Há algo de muito
podre no reino da Dinamarca
Por Mário Maestri e
Marconi de Matos (*)
Novæ - Ibase, 12/02/06
Doze charges, dez delas
com caricaturas do profeta Maomé, publicadas num pequeno jornal em um
país igualmente pequeno e, em geral, distante de encrencas
internacionais, colocaram o mundo islâmico em clima de guerra
santa.” Com pequenas variações, a imprensa mundial seguiu em forma
monocórdia o roteiro com o qual a Veja, de 8 de fevereiro, abre sua
matéria de capa – “Guerra de Civilizações” – sobre a
mobilização islâmica mundial contra a publicação dos cartuns
dinamarqueses tendo como personagem a Maomé.
As conclusões gerais
da mídia mundial sobre os fatos são também as mesmas do semanário
brasileiro. Tudo se deveria ao imenso “fosso de valores, idéias e hábitos”
existente “entre o mundo islâmico e o Ocidente”, “civilizações
com algumas características em comum e muitos valores incompatíveis”.
A sentença à morte do escritor Salman Rushdie, autor de Versículos
Satânicos, e o assassinato de Theo van Gogh, diretor do filme Submissão,
sobre a violência islâmica contra as mulheres, seriam exemplos
excelentes desse imenso fosso civilizacional.
Confirmaria-se, assim,
no essencial, a tese de Samuel P. Huntington, professor de Harvard, em
seu livro O choque de civilizações, de 1996, de que, após o fim da
luta ideológica entre o socialismo e o capitalismo, vencida pelos
Estados Unidos e pelo Ocidente, “as guerras do futuro”, do século
21, não serão mais entre as “nações”, mas entre as “grandes unidades conhecidas como culturas ou civilizações”.
Nesse confronto, assumiria destaque o embate entre as “democracias
ocidentais e o mundo islâmico”.
A publicação das
charges pela grande mídia ocidental seria, conseqüentemente, ato
solidário e corajoso em proteção do direito de expressão, contra a
tentativa de censura da sociedade civil pelo integralismo religioso,
que se apoiaria na mera proibição islâmica de retratar o rosto do
profeta Maomé. Portanto, definitivamente, como propôs o France Soir,
ao também publicar os 12 desenhos amaldiçoados, "nenhum dogma
religioso pode impor seu ponto de vista em uma sociedade democrática".
Discurso ideológico
É grande a diferença
entre o discurso e a realidade. Pivô dos sucessos, o periódico
Jyllands-Posten não é um pequeno e inocente jornal e, a Dinamarca,
muito menos, uma sociedade transigente, multicultural e muito
“distante de encrencas internacionais”. Com duas vezes a extensão
do Estado do Sergipe, a Dinamarca tem 5,37 milhões de habitantes,
entre eles, uns 400 mil emigrantes e descendentes de imigrantes, que
chegaram e se encontram no país sobretudo para trabalharem nas
tarefas mais duras e menos pagas.
Na Dinamarca,
considerada a nação mais racista da União Européia, são muito
tensas as relações entre parte da população nacional e os
trabalhadores estrangeiros. Os dinamarqueses que se casam com
estrangeiros são comumente obrigados a viverem no sul da Suécia até
que a administração do país resolva se seus cônjuges estrangeiros
têm condições para morar no reino. Com 13% do eleitorado, o Partido
do Povo, direitista e racista, tem açulado sistematicamente os
sentimentos xenofóbicos contra a população imigrada. Os principais
objetos dessa campanha são os emigrantes e descendentes de imigrantes
de confissão islâmica. A direita dinamarquesa é acusada de sonhar
em transformar a Dinamarca em uma espécie de ilha, totalmente loira e
cristã, cercada por porcos por todos os lados, já que o país é um
dos maiores criadores de suínos do mundo!
A publicação, em 30
de setembro de 2005, das doze charges
com a imagem do profeta Maomé, foi iniciativa política consciente do
Jyllands-Posten, principal jornal dinamarquês, de clara orientação
direitista, contra a comunidade islâmica do país. Com outras publicações
direitistas dinamarquesas, o jornal participa de ativa campanha xenofóbica,
mais ou menos aberta, contra a comunidade de confissão muçulmana,
que é sistematicamente acusada de ser refratária aos princípios e
práticas democráticas do Ocidente.
Flemming Rose, o editor
de Cultura do Jyllands-Posten, expressou, sem papas na língua, as
intenções político-ideológicas que embalaram a iniciativa, ao se
referir aos inesperados sucessos mundiais ensejados pela publicação
de algumas das charges que encomendou a caricaturistas do país:
"Isto tudo é sobre
a questão de integração e [sobre] o quão compatível é a religião
do Islã com a sociedade moderna." Um dos desenhos publicados
apresenta o profeta Maomé com uma bomba no turbante, identificando,
diretamente, a comunidade muçulmana ao terrorismo.
As mãos sujas de
sangue
É portanto compreensível
que a denúncia do caráter ofensivo e xenofóbico das caricaturas
tenha partido de lideranças religiosas da comunidade muçulmana
dinamarquesa, que pediram, ao jornal, desculpas públicas. Na ocasião,
o primeiro-ministro dinamarquês negou-se a receber uma delegação de
onze embaixadores de países muçulmanos, alegando “falta de
tempo”. Devido à recusa de retratação, sob a justificativa de
defesa do direito de expressão, as lideranças religiosas
dinamarquesas pediram a solidariedade das representações diplomáticas
dos países islâmicos. Por isso, em 26 de janeiro, a Arábia Saudita,
seguida, logo, pela Líbia e por outras nações de confissão muçulmana,
chamaram seus embaixadores da Dinamarca.
Desde 2001, a Dinamarca
é governada por liberais-conservadores que se apóiam
tradicionalmente no voto xenófobo, com o qual têm aprovado diversas
leis anti-estrangeiros. Porém, a militância anti-islâmica não tem
sido apenas política interna. O atual primeiro-ministro Anders Fogh
Rasmussen é um dos mais dedicados aliados da intervenção
anglo-estadunidense no Oriente Médio, mantendo em torno de 700
soldados no Iraque-Afeganistão. Mesmo no contexto dos atuais
acontecimentos, Anders Fogh prometeu dobrar o número de militares
dinamarqueses no Afeganistão, aumentando participação bélica já
considerável, em relação à escassa população do país.
A forte presença
dinamarquesa na repressão militar ocidental dos direitos nacionais
iraquianos e afegãos ajuda igualmente a compreender por que as
mobilizações populares contra as charges iniciaram-se, em 7 de
fevereiro, precisamente no Afeganistão,
onde a resistência contra a ocupação é capitaneada pelos
talibãs, organização integralista armada financiada, no passado,
pelo governo estadunidense, quando lutava contra a revolução afegã,
profundamente anti-integralista.
As forças de paz da Otan, dinamarqueses incluídos, mataram
simplesmente quatro dos manifestantes afegãos que protestavam contra
as charges.
O rápido
desenvolvimento das manifestações, oficiais e populares, e do
boicote diplomático e comercial à Dinamarca, na Europa e nos países
árabes e muçulmanos, não expressou uma simples rejeição
cultural-religiosa contra a ofensa de um jornal ocidental a preceito
religioso islâmico. Constituiu,
ao contrário, a manifestação política confusa dos sentimentos
profundos de populações agredidas, desrespeitadas e humilhadas, em
forma incessante, nas últimas décadas, pelas grandes nações e
pelos grandes interesses imperialistas. A queima de carros na
periferia parisiense foi também protesto sobretudo de jovens
franceses mantidos na marginalização devido a uma origem muçulmana.
Paz Estadunidense
A destruição da URSS
e a vitória histórica mundial do capital sobre o trabalho, em fins
dos anos 1980, ensejaram que o imperialismo anglo-estadunidense e seus
satélites pudessem empreender, praticamente sem travas, o assalto
militar das riquezas petrolíferas do Oriente Médio que ainda lhes
escapavam das mãos. A primeira grande iniciativa dessa operação de
grande envergadura foi a conquista colonial do Iraque, longamente
preparada pela operação de desarmamento e fragilização do país
comandada pela ONU de Kofi Annan, através do desapiedado bloqueio
internacional daquele país.
No Oriente Médio,
pretende-se concluir essa operação com a submissão total do Irã.
É precisamente por esta razão que o governo Bush, com o apoio das
grandes nações européias – sobretudo a Inglaterra, a França e a
Alemanha –, e paradoxalmente, do governo brasileiro de Lula da
Silva, mobilizam-se para impedir o acesso futuro do Irá à bomba atômica,
a única arma capaz de dissuadir a invasão militar de um país não-desenvolvido
por potências imperialistas. Os anglo-estadunidenses jamais teriam
empreendido a ocupação do Iraque se o programa atômico desse país
não tivesse sido interrompido, devido ao bombardeamento israelense do
reator nuclear de Osirak, em julho de 1981, com aviões F-16 Fighting
Falcon estadunidenses.
Ao igual que a
conquista da América, da África e da Ásia, pelas nações
colonialistas e imperialistas, nos séculos 16-20, o domínio colonial
e semicolonial neoliberal do mundo pelo grande capital, no século 21,
tem sido apresentado e defendido, em forma rústica ou refinada, como
uma ação imprescindível na luta da humanidade entre o bem e o mal,
entre a verdade e a mentira, entre a civilização e a barbárie,
contradições expressas, no presente caso, entre o mundo ocidental,
laico e democrático, e a civilização islâmica, integralista e despótica.
No seu primeiro
“Discurso à União”, o presidente Bush
apresentou a proposta de hegemonia militar estadunidense sobre
o mundo como uma “cruzada” mundial contra o “terror”, em
geral, e contra o “Eixo do Mal”, em especial. Na ocasião, foi
apresentado como “Eixo do Mal o Iraque,
o Irã e a Coréia do Norte.
Na memória histórica das populações do Oriente Médio
permanece presente o desapiedado assalto do Oriente, realizado na
Idade Média, pelos cruzados, em nome da defesa da verdadeira fé
contra o islamismo odioso. Aproveitando os atuais acontecimentos,
Condoleezza Rice, secretária de Estado dos EUA, tem acusado a Síria
e o Irã de fomentarem as mobilizações islâmicas contra as
caricaturas dinamarquesas.
Religião e política
O fortalecimento do
fundamentalismo religioso, sobretudo na sua versão militante, como
meio e expressão de oposição, mesmo inconsciente, ao domínio
imperialista e à exploração capitalista, fortaleceu-se no mundo e
nas comunidades muçulmanas, sobretudo após a vitória mundial do
neo-liberalismo, em fins dos anos 1980, e o conseqüente retrocesso da
força de atração do socialismo, do marxismo, do racionalismo, do
laicismo, etc. como meio de libertação nacional e social.
A vitória do Hamas, nas eleições de janeiro, na Palestina,
é um exemplo desse fenômeno complexo.
O caráter limitado e
paradoxal do integralismo islâmico como meio de expressão da resistência
nacional e social materializa-se plenamente na autoridade que esse
movimento de idéias, de sentimentos e de ações concede a lideranças
religiosas e políticas dos países e das sociedades árabes e muçulmanas,
profundamente comprometidas com a submissão dos seus povos ao
imperialismo e ao capitalismo.
As serviçais elites
dominantes da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes, do Kuwait, da
Jordânia, do Egito, etc., que transformaram suas nações em
verdadeiros protetorados e semiprotetorados ocidentais, apresentam-se
às populações de seus países como dirigentes profundamente pios e
religiosos, servindo-se sistematicamente de interpretação
integralista do islamismo para reprimir os direitos civis, sociais e
políticos populares e nacionais.
Sem arredar pé da
defesa do laicismo e dos direitos políticos, sociais e econômicos
inalienáveis de todos os homens e mulheres, a esquerda acaba de
mobilizar-se nas ruas da Dinamarca, junto com imigrantes e
descendentes de imigrantes, islâmicos e não islâmicos, para
defender a solidariedade e a fraternidade entre os homens e lutar
contra o caráter obscurantista e anti-democrático das manobras
racistas e xenofóbicas empreendidas, na Dinamarca e no mundo, em
operações semelhantes ou não à promovida com a publicação das 12
caricaturas de Maomé.
(*) Mário Maestri, 57,
é historiador: e-mail: maestri@via-rs.net ; Marconi de Matos, 51, é
fotógrafo: e-mail: marconi_1@msn.com
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