recebe mais renda vinda dos EUA que os EUA recebem do resto do mundo.
Fonte:
International Transactions data (BEA); NIPA (BEA)
O
gráfico 8 mostra os fluxos de renda entre os EUA e o resto do
mundo, fluxos de entrada e de saída. A primeira curva (– –) descreve,
como no gráfico 4, o fluxo de rendas que entram, mas o denominador
é, desta vez, a produção dos EUA. Estes fluxos representam 4% do PIL em
2000. Esta porcentagem é menos impressionante que a do gráfico 8,
mas é preciso ter em mente que os lucros das sociedades representam
somente uma “débil” fração da renda total.
O mesmo gráfico mostra também a porcentagem crescente dos fluxos de saída
(---).
Gráfico
9. Fluxo líquido (entradas menos saídas) de renda entre os EUA e a
América Latina.
Fonte:
International Transactions data (BEA); NIPA (BEA)
Podemos
distinguir três períodos. De 1946 a 1972, as duas porcentagens aumentam
ligeiramente, ao passo que sua diferença aumenta sutilmente. O período
de 1973 a 1979 ocupa uma posição intermediária. Os fluxos de entrada
cresceram rapidamente até 2,7% e os fluxos de saída, somente até 1,5%.
Mas, esta alta dos fluxos que entram não estava a altura da ascensão
espetacular ao longo das duas últimas décadas. Ao passo que o fluxo de
entrada estagna, os fluxos de saída continuam sua ascensão até se
encontrarem e atingir, posteriormente, o pico de 4% em 2000.
A
terceira linha do gráfico (―) descreve a diferença entre os dois
fluxos, ou seja o fluxo de entrada líquido dos EUA. Estes fluxos líquidos,
em benefício dos EUA crescem sensivelmente entre 1973 e 1980. Mas, a
inovação radical foi a interrupção deste crescimento, depois a queda
nos anos seguintes. Esse aumento da renda que os EUA retiraram do resto do
mundo então se anulou e, desde 2002, ficou até mesmo negativo durante
certos trimestres.
A
explicação desta degradação é, evidentemente, o excesso crescente dos
ativos estrangeiros nos EUA descrito no gráfico 7. Em que pese a
grande rentabilidade dos investimentos deste país ao exterior, sua posição
externa se deteriorou a tal ponto que eles começam a pagar aos
estrangeiros mais renda financeira do que recebem. Lembremos que a causa
deste movimento é a onda de consumo das classes mais ricas.
Podemos
ilustrar esta nova situação ao examinar os fluxos de renda entre os EUA
e a América Latina no gráfico 9. Os fluxos considerados são
fluxos líquidos, isto é, os fluxos que entram nos EUA a partir da América
Latina, menos os fluxos que saem daquele país em direção a esta região
do mundo. Uma curva concentra o total dos fluxos correspondentes aos
investimentos diretos e em portfólio, isto é, os dois componentes do
fluxo total.
O
gráfico 9 mostra que os fluxos líquidos totais em favor do EUA
aumentaram até mais de 0,5% da produção deste país no começo dos anos
80 (estes fluxos não levam em conta a desvalorização das dívidas pela
inflação). Em seguida, eles diminuíram a um patamar de 0,15% ao ano,
antes de mergulhar na crise do fim do século (recessão estadunidense e
crise na América Latina, principalmente na Argentina). A América Latina
é, portanto, uma das regiões do mundo que contribuiu à baixa dos fluxos
de renda do resto do mundo em favor dos EUA.
Entretanto,
o mais interessante é a decomposição por tipo de investimento. Aí se
encontram as características já identificadas. Em primeiro lugar, o gráfico
revela a importância e a estabilidade da renda oriunda dos investimentos
diretos das transnacionais estadunidenses, que estabilizaram a 0,2% da
produção deste país. Em segundo lugar, observa-se a queda da renda líquida
sobre os investimentos em portfólio, depois a negatividade deste fluxo, o
que significa que os EUA pagaram – e continuaram a pagar no fim do período
– renda financeira, juros e dividendos superiores àqueles que receberam
aos investidores da América Latina (em que pese a dívida da periferia).
Eis a imagem da fuga dos capitais das classes mais abastadas destes países
em direção a pátria–mãe do capitalismo. Podemos notar, em
particular, a alta deste fluxo líquido de renda (uma baixa no gráfico) a
partir de 2000. Este movimento reflete um fluxo líquido crescente de
investimentos em portfólio. Com a exceção do ano de 1998, a América
Latina financiou, de fato, o longo boom estadunidense da segunda metade
dos anos 90. Este quadro da América Latina, credora dos EUA,
caracteriza de maneira chocante a nova configuração das relações
financeiras no plano mundial. Para esta região do mundo, o problema é, a
bem da verdade, a separação entre os Estados e empresas endividados e
certas famílias ricas. Como é bem sabido, nem todos os habitantes da América
Latina sofrem.
Conclusão
Os
mecanismos descritos nas seções precedentes revelam a existência de uma
contradição no interior do sistema imperialista estadunidense na época
neoliberal. Podemos resumir a cadeia completa da maneira seguinte.
A
continuação da trajetória atual depende de duas condições imediatas:
(1) que os estrangeiros aceitem investir seus dólares nos EUA, portanto,
que a cotação do dólar se mantenha; (2) que a diferença de remuneração
dos investimentos financeiros dos estrangeiros (gráfico 5) com
relação aos investimentos estadunidenses não diminua. Com relação a
esta última condição, podemos afirmar que se os EUA devem pagar taxas
de rendimentos lucrativas aos estrangeiros, o fluxo de saída será igual
ao total do lucro interno das sociedades estadunidenses! É evidente que
uma situação como está fora de cogitação.
Do
ponto de vista estadunidense, esta trajetória longa não pode se
prolongar sem colocar em questão a dominação deste país e a opulência
de suas classes dominantes. Ela transformará os EUA em provedores de
renda financeira para o resto do mundo, em detrimento de sua própria
classe dominante. O que está em questão é, portanto, claramente uma mudança
de trajetória.
Na
discussão dos cenários vindouros, é conveniente distinguir bem a
diferença entre neoliberalismo e imperialismo. Em primeiro lugar, mesmo
que os EUA sejam já imperialistas durante as décadas do compromisso
keynesiano (de fato, eles são desde que existem), portanto, antes do
neoliberalismo, eles continuarão na eventualidade de uma nova fase, para
além do neoliberalismo. Em segundo lugar, é preciso notar que o problema
colocado pelo encadeamento acima é o devido ao neoliberalismo, não ao
imperialismo. A capacidade imperialista dos EUA continua firme forte, quiçá
aumentada.
Quais
mudanças? Podemos ver quatro componentes:
(1) a redução do consumo das classes mais abastadas; (2) taxas de
acumulação mais elevadas e financiadas pelo próprio país; (3) uma
demanda dirigida para a produção nacional; (4) eventualmente, uma pressão
exterior crescente sobre o resto do mundo. Os problemas, entretanto, são
múltiplos:
1.
O novo rumo poderá entrar em contradição com os objetivos neoliberais.
Um método, cuja eficácia o passado revelou, para restabelecer as taxas
de acumulação é conservar os lucros nas sociedades não-financeiras, ao
invés de investi-los em juros e dividendos. Mas, que acontecerá com a
renda das classes dominantes e com seu nível de vida? Podemos também
imaginar medidas estimulando o investimento das empresas. Taxas de juros
mais baixas se chocarão, novamente, com os objetivos neoliberais. Mas, o
Estado poderá se comprometer com o financiamento de taxas diferenciais ou
de medidas de incitação fiscal, assim como se encarregar dos riscos, o
que ele já faz pelos empréstimos das famílias.
2.
Uma solução possível para remediar o déficit exterior é de deixar
baixar a cotação do dólar. Conhecemos os limites deste procedimento. Em
verdade, certos países indexaram suas moedas ao dólar e uma mudança de
cotação não modifica as condições do comércio entre estes países e
os EUA. Não há panacéia. O exemplo do comércio entre os EUA e o Japão
mostra que a alta do yen não bastou para retificar as trajetórias. Uma
taxa de câmbio fraca do dólar e a ameaça da seqüência de baixa são,
entretanto, geralmente julgados incompatíveis com os interesses
imperialistas dos EUA. Igualmente, novos avanços em direção a um
protecionismo crescente, ou à toda limitação à mobilidade de capitais
se este se retirassem perigosamente dos EUA, provocariam medidas recíprocas
minando a dominação imperial dos EUA, nas suas formas neoliberais.
3.
Uma retificação da trajetória será delicada pela necessidade de
estabilizar a situação macroeconômica do país. É lá que ressurge a
questão da crise, não enquanto episódio catastrófico,
desestabilizando definitivamente a ordem capitalista e imperialista, mas
como constrangimento na continuação da trajetória estadunidense. A política
monetária sustenta a demanda neste país, ao deixar solta a dívida das
famílias. É o mecanismo central de sustentação da demanda, para além
do pouco ortodoxo déficit orçamentário. O endividamento das famílias
continuou crescendo durante a recessão do começo dos anos 2000, e toda
tentativa de freá-lo corria o risco de transformar a recessão em ruína
da mais alta envergadura. Conciliar a retificação dos desequilíbrios
exteriores, causados pela despesa excessiva das famílias, e a sustentação
da demanda interna é um tarefa altamente problemática – sem falar do
risco corrido pelo Estado em razão da transferência aos organismos públicos
do crédito das famílias junto ao sistema bancário.
4.
Podemos, evidentemente, conjecturar que os EUA farão tudo que há em seu
poder para acentuar a apropriação do resto do mundo. Mas, a deteriorização
de sua posição externa poderá voltar a encarecer o custo de seu
financiamento externo pelo aparecimento de um acréscimo de risco em
detrimentos dos EUA.
É
preciso identificar, por trás destes mecanismos, uma gigantesca luta de
classes e de poder. A saída será política, portanto. Como dizia Marx,
os homens fazem sua própria história, mas a fazem segundo condições
dadas. A ambição deste artigo é dar uma representação destas condições,
essencialmente econômicas. Mas, isto, de forma alguma, destrói a
primazia da política.
Tais
lutas devem ser compreendidas tanto no nível nacional quanto
internacional:
1.
No plano nacional, o neoliberalismo repousa sobre um compromisso social
com a alta classe-média, detentora de títulos, diretamente ou em fundos
de pensão. Esta camada adquiriu a sensação de ascender ao maravilhoso
mundo da propriedade capitalista. Se a distribuição de dividendos e as
taxas de juros reais estiverem ajustadas para a baixa, este compromisso
será colocado em questão. Em que sentido? Em direção a um novo
compromisso social para além do neoliberalismo – mais “democrático”,
como o compromisso keynesiano anterior – ou em direção a uma ordem
social mais autoritária e repressiva?
2.
No plano internacional, novas formas de luta aparecem, como as de certos
Estados da periferia que tomam consciência do que lhes é feito neste
mundo dos poderosos (lembremos do fracasso das negociações de Cancun em
2003) e como as de certas camadas da população que percebem a convergência
de seus interesses no plano mundial, no movimento “altermundista”.
Tais lutas se acontecem com o pano de fundo do crescimento dos movimentos
extremistas, sejam eles da integração islâmica ou das novas cruzadas da
direita.
O
vigor da pressão que estas lutas são suscetíveis de exercer será
fortemente dependente das contradições da trajetória econômica
estadunidense cuja descrição este artigo se prestou a fazer. Quem saberá,
então, reagir com o máximo de eficácia a estas pressões? As forças da
reação social ou do progresso em direção a um tão esperado mundo
melhor? Sábio é quem pode predizer o desfecho destes enfrentamentos.
Notas:
[1]
O presente artigo foi escrito especialmente para Crítica Marxista sob
o título "L'impérialisme à l'ère néolibérale"; foi
traduzido por Fernando Ferrone.
[2]
Pesquisador do CNRS e professor da Universidade de Paris X-Nanterre.
[3]
Pesquisador do CEPREMAP-ENS, Paris, França.
[4]
Gérard Duménil e Dominique Lévy, Capital Resurgent. The
Roots of the Neoliberal Revolution. Harvard,
Harvard University, 2004.
[5]
Idem. Ibidem. cap. 23.
[6]
François Chesnais (org.), La finance mondialisée: racines
sociales et politiques, configuration et conséquences. Paris, La
découverte, 2004.
[7]
Lenine, “L'impérialisme, stade suprême du capitalisme”, Œuvres,
tome 22. Paris, Éditions sociales, 1977, p. 201-327.
[8]
Os efeitos da colonização foram descritos por Marx em “La
domination britannique aux Indes”, Œuvres IV, Politique I,
La Plêiade. Paris, Gallimard, 1994, p. 714-720.
[9]
T. Piketty e E. Saez, “Income Inequality in the United States,
1913-1998”, In: The Quarterly Journal of Economics,
Vol. CXVIII,
n°. 1, p. 1-39.
[10]
E. Wolff, Top Heavy, New York, The New Press, 1996.
[11]
D. Maki e M. Palumbo, “Disentangling the Wealth Effect: A Cohort
Analysis of the Household Saving in the 1990s”. Washington, Federal
Reserve.
[12]
R. J. Mataloni, “An Examination of the Low Rates of Return of
Foreign-Owned U.S. Companies”, Survey of Current Business,
March.
[13]
Este controle da demanda se mostra, na média, eficaz, mas acontecem
“derrapagens” recorrentes: superaquecimentos e recessões.
[14]
Em 2000, os lucros domésticos (menos impostos) se elevaram a 7,1% do
PIL das sociedades que é, ele mesmo, igual a 61,1% do PIL do conjunto
da economia.
[15]
Este estudo abstrai as novas tendências da mudança técnica e das
pressões para reduzir o custo de trabalho. Vide
Gérard Duménil e Dominique Lévy. Crise et sortie de crise. Ordre
et désordres néolibéraux. Paris,
PUF, 2000.
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