El imperialismo en
el siglo XXI

 

O imperialismo na era neoliberal ([1])

Por Gérard Dumenil ([2]) e Dominique Lévy ([3])
Cepremap, Modem, 2004

Introdução

Jamais existiu na história do capitalismo período de harmonia ou de não-violência. Os primeiros decênios que sucederam a II Guerra Mundial – os chamados “trinta gloriosos” – são retrospectivamente pintados de paraíso perdido. Entretanto, não foram eles palco do colonialismo e das guerras de independência, da guerra supostamente fria e dos conflitos incendiários suscitados por eles na Coréia ou no Vietnã? Que dizer da subversão golpista por todo o mundo, principalmente na América Latina, cada vez que o controle dos governos dos países da periferia pelas classes ou grupos favoráveis aos EUA esteve ameaçado...

Mas, o novo rumo do capitalismo, depois de um quarto de século, se singulariza pelo ressurgimento de formas de violência que acreditávamos obsoletas. A queda do contra-império soviético, assim como o fiasco das lutas revolucionárias – naquilo que chamávamos de terceiro-mundo, quando ainda havia um segundo – não conduziram as classes dominantes e a primeira potência mundial a moderar o nível de sua dominação, a civilizar seus métodos. Violência através da economia, da guerra e da subversão golpista estão ainda na ordem-do-dia. Em nada altera sua natureza, ser ela justificada como uma cruzada pela democracia ou contra o terrorismo.

Que força subterrânea e obscura sustenta esta dinâmica? A resposta não surpreenderá os marxistas: uma luta de classes de envergadura histórico-mundial. As classes dominantes encararam a experiência da destruição do segundo-mundo como uma reconquista, uma restauração, no sentido de se restaurar um regime político. O precedente francês deste que é conveniente chamar a “restauração” no fim do séc. XIX, não foi mais radical. As classes dominantes estão engajadas numa luta visando o restabelecimento de sua preeminência, tal qual fora antes da depressão dos anos 30 e da II Guerra Mundial. Neste projeto, a audácia é ilimitada. Por outro lado, do ponto de vista da potência estadunidense, o jogo é o da consolidação de sua dominação num mundo onde outros países foram alçados aos níveis de desenvolvimento comparáveis, sabendo que ao fim dos anos 80, muitos analistas profetizam um declínio. Classes e uma nação: são estas as forças sociais que deram às últimas décadas do séc. XX sua violência específica, e o começo do séc. XXI se situa bem dentro da continuidade deste projeto.

Neoliberalismo e imperialismo: é através destas duas realidades que este estudo se esforça para caracterizar, na sua primeira seção, o período que se estende de meados dos anos 80 até os primeiro anos do séc. XXI. Elas não têm a mesma idade. Em verdade, o neoliberalismo é um objeto novo e o imperialismo é algo já velho. A segunda seção deste texto propõe algumas definições. As duas seções seguintes fornecem, cada uma à sua maneira, as informações suscetíveis de esclarecer, essencialmente no plano econômico, a natureza e as características do neoliberalismo (terceira seção) e do imperialismo (quarta seção). A relação entre neoliberalismo e imperialismo pode então ser estabelecida. A dominação imperialista sobre o resto do mundo beneficiou formidavelmente as transformações neoliberais; o estágio neoliberal do imperialismo se mostrou particularmente frutífero para as classes e países dominantes ao drenar enorme renda do resto do mundo; e, em contrapartida, o projeto que encarna o neoliberalismo, ou seja, o do restabelecimento do poder e da renda das classes proprietárias dos meios de produção, terminou reforçado. Entretanto, este projeto de transformação social reacionária é atravessado por contradições (quinta seção). Ele suscitou importantes desvios, principalmente no coração do coração do sistema - nas classes dominantes dos EUA. O prosseguimento destas tendências solaparão os fundamentos do projeto e pode-se prever uma retificação. De que será ela portadora?

Neoliberalismo e imperialismo

Existe, sem dúvida, uma ideologia neoliberal. Mas, o neoliberalismo define também uma realidade: o novo rumo do capitalismo, no mínimo, após o começo dos anos 80.

1. A ideologia e a propaganda neoliberais glorificam as virtudes do mercado e da livre iniciativa, que é uma maneira disfarçada de falar do capitalismo: a intervenção estatal deve ser limitada ao estritamente necessário. Estes princípios não são estranhos à nova via neoliberal do capitalismo. Em cada país, a liberdade de iniciativa, de comprar e vender, de empregar e demitir trabalhadores, de comprar filiais e fazer fusões, etc. foi aumentada, ao passo que os direitos dos trabalhadores, restringidos. No plano internacional, as fronteiras comerciais foram reduzidas, quando não suprimidas, e os capitais adquiriram o direito de circular livremente. Todos estes processos estão, no mínimo, em andamento. Entretanto, em muitos domínios, o poder estatal foi reforçado. É o caso, principalmente, das políticas monetárias que, de agora em diante, quase exclusivamente visam à estabilidade dos preços, à despeito do desemprego que geram. Em todo lugar, os Estados foram os vetores do estabelecimento do neoliberalismo, tanto no plano nacional quanto no internacional. As alavancas que os promotores da ordem neoliberal têm à mão são, principalmente, ao nível das empresas, as taxas de juros elevadas e um “governo de empresa” (leia-se uma “gestão”) direcionado aos interesses dos acionistas – elemento chave da nova disciplina imposta aos trabalhadores e aos gerentes. No nível estatal, novas políticas são aplicadas: políticas macroeconômicas (baixa inflação) ou sociais (diminuição do custo do trabalho), visando atender aos mesmos interesses. No plano internacional, trata-se da mundialização da ordem neoliberal, pela eliminação das barreiras à circulação de bens e capitais e da abertura dos países ao capital internacional, principalmente, pela venda, a preços baixos, das empresas públicas potencialmente rentáveis. Exportação de capitais, taxas de juros elevadas e preços baixos e decrescentes das matérias-primas permitem a transferência de enormes montantes de renda para os países imperialistas.

2. É difícil datar uma transformação tão complexa como o aparecimento do neoliberalismo. O fim de 1979, entretanto, representa uma data emblemática. Indicado à chefia do banco central dos EUA por Jimmy Carter – então em fim de mandato – Paul Volcker decidiu aumentar as taxas de juros até onde fosse necessário para acabar com a inflação. Outras transformações já estavam em curso desde, em particular, a crise do dólar no começo dos anos 70, como, por exemplo, o abandono das paridades fixas características do sistema de Bretton Woods, instaurado ao fim da II Guerra Mundial. A eliminação das barreiras ou simples restrições à livre circulação de capitais estavam em curso. A possante máquina financeira dos euromercados ou do eurobanco estava já bem estabelecida no plano internacional, livres do controle dos bancos centrais. A incapacidade de fazer frente à crise estrutural que atingiu as principais economias capitalistas nos anos 70, sobretudo a inflação cumulativa, criou as condições econômicas, sociais e políticas que permitiram o estabelecimento da nova ordem social[4]: combinaram-se, então, o fracasso da antiga ordem e as pressões dos promotores da nova. A tudo isto se soma o então cada vez mais evidente fracasso do modelo soviético e a fragilidade do movimento operário.

Tais transformações foram obra das frações superiores das classes capitalistas. Num tipo de capitalismo onde propriedade e gestão estão separadas, a propriedade dos meios de produção por esses grupos sociais se exprime através da detenção de ações, isto é, de títulos: eles são, de igual modo, os credores, pois possuem os títulos de crédito que lhes dão direito sobre uma parte dos lucros das empresas. Esta propriedade tem, portanto, um caráter financeiro: Marx reunia as posições dos acionistas e dos emprestadores, freqüentemente os mesmos, na categoria de capital de empréstimo. O fato da gestão das empresas passar às mãos de assalariados poderia ter significado uma perda de poder dos proprietários “financeiros”, contudo o poder deste proprietário se concentrou, desde o início, nas poderosas instituições financeiras, como os bancos, os holdings financeiros e fundos diversos (de pensão, para o financiamento de aposentadorias, ou de outra natureza). Chamamos finança estas frações superioras das classes capitalistas e suas instituições financeiras. Não se trata de uma atividade particular, como um banco. No capitalismo moderno, a classe dos grandes proprietários do capital é relativamente unida, possuiu partes de todos os setores da economia (por meio de seus títulos) e os controla (através de suas instituições financeiras)[5]. Isto não impede que as atividades propriamente financeiras e o setor financeiro tenham adquirido, no neoliberalismo, uma maior importância. Por um lado, tais atividades tornaram-se muito mais rentáveis e, por outro, o controle da economia nacional e mundial pelas instituições financeiras é crucial na manutenção e perpetuação da ordem neoliberal. Por tais razões é que falamos de bom grado em financeirização e em mundialização financeira[6].

Embora Lênin, em Imperialismo, fase superior do capitalismo[7], tenha desenhado um painel abrangente da realidade do capitalismo no começo do séc. XX, nós não damos o mesmo conteúdo ao termo imperialismo. Parece-nos mais correto fazer do imperialismo uma característica geral e permanente do capitalismo. Desde suas mais remotas e embrionárias origens (podemos lembrar das Ligas Hanseáticas), o capitalismo busca seus lucros fora de suas metrópoles, com a avidez que lhe é peculiar.

Esta busca, estrutural no capitalismo, sempre esteve aliada a processos de dominação de toda espécie, indo desde a simples imposição da abertura de fronteiras de países em nível de desenvolvimento inferior, com as dramáticas conseqüências já conhecidas, até o colonialismo puro e simples, e toda sua pressão e extorsão decorrentes[8]. Seus meios são as guerras e a subordinação, a aculturação e, sobretudo no passado, a evangelização. Um episódio particularmente hediondo foi a escravidão; contudo, a situação atual das populações das maquiladoras não difere muito. É o conjunto destas relações que constitui o sistema do imperialismo, que se define pela procura por lucros, por meio da sujeição, fora das metrópoles capitalistas.

Se o imperialismo não é somente uma fase do capitalismo, ele próprio passa por fases diversas, que são o reflexo das transformações nos próprios países imperialistas. Suas principais características mudam. Por exemplo, nos primeiros períodos, a relação dominante foi a comercial. Ela se combinou rapidamente com modos de financiamento particulares, por exemplo, a exportação de capital, como ocorreu no império espanhol na América, onde os comerciantes espanhóis financiavam a agricultura e as minas dos criollos. Mercadoria e capital estiveram estreitamente ligados. De igual modo, o imperialismo neoliberal possuiu naturalmente suas características próprias em particular a importância das movimentações financeiras, como mostra este estudo.

O imperialismo não é obra de um só país, mas de um conjunto deles. Estes mantêm, por um lado, relações de luta, indo até o confronto armado entre duas potências, ou grupos de potências dentro de sistemas de alianças, mas operam, por outro lado, igualmente relações de cooperação. Cada Estado representa aí o interesse de suas classes dominantes. Um país pode ocupar uma posição hegemônica, como os EUA, que dirigem, no mundo contemporâneo unipolar, o grupo de países imperialistas. A relação de dominação se estabelece, então, num nível duplo: entre o país dominante e os outros membros do grupo e, entre estes países imperialistas e os outros dominados. Em verdade, trata-se de uma hierarquia de poderes, onde o mais forte explora o mais fraco.

Evidentemente, no mundo neoliberal e imperialista, os países e Estados continuam a desempenhar um papel central a despeito da globalização, e isto se dá de diversas maneiras. As grandes sociedades são mais transnacionais que multinacionais: neste sentido, elas continuam vinculadas a um país de origem tanto por sua propriedade quando por sua administração. Os proprietários ainda possuem uma nacionalidade. Apesar dos paraísos fiscais, podemos notar os fluxos de renda internacionais se consolidarem em favor de certos países. As situações macroeconômicas dos diversos países não são equivalentes e tais particularidades possuem efeitos consideráveis. Mostraremos, principalmente, as conseqüências do fato dos EUA não serem mais obrigados a equilibrar suas contas externas, pelo fato mesmo de seu poderio. Esta permanência dos vínculos nacionais, aliás, se manifesta claramente quando cada Estado age para defender seus interesses nacionais.

Neoliberalismo: renda, patrimônio e modo de vida das classes mais ricas

Antes de analisar o neoliberalismo por aquilo que ele é, é conveniente refutar a tese que o apresenta como um modelo de desenvolvimento. Nem no centro, nem na periferia, o neoliberalismo se apresenta como tal. Mesmo nos EUA, a taxa de crescimento da produção e a taxa de acumulação de capital (a taxa de crescimento do estoque de capital fixo, isto é, o conjunto das construções e materiais de que dispõem as empresas para construir) registradas desde 1980 são menos elevadas que as detectadas nos decênios anteriores desde a II Guerra Mundial. Entretanto, os EUA gozam de uma situação privilegiada, ligada à sua posição dominante. Na Europa, a redução da taxa de crescimento e acumulação foi dramática. Na França, por exemplo, a taxa de acumulação das sociedades não-financeiras atingiu 8% no começo dos anos 70; caiu profundamente durante a crise estrutural que se seguiu no mesma década e não foi restabelecida com o neoliberalismo. Ao fim do séc. XX, ela oscilava em torno de 2%. Correlativamente, a Europa não consegue escapar de seu desemprego estrutural.

A situação é particularmente dramática nos numerosos países da periferia. Se colocarmos de lado os modelos altamente específicos como o da Coréia e de alguns países como a China, Índia e Chile, o quadro é espantoso na América Latina e catastrófico na África. O gráfico 1 mostra o perfil de muitas décadas da produção no Brasil, México e Argentina. Nestes três países, a ruptura do crescimento se manifesta no começo dos anos 80. Nenhum restabelecimento posterior é aparente, em que pese a docilidade destes países frente à ordem neoliberal e, no caso do México, frente à associação com os EUA e Canadá desde 1994, no âmbito do NAFTA. A queda das taxas de crescimento e a instabilidade macroeconômica (a recorrência de recessões) são particularmente evidentes nestes países, todas começando, brutalmente, com a crise da dívida em 1982.

Pode-se notar, no caso argentino, que a transição ao neoliberalismo em 1990 ocorreu em seguida a um período de estagnação. Ela foi seguida de alguns anos de crescimento mais sustentável, levando a crer que se tratava de uma demonstração das potencialidades do modelo neoliberal. Só que conhecemos o final da história!

Gráfico 1. Produto Interno Bruto (PIB) na periferia (bilhões de dólares 1996): Brasil, México e Argentina

 

Os dados são expressos em paridade de poder de compra, o que dá sentido à comparação dos níveis absolutos, refletindo o tamanho dos três países.

Os objetivos da ordem neoliberal são de uma outra natureza que o desenvolvimento da periferia ou mesmo que a acumulação no centro. Na verdade, sua razão de existir é a restauração da renda e do patrimônio das frações superiores das classes dominantes. Não há, propriamente falando, estatísticas que permitem caracterizar “classes”. Contudo, certos trabalhos e enquetes fornecem dados relativos a concentração de renda e riquezas. O gráfico 2 mostra a fração da renda disponível total recebida pelas famílias dos 1% mais ricos nos EUA[9].

Gráfico 2. Parte da renda disponível das famílias detida pelo 1% com renda mais elevada (%): EUA

 

Vemos neste gráfico que a camada composta pelo 1% que possui renda mais alta recebeu mais de 16% do total da renda dos EUA antes da crise de 1929 e da II Guerra Mundial: “felizes” tempos de um capitalismo dominado por uma burguesia facilmente identificável. Com o fim da guerra, este índice caiu subitamente para a 8% e continuou aí até o começo dos anos 80. A renda de capital estava profundamente diminuída e a hierarquia de salários fortemente reduzida. Estas décadas são comumente designadas como as do compromisso keynesiano. Além da redução das desigualdades, elas se caracterizaram por uma forte autonomia dos quadros administrativos (gerentes), tanto no nível das empresas como nas instâncias centrais responsáveis pelas políticas econômicas e de gestão social (educação, saúde, etc.). Como os proprietários do capital, os setores financeiros eram pouco remunerados; o lucro ficava nas empresas e era reinvestido. Com o neoliberalismo, as porcentagens do gráfico 2 ascendem aos níveis similares aos do pré-guerra.

O estudo da riqueza total destas classes dominantes faz aparecer sua forte diminuição relativa durante a crise dos anos 70[10]. Se no pós-guerra a camada das famílias mais ricas, representando 1% da população, detinha aproximadamente um terço da riqueza total do país, no começo dos anos 70, esta porcentagem caiu para 22%. Em poucos anos, o neoliberalismo restabeleceu a concentração de patrimônio (sempre relativo ao conjunto da população) nos níveis anteriores à crise, ou até mais altos.

A restauração da condição destas classes continua, entretanto, incompleta. Um elemento crucial é a redução da fiscalização direta sobre as altas rendas. Ela está em curso, em que pese a pressão constante exercida pela existência de desequilíbrios orçamentários tenazes.

Como tais variações de renda e riqueza foram possíveis? Durante os anos 70, as taxas de inflação estiveram superiores às taxas de juros; as empresas eram poucos rentáveis e distribuíam poucos dividendos; correlativamente, o nível da bolsa, corrigido pela inflação, estava dividido por dois e estagnado. Compreende-se facilmente como as classes cuja renda é largamente derivada da detenção de títulos via sua renda e riqueza comprometidas.

O neoliberalismo mudou tudo isso. As taxas de juros corrigidas pela inflação, antes débeis, saltaram ao nível de 5% (para a taxa de juros sobre os créditos a longo prazo das empresas mais bem cotadas). A rentabilidade das empresas melhorou e elas distribuíram um fração crescente de seus lucros sob a forma de dividendos. De cerca de 30% dos lucros (após o pagamento de juros e impostos), a porcentagem distribuída aos acionistas subiu gradualmente até chegar a praticamente 100% dos lucros no final do séc. XX. As cotações da bolsa (sempre corrigidas pela inflação) foram multiplicadas por três com relação aos seus níveis anteriores à crise dos anos 70.

Ora, não foi nenhum milagre. Não foi nada além de questões de poder e relação de força, tanto no plano nacional quanto internacional.

Este reforço da renda e dos patrimônios modificou profundamente o comportamento das classes dominantes. Desde praticamente o começo da era neoliberal, as famílias dos EUA aumentaram formidavelmente suas despesas com consumo e habitação, sobretudo a segunda.

O gráfico 3 mostra a parte do consumo das famílias estadunidenses no Produto Interno Bruto (PIB) desde os anos 50. Nota-se claramente que as taxas oscilam ao redor de 62% ou 63% antes do neoliberalismo. Desde o começo dos anos 80, esta taxa aumentou regularmente e de maneira especulativa, até passar 70% no começo do séc. XXI.

Esta alta do consumo das famílias tem duas origens: a alta em parte de sua renda no PIB e a baixa em sua taxa de poupança (a alta na parte de sua renda destinada ao consumo). Estes dois mecanismos concernem às famílias mais ricas.

No que diz respeito à baixa na taxa de poupança, um estudo do FED[11], permite identificar as camadas da população que estão no origem desta queda. O estudo divide as famílias em cinco grupos segundo sua renda (as 20% com renda mais elevada, as 20% do grupo imediatamente inferior, etc.) Toda queda na poupança se concentra no seio do grupo com a renda mais elevada, tradicionalmente a fonte de poupança do país (uma vez que os pobres poupam pouco). No fim do século, as taxas de poupança destas camadas mais ricas tornou-se negativa, o que significa que elas gastam mais que ganham (sem dúvida há uma ligação com a alta dos preços da bolsa) e se endividam. A alta formidável da taxa de endividamento das famílias é outra característica da macroeconomia estadunidense, sem que saibamos em que medida ela se concentra nesta fração das famílias mais abastadas.

Gráfico 3. Relação do consumo das famílias com o PIB (dados trimestrais,%): EUA

 

O consumo das famílias é a soma da compra de bens e serviços (inclusive habitação).

Fonte: NIPA (BEA).

 

As conseqüências deste processo foram ampliadas uma vez que estas camadas concentram a renda financeira que é a que aumentou grandemente. Entre 1952 e 1979, isto é, antes do neoliberalismo, a renda financeira (juros e dividendos, sem contar com os ganhos em capital) representou, em média, 10% da renda total das famílias. Entre 1980 e 2003, esta porcentagem atingiu 17%.

O custo para as outras classes e países foi considerável: crescimento lento, desemprego, desarticulação das sociedades, miséria, etc. Mas, do ponto de vista de seus objetivos, o neoliberalismo foi um sucesso brilhante.

A poderio do imperialismo estadunidense

Não podemos compreender, entretanto, a dinâmica da renda de capital nos EUA sem examinar as relações entre este país e o resto do mundo. É lá que a pressão imperialista propriamente dita entre em ação.

Não existe nenhum meio simples de apreender o efeito da relação dos EUA com o resto do mundo no que tange à renda de capital deste país. Os mecanismos são, em efeito, múltiplos. Conhecemos, por exemplo, a importância da compra de matéria-prima, incluídas aí as fontes de energia, à um preço favorável aos países compradores. Ao longo dos decênios neoliberais, estes preços não pararam de cair, às vezes divisões por três. Outros mecanismos como a importação de cérebros do resto do mundo (o brain drain) contribuíram fortemente, não somente para a renda, mas também para a manutenção da predominância tecnológica dos EUA. Aí também a quantificação é problemática. Inversamente, os sistemas de contabilidade nacionais fornecem estimativas de fluxo de renda, chamada financeira, como os pagamentos de dividendos e juros, assim como os lucros da sociedades transnacionais retidos no exterior, mas que são de propriedade das matrizes estadunidenses.

Como preâmbulo a esta investigação, é preciso determinar bem um detalhe terminológico. Entendemos genericamente por investimento o acréscimo que é feito ao capital fixo, ao longo de um certo período. Podemos juntar aí a variação dos estoques. Entretanto, utilizamos, cada vez mais comumente, o mesmo termo para falar de uma movimentação financeira, por exemplo, uma compra de uma ação ou de uma obrigação. Quando se trata de um investimento direto, isto é, a tomada de participação em uma sociedade com mais de 10% de capital de uma outra, criando uma filial, os epítetos “físico” e “financeiro” não são adequados nem a um nem outro. Contraporemos, entretanto, o investimento em capital fixo e em estoques – físico – ao investimento financeiro, incluído aí o investimento direto.

Consideraremos, primeiramente, os investimentos diretos das sociedades transnacionais dos EUA no exterior. Os lucros auferidos destes investimentos se compõem de dividendos, de juros e de lucros conservados no exterior. Os dados disponíveis permitem separa-los da massa de outros lucros qualificados de “lucros domésticos”. Em verdade, certos lucros domésticos são oriundos do resto do mundo, haja vista os preços baixos das matérias-primas ou os pagamentos efetuados desde o exterior às sociedades baseadas no EUA (como uma parte dos pagamentos de juros sobre a dívida da periferia).

Em 2000, o conjunto dos lucros oriundos de investimentos diretos dos EUA, ou seja, os lucros das filiais das transnacionais em outros países representaram 53% dos lucros domésticos. Sabendo que os lucros domésticos contêm ainda uma fração de renda apropriada do resto do mundo, esta cifra já dá uma idéia surpreendente da importância para a renda de capital dos EUA da abertura internacional desta economia.

O gráfico 4 mostra a evolução desta porcentagem de lucro das transnacionais sobre seus investimentos diretos ao exterior no cômputo dos lucros domésticos. Vemos um crescimento muito regular, em torno de 10% em 1948, até 53%, que é o ponto culminante em 2000. Esta progressão é a da mundialização da economia, e o neoliberalismo não constitui uma ruptura. De fato, esta ordem social, pouco favorável ao investimento físico, diminuiu consideravelmente o crescimento do fluxo de investimentos diretos das transnacionais dos EUA, tanto em volume como na parcela da produção total deste país.

Dispomos igualmente de uma medida de toda renda proveniente de todas as categorias de investimento financeiro, incluído o investimento direto, de agentes estadunidenses no resto do mundo. De igual modo, podemos relaciona-los aos lucros domésticos para poder apreciar a dimensão. A porcentagem atingiu 100% em 2000. Isto é, a massa da renda apropriada do resto do mundo sob forma de dividendos, juros e lucros retidos nas filiais no exterior foi igual àquela massa dos lucros domésticos. Não se trata, portanto, de um pequeno complemento da atividade territorial.

Gráfico 4. Relação da renda vinda do exterior com os lucros das sociedades realizados nos EUA

A série dos lucros domésticos das sociedades utilizada no cálculo foi algo retificada afim de evitar as flutuações que refletem as variações conjunturais do nível geral de atividade. As flutuações restantes são principalmente efeito das variações das taxas de juros.

O gráfico 4 descreve igualmente a variação desta porcentagem ao longo do tempo. Nela encontramos o ponto culminante de 100% em 2000. Entretanto, a observação mais chocante é a alta espetacular ao final dos anos 70, consolidada sob o neoliberalismo. Todo o período neoliberal aparece, desta forma, marcada pelo signo da apropriação da renda financeira em cima do resto do mundo. A porcentagem oscila em torno do patamar de 80%.

Toda a primeira fase da alta, ao final dos anos 70, reflete o crescimento dos juros sobre a dívida, então chamada do terceiro-mundo. Mas, naquela época, a desvalorização desta dívida pela inflação significava uma contra-transferência em favor dos endividados que a medida descrita no gráfico não leva em conta. Com o fim da inflação, o índice toma toda sua amplitude propriamente neoliberal. Contrariamente ao componente desta renda correspondente aos investimentos diretos, a alta da renda sobre os investimentos de portfólio foi fortemente efeito da alta das taxas de juros e aparece, neste ponto, emblemática da ordem neoliberal.

Tiremos, então, a lição principal desta análise, em que pesem as limitações dos dados disponíveis: em 2000, a renda financeira que os EUA retiraram de suas relações com o resto do mundo foi superior ao conjunto dos lucros de suas próprias sociedades em território americano. Um imperialismo musculoso, então, e crucial para a remuneração do capital neste país.

É evidente, de igual modo, que há estrangeiros que efetuam investimentos financeiros nos EUA, o que somente contribui para o aumento da importância do fluxo de renda retirado do resto do mundo. Temporariamente, limitar-nos-emos a um só aspecto desta relação bilateral, concernentes aos rendimentos dos investimentos de uns e dos outros.

Alguém notará que consideramos aqui somente os investimentos financeiros que os agentes do resto do mundo efetuam nos EUA, e não seus investimentos nos outros países. Inversamente, levamos em consideração todos os investimentos dos EUA em todos os países. Trata-se, então, de examinar a posição dos EUA enquanto investidores e enquanto alvo de investimentos.

 

Gráfico 5. Taxa de rendimento aparente sobre os ativos dos EUA no resto do mundo e e sobre os ativos do resto do mundo nos EUA, corrigidos pela inflação (%)

Fonte: International Transactions data (BEA); NIPA (BEA).

O gráfico 5 mostra as taxas de rendimento sobre os investimentos dos agentes estadunidenses ao exterior e dos estrangeiros quando investem nos EUA. Foi feita uma correção pela desvalorização da dívida pela inflação. Dois tipos de comentários se impõem.

1. Os dois perfis são similares. Notamos uma forte alta dos rendimentos em torno de 4 pontos percentuais ao fim dos ano 70, o que marca a aparição de altas taxas de juros características dos anos neoliberais. As taxas caíram um pouco nos anos 90.

2. A principal descoberta é a diferença bem pronunciada dos rendimentos, em torno de 4% de uma ponta a outra do período. Esta é a expressão de uma forte assimetria. Quando os EUA fazem investimentos financeiros no resto do mundo, eles são bem remunerados, 7 ou 9% segundo o sub-período, bem acima dos rendimentos obtidos pelos estrangeiros que investem nos EUA. Esta diferença de rendimento aparece para cada um dos componentes do investimento financeiro, do de portfólio e do direto[12].

A composição dos investimentos dos EUA ao exterior é bem diferente dos investimentos dos estrangeiros nos EUA. Aquela é composta de investimentos diretos, aproximadamente 50%, quando a cifra para o segundo caso é 20%. Assim, este país funciona, segundo a terminologia de Marx, como um tipo de “capitalismo ativo”, ao passo que os estrangeiros tem um comportamento mais de “emprestadores” – sempre segundo a terminologia de Marx – que reunia os acionistas de fora da administração (gestion) da empresa e os credores sob a mesma rubrica de capital de empréstimo. Estes rentistas são, por exemplo, as ricas famílias da América Latina ou os emires do Oriente Médio, ou ainda os bancos centrais que investem seus ativos em dólar em bônus do tesouro dos EUA, comportando-se assim, como “Estados rentistas”. Esta diferença de composição explica, em parte, a diferença de rendimentos sobre o conjunto do investimento financeiro.

Uma trajetória insustentável

As seções precedentes lançaram uma luz surpreendente sobre o poderio do imperialismo estadunidense. A apropriação sobre o resto do mundo é formidável por seu tamanho, e por sua eficácia, claramente expressos em seus rendimentos. Compreendemos, incidentemente, qual motivação pode ter este país, em particular seu governo, para conservar por todas as maneiras, econômicas, políticas e militares, este empreendimento. Mas, igualmente, apreendemos a dependência que é concomitantemente criada. Esta trajetória é, contudo, trespassada por uma contradição maior. À descrição de sua natureza será dedicada esta seção.

Examinaremos, em primeiro lugar, a relação entre poupança e investimento nos EUA. Aqui, entendemos por investimento aquele em capital fixo das empresas, segundo as definições dadas anteriormente. Poupança e investimentos são expressos em porcentagem da produção total dos EUA (o Produto Interno Líquido, PIL), igual a renda total levando em conta os fluxos de renda com o exterior.

O contraste entre as décadas neoliberais e as primeiras décadas do pós-guerra é chocante. Antes de 1980, as taxas de poupança e de investimento dos EUA oscilavam em torno de 4 ou 5%. As duas taxas caíram com o aparecimento do neoliberalismo: uma diminuição moderada, embora significativa da taxa de investimento, de 4,1% antes de 1980 à 3,5% posteriormente e uma queda espetacular da taxa de poupança de 4,5 a 1% para os mesmos períodos. Com uma rapidez desconcertante, os EUA começaram a investir muito mais do que poupavam no começo dos anos 80. Globalmente, isso significa que eles gastavam, em consumo e investimento, claramente mais do que sua renda.

Há dois componentes nesta formidável onda de despesas. De início e muito subitamente, um forte déficit orçamentário apareceu no começo dos anos 80. Ele resultou da alta das taxas de juros, da diminuição das receitas e da alta das despesas militares (a “Guerra nas Estrelas” de Ronald Reagan). Mas, existe um outro componente que se impôs gradual e incessantemente: trata-se da alta do consumo das famílias descrito no gráfico 3, que provocou a queda na taxa da poupança dos mesmos e que já notamos ser o produto das despesas desregradas das classes mais abastadas.

Como isto é possível?

1. Por razões contábeis, a diferença entre a poupança e o investimento do gráfico 6 é igual ao saldo da balança corrente dos EUA, isto é, a soma da balança comercial (exportações menos importações) e o saldo dos fluxos de renda com o exterior (com as transferências unilaterais aproximadas). O primeiro componente – fluxos comerciais – é que aprofundou a diferença. Assim, o gráfico 6 exibe um déficit da balança de pagamentos correntes ao longo dos anos neoliberais.

2. Quando os EUA importam mais do que exportam, os estrangeiros recebem os pagamentos em dólar, sem contrapartida financeira (estes dólares não resultam, por exemplo, de uma tomada de empréstimo). Se os estrangeiros vendem estes dólares, a cotação desta moeda baixa, o que tenderá a corrigir o déficit exterior (sem que tal ajuste seja automático). Em verdade, os estrangeiros, tendo em vista a pujança da economia estadunidense e a debilidade macroeconômica de seu próprio país, realizam investimentos financeiros nos ativos estadunidenses. Assim, ao comprar ações, ao emprestar às empresas, famílias ou ao governo estadunidense, eles participam do financiamento da economia dos EUA. Uma política monetária dos EUA, que ajusta as massas de créditos domésticos ao nível requerido pela busca de uma atividade estável, dosa os complementos a este aporte ao exterior[13]. Isto funcionará bem enquanto os estrangeiros estiverem satisfeitos com esta utilização de seu poder de compra em dólares.

Gráfico 6. Relação entre a poupança líquida e investimentos líquidos com o Produto Interno Líquido (%): EUA

 

O investimento é o investimento físico das empresas; a poupança é o excesso da renda nacional sobre todas as outras despesas que não este investimento. O investimento líquido é igual ao investimento bruto menos o consumo de capital.

Figure 7. Relações dos ativos do resto do mundo nos EUA e dos ativos dos EUA no resto do mundo sobre o Produto Interno Líquido estadunidense.

Por razões contábeis, a variação do saldo (―) é inteiramente efeito dos desequilíbrios da balança corrente (saldo das exportações e importações de bens e serviços e do fluxo de renda). Toda operação financeira (investimento direto ou não, crédito, operação de câmbio…) não interfere nos dois estoques de ativos, (– –) e (---), ou os modifica segundo o mesmo montante, o que não faz diferença.

Fonte: Flow of Funds (Federal Reserve).

O aspecto evidente de tal trajetória é o crescimento relativo dos ativos de estrangeiros nos EUA com relação aos ativos deste país no resto do mundo. O gráfico 7 descreve estes dois estoques de ativos divididos pela produção estadunidense.

Podemos observar o aumento gradual dos ativos dos EUA no resto do mundo de algo em torno de 11% nos anos 50 para 36% no fim do período. A curva dos ativos do resto do mundo nos EUA inicia-se bem abaixo da precedente, mas, em 1985, cruza-se com ela em 22%. A ascensão é irreversível, indo até 78% da produção dos EUA. A terceira curva dá a medida da diferença entre os dois estoques. Os valores negativos do primeiro período exprimem os excedentes de ativos dos EUA no resto do mundo, até a mudança de sinal em 1985. Em 2003, o excedente dos ativos do resto do mundo sobre os dos EUA representou 40% da produção deste país! Falamos algumas vezes de uma dívida externa, mas estes ativos contêm elementos, com as ações, que não fazem parte da natureza de um endividamento. Podemos, entretanto, afirmar que o essencial da deteriorização corresponde a esta dívida crescente.

É grave? Um primeiro problema é o da vontade dos estrangeiros de conservar seus dólares e, portanto, de efetuar estes investimentos financeiros (uma vez que evidentemente eles não têm interesse em conservar seus ativos sem remuneração), sabendo que tratamos aqui do total de investimentos estrangeiros, independentemente dos investimentos dos EUA no exterior. Tendo em vista os primeiros meses de 2004, podemos se perguntar se a queda do dólar desde 2002 é a expressão de tal retorno. Contudo, deve-se notar que o dólar estava em alta em 2002. Podemos igualmente pensar que os EUA desejaram e, muito provavelmente, contribuíram a esta baixa para manter sua economia em recessão. Mas, mesmo sob a hipótese da continuação destes investimentos financeiros estrangeiros, vemos surgir uma contradição que coloca em questão a própria continuação da trajetória da economia estadunidense.

O problema é simples. À força de permitir o financiamento exterior nos níveis de suas importações, os EUA deram ao aporte dos estrangeiros um lugar importante no financiamento de sua economia e devem, por este motivo, remunerá-los. Muito felizmente para a economia dos EUA, os investimentos estrangeiros são mal remunerados Entretanto, a sangria na renda de capital nos EUA vai crescendo.

Gráfico 8. Relação dos fluxos de renda sobre os ativos dos EUA no resto do mundo e do resto do mundo sobre os EUA com o Produto Interno Líquido.

Um sinal positivo da diferença (―) significa que o resto do mundo recebe mais renda vinda dos EUA que os EUA recebem do resto do mundo.

Fonte: International Transactions data (BEA); NIPA (BEA)

O gráfico 8 mostra os fluxos de renda entre os EUA e o resto do mundo, fluxos de entrada e de saída. A primeira curva (– –) descreve, como no gráfico 4, o fluxo de rendas que entram, mas o denominador é, desta vez, a produção dos EUA. Estes fluxos representam 4% do PIL em 2000. Esta porcentagem é menos impressionante que a do gráfico 8, mas é preciso ter em mente que os lucros das sociedades representam somente uma “débil” fração da renda total[14]. O mesmo gráfico mostra também a porcentagem crescente dos fluxos de saída (---).

Gráfico 9. Fluxo líquido (entradas menos saídas) de renda entre os EUA e a América Latina.

Fonte: International Transactions data (BEA); NIPA (BEA)

Podemos distinguir três períodos. De 1946 a 1972, as duas porcentagens aumentam ligeiramente, ao passo que sua diferença aumenta sutilmente. O período de 1973 a 1979 ocupa uma posição intermediária. Os fluxos de entrada cresceram rapidamente até 2,7% e os fluxos de saída, somente até 1,5%. Mas, esta alta dos fluxos que entram não estava a altura da ascensão espetacular ao longo das duas últimas décadas. Ao passo que o fluxo de entrada estagna, os fluxos de saída continuam sua ascensão até se encontrarem e atingir, posteriormente, o pico de 4% em 2000.

A terceira linha do gráfico (―) descreve a diferença entre os dois fluxos, ou seja o fluxo de entrada líquido dos EUA. Estes fluxos líquidos, em benefício dos EUA crescem sensivelmente entre 1973 e 1980. Mas, a inovação radical foi a interrupção deste crescimento, depois a queda nos anos seguintes. Esse aumento da renda que os EUA retiraram do resto do mundo então se anulou e, desde 2002, ficou até mesmo negativo durante certos trimestres.

A explicação desta degradação é, evidentemente, o excesso crescente dos ativos estrangeiros nos EUA descrito no gráfico 7. Em que pese a grande rentabilidade dos investimentos deste país ao exterior, sua posição externa se deteriorou a tal ponto que eles começam a pagar aos estrangeiros mais renda financeira do que recebem. Lembremos que a causa deste movimento é a onda de consumo das classes mais ricas.

Podemos ilustrar esta nova situação ao examinar os fluxos de renda entre os EUA e a América Latina no gráfico 9. Os fluxos considerados são fluxos líquidos, isto é, os fluxos que entram nos EUA a partir da América Latina, menos os fluxos que saem daquele país em direção a esta região do mundo. Uma curva concentra o total dos fluxos correspondentes aos investimentos diretos e em portfólio, isto é, os dois componentes do fluxo total.

O gráfico 9 mostra que os fluxos líquidos totais em favor do EUA aumentaram até mais de 0,5% da produção deste país no começo dos anos 80 (estes fluxos não levam em conta a desvalorização das dívidas pela inflação). Em seguida, eles diminuíram a um patamar de 0,15% ao ano, antes de mergulhar na crise do fim do século (recessão estadunidense e crise na América Latina, principalmente na Argentina). A América Latina é, portanto, uma das regiões do mundo que contribuiu à baixa dos fluxos de renda do resto do mundo em favor dos EUA.

Entretanto, o mais interessante é a decomposição por tipo de investimento. Aí se encontram as características já identificadas. Em primeiro lugar, o gráfico revela a importância e a estabilidade da renda oriunda dos investimentos diretos das transnacionais estadunidenses, que estabilizaram a 0,2% da produção deste país. Em segundo lugar, observa-se a queda da renda líquida sobre os investimentos em portfólio, depois a negatividade deste fluxo, o que significa que os EUA pagaram – e continuaram a pagar no fim do período – renda financeira, juros e dividendos superiores àqueles que receberam aos investidores da América Latina (em que pese a dívida da periferia). Eis a imagem da fuga dos capitais das classes mais abastadas destes países em direção a pátria–mãe do capitalismo. Podemos notar, em particular, a alta deste fluxo líquido de renda (uma baixa no gráfico) a partir de 2000. Este movimento reflete um fluxo líquido crescente de investimentos em portfólio. Com a exceção do ano de 1998, a América Latina financiou, de fato, o longo boom estadunidense da segunda metade dos anos 90. Este quadro da América Latina, credora dos EUA, caracteriza de maneira chocante a nova configuração das relações financeiras no plano mundial. Para esta região do mundo, o problema é, a bem da verdade, a separação entre os Estados e empresas endividados e certas famílias ricas. Como é bem sabido, nem todos os habitantes da América Latina sofrem.

Conclusão

Os mecanismos descritos nas seções precedentes revelam a existência de uma contradição no interior do sistema imperialista estadunidense na época neoliberal. Podemos resumir a cadeia completa da maneira seguinte.

 

A continuação da trajetória atual depende de duas condições imediatas: (1) que os estrangeiros aceitem investir seus dólares nos EUA, portanto, que a cotação do dólar se mantenha; (2) que a diferença de remuneração dos investimentos financeiros dos estrangeiros (gráfico 5) com relação aos investimentos estadunidenses não diminua. Com relação a esta última condição, podemos afirmar que se os EUA devem pagar taxas de rendimentos lucrativas aos estrangeiros, o fluxo de saída será igual ao total do lucro interno das sociedades estadunidenses! É evidente que uma situação como está fora de cogitação.

Do ponto de vista estadunidense, esta trajetória longa não pode se prolongar sem colocar em questão a dominação deste país e a opulência de suas classes dominantes. Ela transformará os EUA em provedores de renda financeira para o resto do mundo, em detrimento de sua própria classe dominante. O que está em questão é, portanto, claramente uma mudança de trajetória.

Na discussão dos cenários vindouros, é conveniente distinguir bem a diferença entre neoliberalismo e imperialismo. Em primeiro lugar, mesmo que os EUA sejam já imperialistas durante as décadas do compromisso keynesiano (de fato, eles são desde que existem), portanto, antes do neoliberalismo, eles continuarão na eventualidade de uma nova fase, para além do neoliberalismo. Em segundo lugar, é preciso notar que o problema colocado pelo encadeamento acima é o devido ao neoliberalismo, não ao imperialismo. A capacidade imperialista dos EUA continua firme forte, quiçá aumentada.

Quais mudanças? Podemos ver quatro componentes[15]: (1) a redução do consumo das classes mais abastadas; (2) taxas de acumulação mais elevadas e financiadas pelo próprio país; (3) uma demanda dirigida para a produção nacional; (4) eventualmente, uma pressão exterior crescente sobre o resto do mundo. Os problemas, entretanto, são múltiplos:

1. O novo rumo poderá entrar em contradição com os objetivos neoliberais. Um método, cuja eficácia o passado revelou, para restabelecer as taxas de acumulação é conservar os lucros nas sociedades não-financeiras, ao invés de investi-los em juros e dividendos. Mas, que acontecerá com a renda das classes dominantes e com seu nível de vida? Podemos também imaginar medidas estimulando o investimento das empresas. Taxas de juros mais baixas se chocarão, novamente, com os objetivos neoliberais. Mas, o Estado poderá se comprometer com o financiamento de taxas diferenciais ou de medidas de incitação fiscal, assim como se encarregar dos riscos, o que ele já faz pelos empréstimos das famílias.

2. Uma solução possível para remediar o déficit exterior é de deixar baixar a cotação do dólar. Conhecemos os limites deste procedimento. Em verdade, certos países indexaram suas moedas ao dólar e uma mudança de cotação não modifica as condições do comércio entre estes países e os EUA. Não há panacéia. O exemplo do comércio entre os EUA e o Japão mostra que a alta do yen não bastou para retificar as trajetórias. Uma taxa de câmbio fraca do dólar e a ameaça da seqüência de baixa são, entretanto, geralmente julgados incompatíveis com os interesses imperialistas dos EUA. Igualmente, novos avanços em direção a um protecionismo crescente, ou à toda limitação à mobilidade de capitais se este se retirassem perigosamente dos EUA, provocariam medidas recíprocas minando a dominação imperial dos EUA, nas suas formas neoliberais.

3. Uma retificação da trajetória será delicada pela necessidade de estabilizar a situação macroeconômica do país. É lá que ressurge a questão da crise, não enquanto episódio catastrófico, desestabilizando definitivamente a ordem capitalista e imperialista, mas como constrangimento na continuação da trajetória estadunidense. A política monetária sustenta a demanda neste país, ao deixar solta a dívida das famílias. É o mecanismo central de sustentação da demanda, para além do pouco ortodoxo déficit orçamentário. O endividamento das famílias continuou crescendo durante a recessão do começo dos anos 2000, e toda tentativa de freá-lo corria o risco de transformar a recessão em ruína da mais alta envergadura. Conciliar a retificação dos desequilíbrios exteriores, causados pela despesa excessiva das famílias, e a sustentação da demanda interna é um tarefa altamente problemática – sem falar do risco corrido pelo Estado em razão da transferência aos organismos públicos do crédito das famílias junto ao sistema bancário.

4. Podemos, evidentemente, conjecturar que os EUA farão tudo que há em seu poder para acentuar a apropriação do resto do mundo. Mas, a deteriorização de sua posição externa poderá voltar a encarecer o custo de seu financiamento externo pelo aparecimento de um acréscimo de risco em detrimentos dos EUA.

É preciso identificar, por trás destes mecanismos, uma gigantesca luta de classes e de poder. A saída será política, portanto. Como dizia Marx, os homens fazem sua própria história, mas a fazem segundo condições dadas. A ambição deste artigo é dar uma representação destas condições, essencialmente econômicas. Mas, isto, de forma alguma, destrói a primazia da política.

Tais lutas devem ser compreendidas tanto no nível nacional quanto internacional:

1. No plano nacional, o neoliberalismo repousa sobre um compromisso social com a alta classe-média, detentora de títulos, diretamente ou em fundos de pensão. Esta camada adquiriu a sensação de ascender ao maravilhoso mundo da propriedade capitalista. Se a distribuição de dividendos e as taxas de juros reais estiverem ajustadas para a baixa, este compromisso será colocado em questão. Em que sentido? Em direção a um novo compromisso social para além do neoliberalismo – mais “democrático”, como o compromisso keynesiano anterior – ou em direção a uma ordem social mais autoritária e repressiva?

2. No plano internacional, novas formas de luta aparecem, como as de certos Estados da periferia que tomam consciência do que lhes é feito neste mundo dos poderosos (lembremos do fracasso das negociações de Cancun em 2003) e como as de certas camadas da população que percebem a convergência de seus interesses no plano mundial, no movimento “altermundista”. Tais lutas se acontecem com o pano de fundo do crescimento dos movimentos extremistas, sejam eles da integração islâmica ou das novas cruzadas da direita.

O vigor da pressão que estas lutas são suscetíveis de exercer será fortemente dependente das contradições da trajetória econômica estadunidense cuja descrição este artigo se prestou a fazer. Quem saberá, então, reagir com o máximo de eficácia a estas pressões? As forças da reação social ou do progresso em direção a um tão esperado mundo melhor? Sábio é quem pode predizer o desfecho destes enfrentamentos.

Notas:

[1] O presente artigo foi escrito especialmente para Crítica Marxista sob o título "L'impérialisme à l'ère néolibérale"; foi traduzido por Fernando Ferrone.

[2] Pesquisador do CNRS e professor da Universidade de Paris X-Nanterre.

[3] Pesquisador do CEPREMAP-ENS, Paris, França.

[4] Gérard Duménil e Dominique Lévy, Capital Resurgent. The Roots of the Neoliberal Revolution. Harvard, Harvard University, 2004.

[5] Idem. Ibidem. cap. 23.

[6] François Chesnais (org.), La finance mondialisée: racines sociales et politiques, configuration et conséquences. Paris, La découverte, 2004.

[7] Lenine, “L'impérialisme, stade suprême du capitalisme”, Œuvres, tome 22. Paris, Éditions sociales, 1977, p. 201-327.

[8] Os efeitos da colonização foram descritos por Marx em “La domination britannique aux Indes”, Œuvres IV, Politique I, La Plêiade. Paris, Gallimard, 1994, p. 714-720.

[9] T. Piketty e E. Saez, “Income Inequality in the United States, 1913-1998”, In: The Quarterly Journal of Economics, Vol. CXVIII, n°. 1, p. 1-39.

[10] E. Wolff, Top Heavy, New York, The New Press, 1996.

[11] D. Maki e M. Palumbo, “Disentangling the Wealth Effect: A Cohort Analysis of the Household Saving in the 1990s”. Washington, Federal Reserve.

[12] R. J. Mataloni, “An Examination of the Low Rates of Return of Foreign-Owned U.S. Companies”, Survey of Current Business, March.

[13] Este controle da demanda se mostra, na média, eficaz, mas acontecem “derrapagens” recorrentes: superaquecimentos e recessões.

[14] Em 2000, os lucros domésticos (menos impostos) se elevaram a 7,1% do PIL das sociedades que é, ele mesmo, igual a 61,1% do PIL do conjunto da economia.

[15] Este estudo abstrai as novas tendências da mudança técnica e das pressões para reduzir o custo de trabalho. Vide Gérard Duménil e Dominique Lévy. Crise et sortie de crise. Ordre et désordres néolibéraux. Paris, PUF, 2000.

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